sábado, 20 de agosto de 2011

32. Nada de 'movimento' que dá movimentos fenomenológicos ...

-



L.T.
: Retomando os teus três últimos mails. 'Simultaneamente' é 'ao mesmo tempo'. Mas, tal como escreves, sobre as Marges do Derrida, " [...] ela [différance ] é simultaneamente mesmo de economia e outro de excesso". Portanto, há uma 'diferença' naquele 'simultaneamente' da différance. Daí a escrita, l'écriture (escrit-ura)?
Acho que tens razão no teu último mail. Agora me parece que isto não tem a ver com a 'simultaneidade', como dizes, da "doação com retiro platónica".
Será que aqui, nesta escrita, na escrit-ura, na différance, se poderá falar de 'movimento' (lá vamos para Aristóteles), enquanto trace, rastro, marca, marche, grama, com as "incidências em química dos átomos e moléculas"?
25/6/2011
_
F.B. : Será que aqui, nesta escrita, na escrit-ura, na différance, se poderá falar de 'movimento'. O Derrida fá-lo, pondo 'movimento' entre aspas, porque não se trata do movimento de algo, de movimento fenomenológico, mas dum 'movimento' (que eu diria 'nada de movimento', à maneira do Heidegger, porque não substancial) que dá movimentos fenomenológicos, aristotélicos. É justamente o que escapa aos exemplos: nas falas duma conversa, dum lado e doutro, há movimentos sonoros e seu entendimento pelos locutores; a différance será algo que dá tanto essas falas sonoras como a língua comum que permite o entendimento. A língua é a mesma, cada fala excesso sobre ela. Mas não há língua sem falas (ou escritas) como não há espécie canina sem cães individuais. A espécie, neste caso, está muito perto da différance (tentei ligá-la ao Ereignis de "Tempo e ser").

25/6/2011

_





Vídeo para instalação de Luís de Barreiros Tavares

31. Doação em retiro...


-
“En qualquier parte de la tierra en que haya hombres encontramos la idea de los muertos invisibles.” Elias Canneti, Masa y Poder, Madrid, A.Edit., Vol II, 1983, p.36.


-
L.T. : Não sei se me desvio aqui muito do teu texto, mas não deixarei de retomá-lo de outra maneira com mais tempo. Trata-se de uma questão que penso há uns bons tempos. A da 'anterioridade' (termo geralmente muito metafísico) das ideias platónicas (que também remete para a questão da alma). As ideias do Platão são anteriores, até no tempo, mas não deixam de ser presentes elas mesmas (auta ta pragmata, Fédon, 66d) como uma certa forma de 'doação em retiro' - passe a extrapolação e o anacronismo, que só serve aqui para me fazer melhor entender. As ideias, os inteligíveis (noeta) precedem no tempo, delas os sensíveis (aistheta) participam, não deixando aquelas no entanto de serem presentes (enquanto eternas). Doação em retiro mas não o mesmo que as leituras que fazes mais o Heidegger e o Derrida. É que com o biológico, o químico, o molecular, o genético, atómico, etc., enfim questões do nosso tempo, trata-se também de elementos invisíveis a olho nu (p.ex., tu não vês uma molécula ou uma célula). No entanto são da ordem da phusis (talvez aqui devêssemos chamar o Aristóteles, mas agora não consigo). Elementos invisíveis, dizia, tal como acontece com as ideias do Platão (eidos, forma...).
"O Nada (que só há aonde há indivíduos)", escreves. Não sei até que ponto com todos estes novos elementos de hoje se dá qualquer coisa de análogo àquela, ressalve-se, "doação" platónica, mas, por outro lado, totalmente diversa desta, e não da ordem dum mero desdobramento ou duplicação técnicos. Portanto, isto não é seguir o Platão. Enigma e questões que não sei explicar mas que tive a oportunidade agora de aflorar neste texto. Todavia, parece-me que a vida entra aqui. Talvez p. ex. 'la trace vivante' como escreve o Derrida.
19/6/2011
_

F.B. : Quanto à doação com retiro platónica, não posso aceitar. As formas ideais foram contempladas pela alma quando fora do corpo e ficam reminescentes até que a aprendizagem as suscite. Não tenho ideia de que o Platão tenha desenvolvido muito a questão de saber como é que cada Eidos eterno 'gera' (ou se deixa participar) as coisas respectivas, aonde haveria lugar para essa tal doação (na leitura que fiz dele recentemente, no meu blog philoavecsciences2, não encontrei nada de significativo, era uma das coisas de que andava justamente à procura). O que me parece certo é que esta é proposta pelo Heidegger justamente 'contra' a economia ontoteológica ocidental, de que o Platão é o grande iniciador, donde que não me palpite grande fecundidade nessa hipótese, digamos eufemisticamente. É pelo contrário, para entender como é que o ente vem à presença, no domínio terrestre da phusis, em namoro com Aristóteles (mas tendo que recorrer ao Heraclito para introduzir o retiro), que Heidegger está a escrever. A phusis é movimento, a ontoteologia sempre teve dificuldades com ele, como com o tempo; o Aristóteles guarda de Platão a definição (e por aí será platonizado na Idade Média, em Tomás de Aquino), o que o deixa ligado à ontoteologia, e por isso o recurso a Heraclito, acho eu.

20/6/2011
_




Imagem: pintura - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares



Vídeo para instalação de Luís de Barreiros Tavares









30. Desconstrução, différance ...


-
L.T. : Prosseguindo com o teu e-mail de 4/6/2011 onde escreves sobre a desconstrução da oposição sujeito / objecto. Consultando principalmente o cap. 2, 'Qu-est-ce q'une Scène ?' do Le Jeu des sciences e também Heidegger pensador da Terra.
Quando com o in-fans vem uma voz nova, pelos pais, professores, etc., inconfundível com a destes em retiro doador, a différance é-lhes prévia. É trace, grama, inscrição, doação, retiro doador entre outros retiros como escreves. Daí a autonomia e heteronomia apagada. Ela é prévia. Mas não é da ordem da anterioridade no tempo. As questões do tempo, da temporalidade, da destinação, destino (Geschick ) da história (Geschichte ) são decisivas aqui? Escapam-me ainda muitas coisas na viragem fascinante Sein und Zeit e Zeit und Sein. Heidegger escreve algures "o futuro é condição de temporalidade".
É que, no contexto da "diferença significante / sons [...] aquele [...] de diferenças sonoras feito, ou de diferenças entre significantes [...] diferença, sendo entre 'sensíveis', não é nem sensível nem inteligível, argumento forte de 'La différance ', nas Marges", digamos que a différance (Derrida) vem aos entes in-fans.
17/6/2011
_
https://mail.google.com/mail/images/cleardot.gif



