sábado, 20 de agosto de 2011

5. Aristóteles e outros





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L.T. : Li o seu texto na net: Filosofia e Bíblia, raízes da Europa.* Descontem-se algumas lacunas e imprecisões sobre as matérias que se seguem.
Platon a reçu la définition de Socrate, son inventeur, dit Aristote dans la Métaphysique, mais “pour les seules choses éthiques et non point [comme lui-même l’a fait] pour celles qui ont rapport à la phusis dans son ensemble” (A, 6, 987b1-2). (Philo.avec.scieces2) [Platão recebeu a definição de Sócrates, seu inventor, diz Aristóteles na Metafísica, 'mas apenas para as coisas éticas e não [como ele próprio fez] em relação à phusis no seu conjunto']
Pergunto se deste seu ponto de vista se poderá considerar uma componente, se não moral, pelo menos ética, atravessando o pensamento de Platão. No entanto, esta vertente não se poderá manifestar também em Aristóteles? E até ao longo de de toda a filosofia, como diria Nietzsche: "J'ai reconnu que dans toute philosophie les intentions morales (ou immorales) forment le germe véritable d'où naît la plante tout entière (Reconheci que em toda a filosofia as intenções morais (ou imorais) formam o germe verdadeiro de onde nasce a planta inteira) (Nietzsche, Para além de bem e mal) Esta citação foi recolhida em Deleuze, G., Nietzsche et la philosophie, PUF, 1977, p.110.
Mas voltando a Aristóteles, lembro o aspecto "teológico" e hierarquizador (não falo da teologia cristã do deus pessoal, ou do “Deus criador do Ocidente” como refere) - da sua Theologia ou Protê (primeira) philosophia. Justamente, no sentido de operarem num quadro de «perfeccionismo», se posso dizer, e com conotações ou no mínimo vestígios éticos e morais: o ‘bem’ parece abeirar-se do ‘puro’ (actus purus (no Latim...), o proton kinoun akineton (Met.1073a27), nóesis noéseos nóesis Met.1074b34 ). Ora, Aristóteles não se poupa de usar o termo ‘protê’ (protai arkai, protê ousia, protê hulê). Mas aqui estou a apontar mais para a Metafísica. Para já não me sinto tão preparado para escrever sobre a phusis que referiu em Aristóteles, embora já tenha feito leituras da Phusika. Dar atenção ao “movimento (kinesis), potência (dynamis), energeia (acto, actualização), geração (génesis), etc. A Física de Aristóteles também em contraponto com a de Galileu. Com efeito, talvez se imponha mais ler a phusis (Física, natureza) de Aristóteles (Phusika akroaseos), conforme o Heidegger aponta e o Fernando sugere nestes textos. Há que ler melhor Ce et comment se determine la phusis de Heidegger.
Todavia, voltando um pouco atrás, não será que o «bem», a ideia de bem (to agathon idea) mantém suas influências, embora com suas diferenças, nos pensadores que vêm depois de Platão? Ou seja, não poderemos supor todo o pensamento ocidental atravessado por um vestígio moral? Se não moral, ético, no mínimo? Bem, estou a lembrar-me de Nietzsche. Mesmo as supostas ‘inteligibilidades’ mais ‘puras’, mais noéticas, mais teoréticas (vj. no séc XX Husserl)? Se me é permitida a expressão: as mais esterilizadas? Não vejo mal nisso. Mas talvez devesse melhor ser pensado.
Segundo a minha leitura do seu último texto, a ontoteologia teve alguma influência neste processo.
Quais, portanto, as implicações éticas - se é que as há e de que modo - do pensamento definitório (do apofântico e o do órismóus - donde 'horizonte'), da “invenção da definição” “para as coisas éticas”, que provém de Sócrates, segundo Aristóteles. Quais quais as implicações, pergunto, na tradição “greco-europeia” e na ontoteologia? Mas, “prévio” à “invenção da definição” há a ‘invenção’ do “Ser (em 1962 Ereignis, Heidegger; Parménides).
E como é que a ontoteologia se joga aqui? Será por isso também que os ateus não dão quase todos por que são ‘ontoteólogos’?
*Vj. :