F.B. : "a différance é-lhes prévia": ela é a doação do jogo de diferenças (língua, saber) com retiro do som, da voz dos que ensinam, esse som como autoridade (donde heteronomia) que tem que ser apagado, esquecido, para que a différance seja autonomia no novo som, da nova voz. Ora a différance, nesse texto das Marges, onde se fala do seu enigma, é simultaneamente mesmo de economia e outro de excesso: o mesmo é o jogo de diferenças, a mesma língua, a alteridade 'passa' duma voz a outra, a nova voz vem da antiga. O 'passa' é aprendizagem, a différance ou trace como relação estrutural ao outro. Obrigado pela questão, é a primeira vez que tento articular a différance com a doação dissimulada.
18/6/2011
_



F. B. : Volto à différance e doação retirada. Nesta, seja Ser, seja depois Ereignis, o que é doado são 'entes', é por que isso funciona bem com as espécies biológicas que dão os indivíduos que nascem, sem serem indivíduos, sendo Nada (que só há aonde há indivíduos). Na différance do Derrida, são 'entes' que 'doam', ou melhor é deles que sai doação, différance num e noutro. Enquanto que no Heidegger, 'forço-o' do Ser / Ereignis para os entes, do ontológico para o ôntico, e encontro a espécie biológica 'sem saber como', sem saber de biologia, no Derrida sei que é o programa genético (numa célula, de óvulo a zigoto) que é doado depois de reduzido (gâmetas). Há uma maior 'precisão' ontológica no Derrida do que no Heidegger, só com aquele aliás é possível interpretar assim o Heidegger (creio); essa precisão permite prescindir do motivo de 'ser' ou de Ereignis, de diferença ontológica. Parece-me.
Mas não sei se isto tem incidências em química dos átomos e moléculas, julgo que a différance ou trace só jogam a partir da vida, o Derrida usou mesmo a expressão 'trace vivante' no diálogo com a Roudinesco.
Puseste também 'desconstrução' no título, mas só se fala de 'différance'. Esta resulta daquela como operação de pensamento que busca 'desfazer' ou 'desconstruir' as fortíssimas oposições conceptuais 'construídas' pela tradição filosófica e teológica ocidental.

19/6/2011
_





-
Fotografia de Derrida:
-






_
Cortesia:
_



-


29. Simondon, Stiegler. Jeu des sciences. Ciência, crítica, técnica e filosofia? Citações. Um possível manifesto. Etc., etc.,etc.



Por favor, clique ao lado da imagem maximizando
-



_




Por favor, clique ao lado da imagem maximizando
-





Imagem: pintura - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares


Imagem: plástica digital - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares
 

-

“E se a paciência do leitor filósofo me interessa, se foi capaz de acompanhar esta longa deambulação, é no fito apenas de o alertar para o que, no campo de certas ciências humanas, aqui o da Linguística de Saussure, mas por exemplo também na Psicanálise de Freud, há como convite à reflexão filosófica contemporânea. Esta não pode ignorar o desafio que a civilização industrial electrónica está pondo aos humanos que nós somos, multiplicando uma rede gigantesca de matriz matemática, em que os computadores se inserem de forma vertiginosa; a nós compete ajudar a delimitar o domínio em que eles são indiscutivelmente úteis, o da racionalidade na gestão, no cálculo, mas também a abrir o espaço polissémico de poesia em que possamos respirar.”
Belo, F., 1986, «Sobre a epistemologia semântica de Hjelmslev: haverá uma ‘substância de conteúdo’?» Revista Filosofia (Sociedade Portuguesa de Filosofia), nº2, pp 41-60.

-





Imagem: escultura (fase preparatória) - fotografia - instalação? - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares
_
.
_
1.
« 20. Pas assez digne des sciences, cet exemple ? Prenons en un qui en relève très nettement, celui d’une voiture. Posons une question simpliste : est-ce qu’une voiture est déterministe, telle que l’on vient de voir que les jeux ne le sont pas ? D’une part, il le semble, puisque elle est réglée jusqu’à la minutie, théorique et expérimen­tale, se­lon les lois de plusieurs régions de la Physique (mécanique, aéro­dyna­mique, électricité, thermodynamique, etc.) et de la Chimie (carburants, huiles, caoutchouc, etc.). Mais d’autre part, le but de ces règles concerne la production d’un travail qui est essentiellement aléatoire. En effet, une voiture ne sert qu’à la condi­tion d’être commandée par les exi­gences du trafic, de la circulation sur les routes : rouler plus vite ou plus lente­ment, freiner ou reculer, tourner à droite ou à gau­che, etc., à cha­que instant pouvant se présenter une situation deman­dant l’alté­ration de la conduite suivie en ce moment. On retrouve donc, comme dans le jeu, les règles et l’aléa­toire, celui-ci étant autant celui du destin du conducteur que celui des autres voitures qui circulent dans les environs.
21. Or, cette loi du trafic, essentiellement aléatoire et concernant une multitude, commande la construction de la voiture en tous ses détails mécaniques, jusqu’à ceux qui ne visent que le confort. Sauf sur un point: l’explosion de l’essence qui donne le mouvement, le moteur dans ses cylindres, obéit à son tour à une loi thermodynamique des gaz, qui est totalement incompatible avec la loi du trafic: on ne saurait se balader sur la route en train de provoquer des explosions d’essence. La voiture auto­mobile - après la machine à vapeur de J. Watt - est la décou­verte fabuleuse de la façon de rendre indissociables deux lois inconciliables, celle de la thermodyna­mique avec celle du trafic: il faut que le moteur soit retiré (motif heideggérien, en oblique), fermé hermétiquement, blindé, forte­ment répétitif, puisqu’il ne fait que faire tourner un arbre, tandis que le reste de la voiture, disons son appareil, est pensé en vue des manœuvres de circulation et adéquation au trafic dont on a parlé. Voici ce qui illustre le motif derri­dien de la différance entre deux forces antagonistes, du ‘double bind’ entre deux lois inconciliables : ce sera l’un des critères de description phénoménologique des domaines des diverses sciences. »
in blog : philosophie.avec sciences.
Estas citações podem ler-se também nos livros de Fernando Belo: Le Jeu des sciences avec Heidegger e Derrida, Paris, L’Harmattan, 2007 e La philosophie avec sciences au xx siécle, Paris, L’Harmattan, 2009.
_
2.
Alguns exemplos de processos de concretização
"No caso dos motores térmicos, Simondon mostra-nos, de maneira extremamente convincente, que, da máquina a vapor até ao motor a reacção, que se encontra hoje nos aviões supersónicos, se assiste a um processo de concretização, que ele chama também de super determinação funcional. Isso significa que se você pega, por exemplo, na máquina a vapor, depois no motor Lenoir (o primeiro motor a explosão), depois no motor Diesel, e finalmente no motor à reacção, você constata que as funções da máquina a vapor são separadas e que elas podem mesmo ser desatreladas. Na máquina a vapor, a combustão faz-se fora do pistão, em uma caldeira que faz o vapor aquecer e o injecta num cilindro, o que põe em movimento um pistão, ao passo que, com o motor Lenoir, a combustão entra no pistão, sendo a explosão desencadeada pelo acendimento eléctrico. O motor Lenoir vai, aliás, apresentar defeitos ligados ao auto-acendimento, o que o Diesel interpretaria como um sinal dado pela matéria para o estágio superior, mais “concreto”, de funcionamento do objecto. Sem entrar em detalhes, isso quer dizer que quanto mais um objecto técnico evolui por essência (o que Simondon designa por sua concretização), mais ele fica indivisível e plurifuncional, logo, mais ele se aproxima da individualidade no sentido fortíssimo que essa palavra tem em biologia» (Stiegler, 2004). Ou seja, as alterações significativas não se deram propriamente na substituição das ferramentas pelas máquinas com o surgimento da máquina a vapor; a autêntica mudança foi a substituição do suporte da ferramenta que deixou de ser um sistema em que o orgânico era determinante (a ferramenta é um prolongamento da mão em que o homem é o actor principal) para passar a ser uma máquina que se autonomiza, se concretiza cada vez mais... (...)
Nesta linha de pensamento, contrariamente ao que defende o determinismo técnico, não foi a revolução industrial, com os seus dispositivos maquínicos automáticos de produção, que constituiu a verdadeira transformação, o verdadeiro salto qualitativo. De acordo com Simondon (e aí reside a sua grande originalidade), a autêntica transformação situou-se no facto de estas máquinas automáticas serem sensíveis ao funcionamento de outras máquinas, de possuírem sistemas de auto-regulação de forma a gerir a indeterminação produzida por outros objectos técnicos individualizados. O seu grau de automatismo é, de facto, um dos aspectos menos importantes no aperfeiçoamento técnico. Tal como diz Stiegler, «a caracterização da máquina através do automatismo desconhece a sua virtude, a sua perfeição como objecto técnico universal [itálicos meus], que é também a sua verdadeira autonomia, ou seja, a indeterminação."

José Pinheiro Neves | Seres humanos e objectos técnicos: a noção de “concretização” em Gilbert Simondon , Comunicação e Sociedade, Vol. 12. Estas citações encontram-se também no livro O Apelo do objecto técnico do J.P.Neves.



Video com entrevista a Gilbert Simondon:




Cortesia Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=7FjNb-fuRyk


O livro O Apelo do Objecto Técnico de José Pinheiro Neves, enquanto implicando nalgumas das suas análises a questão da linguagem, como geralmente acontece em muitos estudos neste campo, joga, à primeira leitura, com uma suposta linguagem do sujeito. Pois 'objecto' supõe 'sujeito'. Todavia, os critérios de objecto e de sujeito alteram-se. É que a linguagem se move nestes dois pólos sem prevalência de um deles. Mas estes alteram-se só por isso? Não. Porquê? Porque que neste jogo o critério da linguagem também se altera, re-alterando aqueles (o de sujeito e o de objecto) que a re-alteram, para usar aqui um modo de pensar à Edgar Morin. Assim, linguagem deixa de ser mero instrumento, modo de expressão, mediação. Numa palavra, deixa de ser secundária segundo uma certa tradição. E os critérios tradicionais de oposição sujeito/objecto deixam também de fazer sentido, como sugere o autor. Do nosso ponto de vista, e sem poder aqui aprofundar, um dos aspectos interessantes do livro O Apelo do objecto técnico de José Pinheiro Neves é que ele contribui para novos modos de pensar as questões do 'sujeito' e do 'objecto' segundo uma abordagem da linguagem nas suas implicações com a questão da técnica e dos objectos técnicos. Só a questão da linguagem dá pano para mangas. Esperemos no entanto que este blogue nos ajude um pouco nesta análise.
De uma maneira por agora um tanto esboçada, pode dizer-se que o objecto técnico ganha agora um novo sentido e um novo estatuto em que a linguagem, o sujeito e o objecto começam a reformular-se em articulação com um novo modo de pensar e de percepção do Mundo. Por outras palavras, trata-se de um interessante contributo para o que se poderá chamar, talvez a título provisório e no âmbito de variadas investigações nos nossos dias, o jogo linguagem e técnica. O objecto e o inevitável suposto sujeito que daí se infere, deixam de ser territorializáveis, ou antes, desterritorializam-se - usando expressões de Deleuze - deslocando-se da leitura da sua tradicional oposição "sujeito/objecto".
Com efeito, segundo nos parece, objecto e sujeito reformulam-se com o "objecto técnico", expressão incluída no título do livro de Neves. Não podendo por agora ir mais longe nesta análise, avancemos a título de experiência, que 'técnico' implica de certa maneira uma modulação do sujeito. Assim, há também uma modulação do objecto na sua condição de ser agora não só 'objecto' mas podendo ser "objecto técnico". Por assim dizer, algo de diferente emerge. Mas só com a continuidade e persistência de um trabalho de pensamento, que tem vindo a ser feito por este e muitos outros autores, sobre a linguagem e a técnica nas próprias redes que elas mesmas tecem, é que se poderá clarificar melhor esta e outras questões que, de tão próximas no tempo e no espaço, não lhes vemos ainda bem os contornos.

Nota: para melhor contextualizar esta breve análise, leia-se uma recensão da minha autoria sobre este livro. Darei as suas referências brevemente.