20/11/2009

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F.B. : Você tem ideia de quem é o Hadot? Filósofo do Collège de France. Qu'est-ce que la philosophie antique?, a sua especialidade, explica que a filosofia antiga é toda ela (menos Aristóteles, que faz da ética um ramo do saber, como a política, a poética, a biologia) uma experiência espiritual, como aliás Buda, Confúcio, Zaratustra, etc. A questão que domina o 1º Platão é a da possibilidade de ensinar a virtude, no Ménon, logo no início como a definir; a República é pensada para que os guardiões sejam pelo ensino da filosofia virtuosos. Todo o médio e o neo platonismo são escolas 'espirituais' de cuidado filosófico da alma. Creio que é a maneira como o Aristóteles aplica a definição à phusis que leva a distinguir espiritual / intelectual (após o Parménides, o Platão levado pelas discussões com Aristóteles seu aluno, já só trata do saber das coisas da terra, deixa cair a virtude).
Quanto ao Ocidente, é na relação da filosofia com a teologia que haveria que por a questão. Mas os homens do séc. XVII (excepto os ingleses) dão prioridade à presença ou efeitos de Deus na alma, certamente com a dimensão ética presente. Provavelmente a 'razão prática' de Kant tem um efeito equivalente (ao de Aristóteles) de distinguir as coisas da ética, política, literatura, etc das do conhecimento científico. Que esta autonomia das ciências em relação à ética se tenha imposto, é sintoma a rejeição da 'ontologia' por Levinas, em nome do primado ético da relação com o outro. Também Sartre é um retorno forte à ética, me parece (conheço-o mal).
Mas os ateus ontoteólogos assinalam que, qualquer que seja a sua ética (a de Sartre por exemplo), a questão de Deus foi separada da questão ética algures entre os séculos XVIII e XIX. Quando digo que eles são ontoteólogos sem o saberem, é porque substituiram 'Deus' pelo 'sujeito', 'consciência', 'homem' e mantém a relação ao objecto definido: é a crítica de Heidegger a Husserl, segundo Paisana. O 'ser no mundo' é já ruptura com a ontoteologia, antes do Ereignis de Tempo e Ser (1962), que coloca o tempo, e portanto a mudança, em todos os entes, não apenas no Dasein. Ou seja, onde a separação sujeito / objecto e portanto a relação entre ambos como exteriores um ao outro vigorar, isso é ontoteologia, filha da definição, sujeito e objecto fora dos respectivos contextos.
24/11/2009
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L.T. : 1. Não conheço o Hadot. Tenciono adquirir Qu’est-ce la philosophie antique. Preferia deixar o aprofundamento destes temas para outra altura. Requerem mais leitura. Portanto, espaçando um pouco. Quanto a Levinas, já fui seu atento leitor. O que me parece interessante nele é a sua ética. A relação ao outro-outrem que, mantendo uma relação ao outro, mediante o rosto (visage , na sua nudez, mas não na sua plasticidade) não deixa de poder remeter para o que chama transcendência do outro como "Autrui" (Outrem), a qual reenvia por seu turno para o infinito (l'infini) e à transcendência de Deus. Por outras palavras, na 'assimetria' quando o outro me faz face na nudez do seu rosto, na vulnerabilidade e despojamento do rosto (visage), com o "tu ne tueras point" da Bíblia, manifesta-se a responsabilidade para esse outro, não deixando no entanto de haver a condição da reciprocidade, de um para o outro, abrindo para a transcendência com a responsabilidade para Outrem (la responsabilité pour Autrui).
Sobre Sartre, o que conheço dele, e pouco, é o 'néant' ( em L’Être et le Néant ) do movimento que constitui o próprio 'ser' do 'para-si' (l´être pour soi ): La néantisation , néantiser. " L'être par qui le néant vient au monde doit être son propre néant "(Sartre). Também La transcendence de l’ego (consciência irreflexa, refexa e reflexizante). Li alguma literatura e teatro dele. Interessante. Talvez esteja aqui alguma ética. Mas para já não me acho capaz de muito mais do que isto.