LBT

Link da leitura de O apelo do objecto técnico de José Pinheiro Neves

"Leitura de O Apelo do Objecto Técnico de José Pinheiro Neves", Revista de Comunicação e Linguagens (RCL), nº42, Março de 2011 (pp. 296-301).








Sobre Gilbert Simondon





Newcomen



 


 Watt






Lenoir



L.T. :Neste contexto, a pretensão a “objecto técnico universal” (Stiegler; ele fala da ‘gramatização’) parece-me um pouco excessiva. Ela visa a superação de uma ‘separação’. Superar a separação de um ‘universal’ (katholou), de um ‘geral’, de tradição aristotélica, através de um outro katholou, de um outro ‘geral’ que é o “objecto técnico universal”. Assim, corre-se o risco de um pretenso saber/conhecer da ‘realidade’ tecnológica e biotecnológica dos nossos dias em detrimento, não do humano, mas, precisamente, do ‘enigma humano’. Isto com a pretensão de um supra-humano de tipo nietzscheano tornado pós-humano, quer dizer, de um universal do objecto técnico e de um híbrido humano-bio-técnico-universais. Estes radicados num katholou, num geral, num universal. A estranha separação deste katholou do "objecto técnico universal", de que nos fala Stiegler neste texto, deve-se a não ser tida suficientemente em conta a implicação da questão da linguagem no nome 'Universal'.
O que poderá traduzir este “objecto técnico universal”? Provavelmente um sonho escondido que nós humanos guardamos de um qualquer ‘supra’ ou ‘sobre-homem’, mas que não é bem o nietzschiano. Daí falar-se hoje dos «cyborgs», do «pós-humano», «híbridos sóciotécnicos», dos replicantes, de transgénero, etc. Evidentemente que o pensamento e a obra de Stiegler não se reduz a este ponto. Nem pouco mais ou menos. Tão pouco conheço suficientemente a sua obra para poder ir mais além do que esta breve nota. Com o devido respeito tentei apenas questionar o "objecto técnico universal" no contexto das citações. Mas na Physika I 184 a, Aristóteles fala também de uma espécie de «universal concreto» que não é ainda o da Epistemê Katholou. No entanto, é este segundo que importa mais analisar neste contexto.
Alguns tópicos:
Seria interessante pensar as articulações possíveis entre prótasis (proposição, expressão ou forma verbal da operação do juízo; vj. Aristóteles), o 'protésico' ('prótese técnica', Mcluhan), técnica enquanto gestell (vj.Heidegger) e écran (sociologia da técnica e filosofia da técnica).
Dúvida: poderemos considerar que as baterias de um telemóvel e de um computador são uma espécie de motores?
7/4/2010
_
F.B. : Nunca soube bem o que queria o Simondon, e raramente citado e tive sempre alguma curiosidade que tu acabas de me satisfazer. Trata-se dum outro tipo de análise do que as minhas. Quanto à tua questão: 'poderemos considerar que as baterias de um telemóvel e de um computador são uma espécie de motores?': não creio que sejam motores, apenas conservadores e transmissores de energia produzida por outros motores (turbinas, painéis solares, eólicas, etc) Os painéis solares são os mais curiosos, nunca tinha pensado nisso, terão 'algo' a ver com a fotossíntese que está na origem da vida.
7/04/2010
_
F.B. : A dizer verdade, o motivo da 'técnica' é-me um pouco opaco. Nós não lhe escapamos (óculos, dentes postiços, bengala, fora os carros e os electrodomésticos), ninguém lhe fica de fora, fico sem saber se os braços e as pernas, há gente sem eles, não são 'técnicos'. A 'máquina' e susceptível de análise, cada uma tem que ser aprendida, são coisas que me ajudam a pensar. A técnica, só assim, perco-me, não sei por onde pegar.
Nunca percebo bem o que se diz sobre 'ela'. Mesmo o texto do Heidegger acaba no Ge-stell, que não é 'técnica' mas estatuto duma sociedade com técnica.
Lamento não ser capaz de mais do que isto, e uma limitação minha, do meu percurso.
13/04/2010
_
L.T. : Se não me engano, escreves num teu texto que antes mesmo da máquina a vapor que precede o motor Lenoir, o Diesel e o do automóvel, há um sistema de motor que já reúne as condições que o Simondon e o Stiegler referem como aquilo que eles chamam 'formas de individuação' e de 'concretização': máquinas que integram já as peças como um todo sem retiro do 'motor fechado hermeticamente', 'blindado'...
_






F.B. : "La machine moderne doublement liée, selon notre description succincte de la voiture (2. 50-52), aura été l’invention de James Watt. Elle est venue remplacer la machine atmosphérique des mines de Newcomen, qui, selon sa description par D. S. Landes (1980, pp. 144-145), semble n’avoir justement pas encore le moteur suffisamment ‘retiré’ de l’appareil. Le textile toutefois s’était industrialisé en Angleterre avant l’invention de la machine à vapeur, par utilisation de machines liées à des roues hydrauliques, en dépendance donc de chutes d’eau."Le Jeu des Sciences, vol. 1, p. 168, n.
Percebo a lógica do Simondon, não é a dum duplo laço, mas este creio corresponder ao voto que dizes do Stiegler: os mecanismos de autonomia com heteronomia apagada.
_
Outras citações entre muitas possíveis :
"As obras adquirirão uma espécie de ubiquidade. A sua presença imediata ou a sua restituição a uma dada época obedecerão ao nosso apelo. Já não estarão somente nelas próprias, mas onde quer que alguém ou algum aparelho estejam. Não serão já senão espécies de fontes ou origens, e os seus benefícios encontram-se ou encontrar-se-ão por inteiro onde se quiser. Tal como a água, tal como o gás, tal como a corrente eléctrica vêm de longe até aos nossos lares responder às necessidades mediante um esforço quase nulo, assim seremos alimentados por imagens visuais e auditivas, nascendo e esvaindo-se ao menor gesto, como que a um sinal."
Paul Valéry, A conquista da ubiquidade ; Trad. Luís Lima. Originalmente publicado em 1928.
Parte desta citação encontra-se
em Benjamin, W., A Obra de arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica.
_
"Pour nous conformer au style de vie qui est le nôtre depuis que le courant électrique est à notre disposition, nous établirons le contact sans plus attendre et jetterons brusquement la lumière sur nos intentions.
Pourquoi nos gestes intellectuels après tout devraient-ils être si différents de ceux que nous avons pris l'habitude d'accomplir chaque jour dans la vie courante? Le premier hommage à l'électricité me paraît être de parler d'elle autrement que selon des formes académiques compassées, et bref d'en traiter intellectuellment comme nous en usons dans la vie pratique."
In Texte sur l'électricité (1954)

Ponge, F., Lyres, Paris, Gallimard, 1997, p.72.

“Hoje, as imagens terão verdadeiramente perdido esse poder de que as investia a onto-teologia. Nessa medida, elas tornaram-se todas equivalentes e equivalentemente irrelevantes. Em lugar desse poder, porém, parece libertar-se uma potência porventura mais perturbadora. A «potência do fantasma», como diz Deleuze. E esclarece: «a potência de produzir um efeito» (5), isto é, a possibilidade de agir no mundo, como sendo em si mesma uma força. A ideia de que as imagens podem ser agentes e, ainda, a ideia (não raras vezes veiculada e discutida) de que nós podemos ser agidos por elas confirma uma certa forma de presença das imagens, que implica, antes de mais, a sua queda radical no mundo. Coisas por entre as coisas, corpos por entre os corpos, reflexos que mais não são do que desdobramentos das próprias coisas, as imagens entram numa nova e inquietante familiaridade com a vida. Na verdade há uma vida das imagens, mais do que um mundo que nelas se revela. A era do simulacro é a era da intimidade total das imagens com as coisas, os corpos e a matéria, e ainda com os sonhos, a fantasia e o ideal.”
(5) Gilles Deleuze, La logique du sens, Paris, Minuit, 1996.*
Maria Teresa Cruz, Da Vida das Imagens.

*vj. a propósito a minha recensão (L.T.) :
ou : http://tir.com.sapo.pt/deleuze.html



-

"The Gul War was the combat of surveillance against camouflage, visibility against invisibility, human eye against computer eye. This warfare was indeed based on the ‘logistics of perception’ but we can describe its visual techniques even more precisely.
Visual perception was employed in a limited way as an instrument to capture and represent information about shapes and distances in three-dimensional space. The effectiveness of such war technologies as radar, infrared imaging, laser sensors, and 3-D computer graphics depends on the automation of this function of vision, the automation that began with the Renaissance perspective.

The use of these technologies today extends beyond warfare into all spheres of industry and science. Is there an appropriate term to describe the function of vision which they automate? For Plato, sensible particulars were but a pure reflection of Ideas or Forms. Aristotle criticized Plato declaring that the primary substances were not the Ideas but the individual things such as particular man or animals. Thes opposing views continued to be debated in scholastic philosophy, Plato view giving to realism, and Aristotle’s to - nominalism.
This essay will discuss twentieth century automation of what can be called visual nominalism - the use of vision to capture the identity of individual objects and spaces by recording distances and shapes. (…) But only digital computers made possible mass automation in general, including the automation of visual nominalism."


Lev Manovich, The Mapping of Space: Perspective, Radar, and 3-D Computer Graphics.
Para outra consultas, vj., p.ex.:
http://www.manovich.net/
_

"A guerra do golfo foi uma guerra de vigilância contra camuflagem. Visibilidade contra invisibilidade, do olho humano contra o olho do computador. Aliás, este tipo de guerra baseou-se na ‘logística da percepção’, mas poderemos descrever estas técnicas visuais com mais precisão.
A percepção visual foi empregada num número limitado de maneiras como um instrumento para capturar e representar a informação acerca de formas e distâncias num espaço tri-dimencional. A eficácia deste tipo de guerra tecnológica como radar, imagens de infravermelho, sensores de lazer, e gráficos de computador 3D depende da automatização da função dessa visão, da automatização que começou com a perspectiva Renascentista.
Hoje o uso destas tecnologias estende-se muito para além da guerra, mas em todas as esferas da indústria e da ciência. Será que existe um conceito apropriado para descrever a função da visão para a qual elas se automatizam?
Para Platão haviam as partículas sensíveis, mas estas não eram mais do que a pura reflexão de Ideias ou Formas. Aristóteles criticou Platão declarando que as substâncias primárias não eram ideias mas antes coisas individuais tais como o são em particular os homens ou os animais. Estes pontos de vista opostos continuam a ser debatidos na filosofia escolástica. O ponto de vista de Platão deu origem ao realismo e o de Aristóteles ao nominalismo. Este ensaio tratará da automação no século XX, a qual poderá chamar-se nominalismo visual - o uso da visão para capturar a identidade dos objectos individuais e dos espaços mediante o registo das distâncias e das formas. (…) mas apenas os computadores digitais tornaram possível, de uma maneira geral, a automatização em massa, incluindo a automatização do nominalismo visual.”

Tradução de Luís de Barreiros Tavares e Isabel Nunes


Clones
"Periodicamente vão surgindo notícias que apavoram as boas almas. Estaria a ser possível que outros seres surgissem, clones, replicantes, robots orgânicos, sabe-se lá que mais. A primeira reacção é de medo, mas esta não oculta a inveja profunda que seres frágeis e finitos como nós têm relativamente a outras formas de vida mais potentes, mais belas, ou mais duradouras. Philip Dick descreve uma sociedade de caçadores, de Blade runners, encarregados de abater esses hiper-seres em revolta contra a obsolescência que lhes foi embutida em contraponto miserável com a sua beleza e força. Proibi-los é a forma actual de matá-los, antes de que nasçam. Mas se tais seres superiores fossem possíveis, seriam os primeiros a olhar com piedade para todos estes medos e invejas, tudo compreendendo, como nós percebemos com alguma nostalgia os dinossauros que desapareceram. Tal piedade seria ainda um resquício daquilo que um dia fomos, mas sinto-me mais próximo daqueles que, bem-humorados, encolhem os ombros perante tanta vontade de sobrevivência. Será o humor perante a nossa fragilidade que nos irá salvar... aos olhos daqueles que estão a caminho.
José A. Bragança de Miranda, Envios, Uma Experimentação Filosófica na Internet, Lisboa, vega, Col. Comunicação & Linguagens, 2008, p.39.
_