2. Fazendo uma leve inflexão para a questão das ciências gostaria de focar uns pontos: "14. Le statut de la Physique serait donc celui de l’élaboration des motifs généraux des diverses sciences, motifs qui organisent leurs textes; car c’est en elle que sont élaborés, à la seule exception de dunamis / energeia (32), les grands motifs de la pensée philosophique d’Aristote et ensuite de l’Europe. Avec la mathématique et la philosophie première ou théologie, il s’agit d’une “science théorétique qui traite de l’étant qui peut se mouvoir, et de l’ousia [...] non séparable”, précise-t-il (33), telle qu’elle a le but de rendre possible ces diverses sciences." Philo.avec sciences.
Há no entanto uma passo importante na Metafísica (1003 a 20), que certamente conhece: "Há uma ciência (epistémê ) que contempla (theorei ) o ente enquanto ente (tó on hê on - τὸ ὄν ᾗ ὄν) e o que lhe corresponde. E esta ciência não se identifica com nenhuma das que chamamos particulares (en mérei - ἐν μέρει, por partes, de cada vez, à vez), pois nenhuma das outras especula em geral (katholou -
καθόλoυ) acerca do ente enquanto ente (to ontos hê on ), mas sim, havendo separado alguma parte dele, consideram os acidentes de esta; por exemplo, as ciências matemáticas (mathematikai tôn epistemôn). Mas o ente diz-se de múltiplos modos (Tó dé on légetai mén pollakôs)". Traduzi da Metafísica, ed. Trilingue, por Garcia Yebra. Este passo da Metafísica foi várias vezes referido por Mário Jorge de Carvalho nas suas aulas de Ontologia. O curioso é que (ᾗ) - «enquanto», «como», «que é» (diferenciando aqui do ti esti, τι εστι : o que é, o que é que) - do to on hê on refere uma particularidade, uma singularidade qualquer. A do ser enquanto tal. O ser enquanto material e formal. Mas ao mesmo tempo o remete para a epistémê katholou (M.J. de Carvalho). Daqui decorrem alguns apontamentos a que cheguei. Ser enquanto tal, não separado da ousia, a qual como se sabe é identificada ao ser (a questão "o que é o ser" equivaleria à questão "o que é a ousia", num outro passo da Metafísica, 1028 b 4) e não se separa das coisas. Claro que Aristóteles opera com a Física a distinção da teologia e das ciências. E como o Fernando refere, se não se sair da Metafísica de Aristóteles e não se der a devida atenção à sua Física, para a qual Heidegger apela com o seu Ce qu'est et comment se détermine la phusis, fica-se numa ambiguidade Platão/Aristóteles sem se compreender suficientemente o salto do segundo e da abertura para a instituição das ciências. No entanto, há algo de paradoxal. Não deixa de ser interessante este momento em que a epistémê katholou (ciência do geral, ou do universal) se mantém numa ponte onde as ciências en merei se manifestam ainda nela. Pois há uma ciência katholou (geral) como as outras (en merei - particulares), as quais, precisamente, também são 'ciência' (epistémê). Por outras palavras: a ciência geral (epistémê katholou), que trata do ser enquanto ser, distingue-se das outras ciências (epistemon , as particulares - en merei ), as quais, todavia, não deixam de ser ciência (epistémê ), tal como ela, que, noutro sentido, trata em particular - e portanto, arrisco a dizer, supostamente en mérei - do ente enquanto () ente, (to on hê on) ou seja, que é afinal o ente em geral. E também enquanto ela, a epistémê katholou, se diz contemplar (theorei ) o ser enquanto () tal (o ser enquanto (é) ser). Mas a Física vem de facto indicar a sua separação, a das várias ciências? E no entanto, escreve Aristóteles: " a ciência é sempre Universal" (Met. 1003a15).
Começará aqui também "o esquecimento do sentido do ser" segundo Heidegger?