"Por parte da tecnologia dos computadores tem sido dito que estes, progredindo rapidamente através de uma sequência de gerações tecnológicas, estão a adquirir cada vez mais propriedades características da vida (reprodução, locomoção, metabolismo com o meio ambiente) para além de atributos semelhantes aos do cérebro e das capacidades de cálculo, com que começaram a sua carreira evolucionária (Simons 1983, 1985). Formas de vida artificiais, seres bio-mecânicos, computadores com aparência de vida: estas criações ônticas mostram que as implicações ontológicas das biotecnologias e das novas tecnologias da informação são consideráveis e desafiam a metafísica descritiva recebida (a nossa imagem e equipamento básico do Mundo e suas articulações ontológicas) bem como as cosmologias comuns. Dessauer, um filósofo da tecnologia que escreveu na Alemanha de Weimar, caracterizou o domínio dos artefactos tecnológicos como "um quarto domínio" de coisas feitas, a acrescentar aos mundos comuns taxonomicamente denotados como animal, vegetal e mineral. Mas este quarto domínio de coisas feitas exerce-se actualmente com uma "causalidade descendente" sobre os mundos anteriores e refaz fronteiras e divisões, no seu seio e entre eles: rediferencia, desdiferencia e re-estratifica a cadeia pré-existente de seres naturais como matéria puramente manipulável, pondo entre parêntesis quaisquer atitudes ou piedades naturais que poderiam prejudicar o que aparece como um projecto faustiano de Gestão Total (e.g. Heim 1987) dos mundos orgânico e inorgânico. A vincada fronteira ontológica entre esses mundos bem como entre o natural e o artificial entrou agora na arena do "essencialmente contestável" (Gallie, 1964) à luz das capacidades tecnológicas contemporâneas".
Hermínio Martins, Experimentum Humano, civilização tecnológica e condição humana, Lisb. Rel.D'Água, 2011, p.28.

-
“Le paysage médiatique des réseaux électroniques de la communication exprime cette crise, celle d’une existence « diabolisée », non pas dans le sens d’une existence satanisée, ontologiquement pervertie, qui sert les forces du mal; mais dans le sens d’existence séparée. Dia/bolé s’oppose, en effet, à syn/bole, une image qui réunit.
Précipités dans l’immanence, nous vivons donc une existence séparée. Ce monde séparé est un monde structurellement fragilisé et se fait acompagner du sentiment de perte de ce que nous n’avons jamais eu et du sentiment d’attente de ce que nous n’aurons jamais. Ce sentiment est la conséquence de notre conception contemporaine du monde, envisagé sans genèse ni apocalypse, ce que veut dire sans fondement ni futur rédempteur.
La perception de la crise et les sentiments de perte et d’attente qui l’accompagnent sont mélancoliques, puisqu’ils ont un sens tragique, c’est-à-dire le sens d’un problème sans solution. Notre condition est, en effet, dans la contemporanéité, d’abattement et de malaise: nos pas n’arrivent plus à s’appuyer sur «du roc, du cap ou du quai» (Sophia Mello Breyner), capables de nous garantir un fondement solide, un territoire connu et une identité sûre. Nos pas sont aujourd’hui incertains, ambivalentes et intranquilles, des pas de déséquilibre et d’inquiétude, figurant la condition humaine comme énigme et labyrinthe, dans le mouvement permanente d’un voyage de traversées sans fin."
Moisés de Lemos Martins, (2011), «Médias et mélancolie – le tragique, le baroque et le grotesque», Sociétés, 111, pp. 17-25.

_


“ Esta queda na natureza manifesta-se, aliás, pelo facto de a técnica permanecer de olhos postos nas qualidades, nas formas e nas ocorrências da natureza. Mais do que uma transcendência da natureza o que a técnica nos propõe, com enorme sistematicidade, é a sua imitação radical, isto é, uma imitação que, desta vez, pretende dispensar toda a mediação. Por isso domina, mesmo nos programas mais ousados das ciências que visam biologicamente ou informacionalmente a vida, uma terminologia efectivamente ligada à mimesis: «clonagem», «replicação», «simulação». Independentemente das novas realidades e até dos novos seres que possamos ver surgir destes programas, trata-se de uma criatividade cujo fundamento é, ainda, o da imitação, pelo menos formal, dos processos e movimentos da vida. As sínteses que caracterizam as ocorrências espontâneas ou as produções verdadeiramente originárias da natureza, são aqui, porém, o efeito ilusório de um exaustivo mapeamento analítico, complementado de minuciosos procedimentos construtivistas e composicionais: a clonagem é possível graças ao mapeamento exaustivo do genoma humano; as estruturas rizomáticas das redes tecnológicas da informação, têm por base uma realidade descontínua de pontos; e tal como a sequência de frames é o que permite a montagem cinematográfica e essa extraordinária ilusão de vida que é o cinema; as unidades lógico-matemáticas são o que permitem as novas simulações das imagens digitais. O ponto de partida de todo o efeito de síntese tecnológica é o descontínuo e o cálculo do descontínuo, ou o que designamos hoje como a informação e processamento da informação, em condições de extrema aceleração. Os efeitos simulacrais mais ousados que se esperam actualmente dos sistemas de realidade virtual parecem depender na sua maior parte de uma aceleração ainda maior deste processamento, e por isso, se investe já, hoje, na possibilidade matemática de uma nova geração de computadores."
Maria Teresa Cruz, O Artificial ou a cultura do design total.
-
“Tal como Galáxia de Gutenberg, de McLuhan, quanto à imagem escritural, L’image-mouvement e L’image-temps têm uma importância decisiva para a história dos media no que concerne à imagem audio-visual. Temos o pressentimento que se pode encontrar em Deleuze algo tão radical quanto a invenção da Ideia em Platão: meter a palavra na imagem. Como é que se pode começar a dizer isto? A linguagem transforma as imagens e os signos em enunciados. Temos uma árvore batida pelo vento à nossa frente. A linguagem diz: «é uma árvore que abana». Ora isto, por um lado, não é a árvore batida pelo vento à nossa frente, e, por outro lado, isto dá lugar a imagens e signos, alimentando o «visível» e o «enunciável» … Quer dizer que a palavra (fala), por um lado, restitui a imagem ao remeter para a imagem, transformando assim a imagem e apagando-a (alterando o que se vê), mas, por outro lado, faz inevitavelmente outras imagens (alterando o que se vê e o que se diz). Ora, o que é que o cinema tem aqui de novo, nomeadamente o cinema sonoro? A ideia de Deleuze será esta: o cinema atira, digamos assim, os enunciados para as imagens, vindo a alcançar uma «imagem sonora». Uma «imagem sonora» é uma imagem em que nem o som diz ou pretende dizer a imagem, nem a imagem mostra ou pretende mostrar o som. Há uma separação (uma «disjunção» - «os mais completos exemplos da disjunção ver-falar encontram-se no cinema» [F,71] – entre o «visível» e o «enunciável», ou uma sobreposição estratigráfica. (Experimente-se, por exemplo, tirar o som quando alguém fala na televisão, quando as imagens são muito determinadas pela palavra. Começa-se a ouver. Não é que se tenha libertado só a imagem, destacou-se também a fala, pôs-se a fala sozinha. E isso só é possível na imagem audio-visual – não é possível, por exemplo, na rádio, onde aparentemente a fala já está sozinha. É preciso querer a imagem, estar à espera dela, dirigir os olhos, como mostrou César Monteiro. O cinema trabalha, pode trabalhar, com isso.) Está tudo a começar.”

Edmundo Cordeiro, Actos de Cinema, crónica de um espectador, (2004), Angelus Novus, Coimbra, p.22 [último parágrafo do prólogo]

"Inicia-se assim uma «virtualização da óptica» (14) suportada hoje pelo carácter discreto e puramente numérico de cada um dos pontos das novas imagens digitais (os pixels). tmabém para Friedrich Kittler, a era algorítmica da imagem corresponde à ultrapassagem das leis da óptica pela "pura lógica algébrica": «Não se trata pois de como os computadores simulam a percepção óptica, mas sim de como a iludem (...). Eles iludem o olho, (...) com a aparência de uma imagem quando, na verdade, o conjunto de pixels e a sua acessibilidade discreta possui antes a estrutura de um texto composto de letras soletráveis. Por isso, e só por isso, não constitui problema fazer conviver nos monitores dos computadores um modo textual e um modos gráfico». A modelação simbólica e visual do ciberespaço expressa assim hoje, com toda a clareza, a importância da relação entre espacialização, matematização e algebrização que tanto a escrita como a perspectiva primeiro explicitaram (16)."

(14) A expressão é de Friedrich Kittler, no ensaio "Computergraphik. Eine halbtechnische Einführung", 1998 ( http://www.hydra.umn.edu/kittler/graphik.html ), o qual, pela sua inteligente e acessível explicação tecnológica, reforça em muito a nossa compreensão deste processo.
(15) KITTLER, Idem.
(16) Num ensaio que relaciona precisamente as invenções do alfabeto fonético e da perspectiva, Friedrich Kittler e Sara Ogger interrogam-se se sobre se o computador não corresponderá hoje finalmente a uma culminação deste processo. Não a um regresso mas a um fechamento do processo, em jeito de uma banda de Moebius: «No percurso que vai da ordenação de valores fonéticos discretos no alfabeto grego (stoicheia) até ao reconhecimento óptico de caracteres como automatização da leitura não poderemos ver uma espécie de banda de Moebius da cultura técnica ocidental...? » («Perspective and the Book» Grey Room, Fall 2001, pp. 38-53).

Maria Teresa Cruz em: Maria Teresa Cruz, e José Gomes Pinto (org.) (2009) As Artes Tecnológicas e a rede internet em Portugal, Lisboa: Vega, Comunicação & Linguagens.


_______

Talvez à maneira de um preliminar para um possível manifesto intempestivo - e um tanto delirante, sim - sobre a questão da crítica da técnica e de uma certa técnica da crítica.