3. Um outro ponto. «L’ayant contacté par courrier après son passage au Portugal, la réplique d’Edgar Morin à mon projet m’a beaucoup éclairé : « il y a disjonction complète entre philosophie et sciences ». Il est à croire que ce soit une vision des choses, plutôt positiviste, très partagée par les scientifiques. Il me faut donc insister : je n’ai aucunement la prétention d’enseigner à personne quoi que ce soit de scientifique, tout ce que j’en raconte je l’ai appris chez eux. J’aurai par contre la prétention d’enseigner, aux scientifiques y compris, quelque philosophie qui pourrait leur être utile.» (philo.avec.sciences)
Fui um leitor apaixonado de Edgar Morin nos meus muito verdes 20 anos (princípio dos anos 80). Devorei o Método , os primeiros tomos; e ele fala de Prigogine. E muitos outros livros dele. Foi determinante. Respeito-o e ainda o revisito. Morin é um argonauta dos nossos dias! Na sua epistemologia da complexidade a palavra «disjunção» é chave. Precisamente para a diferenciar de «distinção». Outro ponto importante na sua muito interessante proposta epistemológica são "as relações complementares, concorrentes e antagónicas".Vamos fazendo os nossos caminhos. Sobre a essência da linguagem não me parece ser um autor de fundo. No entanto as vertentes de investigação e de pensamento são múltiplas e, imprevistamente, uma que menos se espera toca em questões que parecem ser-lhe distantes.
A pergunta que coloco é esta: qual a visão positivista? A que Morin denuncia? Ou, em parte, a própria visão de Morin? Há uma crítica negativa por parte de Morin ao facto de haver «disjunção completa entre a filosofia e as ciências». Mas ao enunciá-lo, nessa constatação, não será que ele de alguma maneira se trai, uma vez que ao afirmá-lo manifesta que não se dá bem conta de como poderá haver uma articulação, outras articulações, entre filosofia e ciências? Articulação, cujas bases epistemológicas iriam porventura mais ao encontro dum requestionamento de fundo da filosofia e da linguagem. Com o devido respeito por Morin, quem sou eu?, não me parece que ele tenha pesquisado suficientemente a questão da linguagem, como um Heidegger, ou um Derrida, por exemplo. Nem mesmo nos últimos tomos do Método que li muito pouco ainda. No entanto, pensemos um pouco à Morin: o próprio problema da disjunção (completa?) entre filosofia e ciências não concerne a própria complexidade do problema e da relação entre filosofia e ciências? E no entanto, Morin, com aquela afirmação não pensa a complexidade do seu enunciado. São opções. E aqui reenviaria para as suas propostas epistemológicas e fenomenológicas. Que se me afiguram diferentes das de Morin. Embora não saiba desenvolver mais sobre isto. Precisamente, o Fernando fala de 'articulação'. É uma das suas palavras fortes, tal como 'jogo'. E, como se sabe, tem vários estudos de fundo, artigos, etc. sobre linguística e sobre a linguagem. Não sei se o Fernando poderá dizer alguma coisa sobre isto.

30/11/2009

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F. B. : A disjunção completa entre ciências e filosofia é uma definição de positivismo. Este foi muito útil nos séculos XIX e XX para dar autonomia às ciências que se estavam a estabelecer e evitar os pressupostos metafísicos. Hoje, tendo em conta que as ciências ganharam suficiente robustez, por um lado, mas que guardaram sem saber um vínculo metafísico na oposição sujeito/ objecto, e que por outro lado os problemas de articulação entre elas nas interdisciplinaridades são urgentes, o positivismo não é já necessário, parece-me contra Morin.
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