O que é que acontece quando se pensa, se escreve, se fala ainda de algo à luz de um certo lógos quando este é já atravessado e pensado à luz de uma certa técnica? Sem que, porém, se dê bem conta disso? Em que sentido? No sentido de não se haver ainda suficientemente pensado este movimento. A linguagem da informação que já se produz à luz da linguagem (de uma língua? Vj. Heidegger, língua técnica e língua de tradição) técnica-lógica (o digital) não retroagirá já sobre uma certa crítica, seja positiva (tecnofilia) ou negativa (tecnofóbica) da técnica e da informação? Paul Virilio (Arquitecto e urbanista de formação que comecei a ler no princípio dos anos 80, bem como Baudrillard noutra perspectiva - reversibilidade dos signos, hiperrealidade, etc.) na linha das suas reflexões sobre a velocidade e a aceleração (dromologia) diz num vídeo publicado no Youtube que já não se trata de 'transparência' mas de trans-aparência: “aparência instantaneamente transmitida à distância pela virtude do tempo real” http://www.youtube.com/watch?v=yQ-M38oW1nQ&feature=related
Sobre a perspectiva renascentista, estereofonia, estéreo-realidade, etc, veja-se : http://www.youtube.com/watch?v=W3s3OM2V1As
É uma observação muito interessante. Virilio chega a atribuir-se um papel: "limito-me a ser um observador" (Youtube, egs). No entanto, esta como muitas outras críticas da técnica e das novas tecnologias, interessantes ou não, descrevem fenómenos que, por vezes, não sei por que efeito de uma qualquer interacção, já a pensam sem que se dêem sufientemente conta disso. Esta é uma tese que gostaria de desenvolver. Confesso que não domino as questões do binário 0.1., dos pixéis, das gráficas, dos bits, dos bytes, linearização, etc. Mas julgo haver questões importantes a reflectir sobre isto. Aliás, se há temas nestas esferas que me despertam a pensar são estes.
É a aceleração da informação (velocidade, instantaneidade, tempo real, etc.) que nos nossos dias interpela os discursos que pretendem descrevê-la, ou, se quisermos, conhecê-la. Pode-se mesmo falar de intersecção e de retroacção, tendo em conta no que respeita a este último termo o que certos autores na esfera da cibernética (N. Wiener) desenvolvem nos seus estudos: p.ex, o ‘feed back’?
Muitos discursos e textos manifestam por seu turno essa torrencialidade, curiosamente na forma da profusão das suas publicações e da sua produção. Vejam-se as modas que hoje proliferam sobre a crítica da técnica (sociotécnica, sociologia da técnica e filosofia da técnica, incluindo também a crítica e a teoria da cultura). Outro tema em destaque é a chamada tecnociência. Esta crítica alimentando-se da técnica e das novas tecnologias de forma demasiado circular, que por sua vez dela parece alimentar-se. Um pouco como a transposição do já antigo chavão: “o homem produto e produtor de cultura. ” Agora: “o homem produto e produtor de técnica.” Uma estranha fagia abeira-se do 'Ser'.
Há qualquer coisa que vai na onda e surfa bem.
Em que sentido afirmo que há uma torrencialidade de produção crítica que não dá bem por se alimentar dela própria? No sentido de já não se tratar de uma circularidade hermenêutica (círculo-hermenêutico), de intertexto, etc. Mas, de um efeito qualquer - que não determino bem (ainda está em estudo, pois este texto é um preliminar, sendo uma questão que me interessa um pouco há margem de certas modas) - da própria luz da técnica (de uma trace técnica) sobre uma certa luz do lógos herdada com o começo da modernidade, das chamadas ‘razão ocidental’, ‘luz natural da razão’ (Descartes) até ao iluminismo, 'as luzes' (Kant) - Aufklärung -, vindo estes movimentos de toda uma caminhada que se inicia com o advento do lógos (Heraclito), caminhada, afinal, sem começo à vista. Ou mesmo de uma trace que é preciso re-pensar. Diria que estes discursos e interpretações aos magotes não traçam, na sua grande maioria, digamos assim, um compasso de pensamento. Mas talvez sejam ainda piores aqueles que falam e escrevem à mão e à boca cheias, letrados, que não falam da técnica nem são críticos dela para o bem ou para o mal. Para não falar da produção sem fim, como a literária, entre outras, numa avalanche de publicações - não vou citar nomes seja para que exemplo for. E porque não dão pela voragem paradoxalmente produtora das máquinas editoriais agenciadas pelos grandes poderes da informação e da informática, muito pouco ou nada tomam já o pulso do que é a força de uma certa densidade e intensidade da linguagem. É preciso trabalhar o movimento… Escreve-se, lê-se, fala-se, pensa-se às catadupas. Mas o «mal», se assim se pode dizer, não é esse. O problema é que, não dando por que vão embalados, é como se o não fossem, indo lentos, mas, na volta, muito rápidos de outra maneira, sem condições de poderem acompanhar o movimento do pensar, abrandando, assim, já, de outro modo. Pouco ou nada acorre enquanto algo que desperte a um sentido que não seja um certo fala barato. Não obstante o valor de certos autores - qui suis je? que sais je? - que certamente desenvolvem ideias com inovação e produzem pensamento. Mas na maioria das vezes a sua produção 'intelectual' e 'teórica' deixa-se perder na sua profusão facilitada pela fala, pela escrita e pela publicação. Falam como gralhas. Escrevem a torto e a direito. O que não quer dizer seja sempre assim, seja para que autor for. Portanto, mais do que generalizar, importa pensar o modo como estes processos se produzem.
Dá a impressão que tudo ou quase tudo o que escrevem publicam. Onde o falar e o escrever parecem agora misturar-se de uma maneira que não dá bem conta do seu movimento. Como se falassem para um dispositivo que transcreveria o que dizem permitindo deste modo mais escrita, cuja articulação à fala não creio bem trabalhada, levantando deste modo mais um bom motivo para nos interrogarmos sobre o binómio escrita/oralidade . Mas isto de oral e escrita também dá pano para mangas. Não tenhamos dúvidas, somos uma infinidade.
Se há uma escrita da técnica, uma ‘gramatização’ (como escreve Stiegler), não será que se impõe aí uma distanciação (não objectiva no sentido sujeito/objecto) que já não seja conforme à distanciação que a crítica da técnica opera em relação a ela [à técnica]? Porquê esta pergunta? É que a técnica interpela, intercepta a crítica dela como sublinhei acima. Mas será só isto? Não. Como? A técnica retroage sobre a sociotécnica e a filosofia da técnica. Não à maneira de intertexto, mas à maneira de um outro grau. Outro grau cuja luz da técnica (luz da velocidade e velocidade da luz – Virilio, "instantaneidade", "tempo real", etc.) se assim me posso exprimir, perpassa de modo inaudito a luz de um certo lógos e/ou escrita que supõem ainda descrevê-la. Mas já desfasadamente. Desfasadamente porquê? Porque há uma nova distanciação como mencionei acima. É esta distanciação, este espaçamento e temporalização, digamos, que importa questionar. Se me é permitido, acho pertinente neste contexto a interrogação sobre o papel do ‘não-fenoménico’, justamente, da ‘zona não fenoménica correlativa’, da “matéria de empréstimo” (veja-se citação da mensagem 7 deste blogue) e do aprofundamento das reflexões acerca da dupla articulação da linguagem em Martinet, que Fernando Belo tem investigado (double lien - Derrida, double bind - Bateson) e as questões da Linguística na mensagem aqui citada. Não podendo por ora desenvolver e fundamentar estas questões reenvio o leitor para as referências que aqui deixo.
O que é que acontece aqui? Cai-se num circulus vitiosus machina? Outra forma de circularidade? Em parte sim. Mas a aporia que daqui resulta inscreve, dela saindo, e portanto relevando, um espaço-tempo de interrogações que importa pensar. Se há um écran* – que já de si conota 'protecção' – tornado muro no qual agora por vezes se embate –, esse écran pode ainda permitir uma nova forma de pensamento reformulando – e usando uma alegoria – a meditação de Bodhidharma (monge e primeiro Patriarca budista vindo da Índia para a China, nesta fundando o Chan, futuro Zen japonês)** que permaneceu durante 9 anos frente a um muro ou parede de uma gruta, junto do templo Shaolin, e cujo silêncio fecundo emerge inovado desta torrente vertiginosa de informação e visibilidade a que aspira o pós-humano enquanto inconfessadamente ‘Outro’, que está para além (post) e que lá no fundo se sonha como pretenso 'Eu' imortal.

*Sobre o 'écran' vj. mensagem 6.
**Sobre o Zen Vj.

Luís de Barreiros Tavares

-
Uma recensão e uma tradução por José Pinheiro Neves e Luís Tavares:


_

_











.


-



"Mais, si nous devons parvenir à un chemin de pensée, il nous faut avant tout découvrir une distinction qui nous rende visible la différence de la pensée simplement calculante et de la pensée méditante."


"Ce qui importe est que nous soyons des gardiens et des veilleurs, veillant à ce que le message silencieux de la parole concernant l'être l'emporte sur l'appel bruyant du principium rationis entant que principe de toute représentation."



Heidegger, M., Le Principe de Raison [Der Satz von Grund], Trad. André Préau, Paris, Gallimard, 1996, respectivamente p. 256 e p.268.









Vídeo para instalação de Luís de Barreiros Tavares

-