quinta-feira, 28 de março de 2013

134. " Sentido clássico ´ser do ente´ ''? Ainda o Ereignis em Heidegger










L.T. : O que queres dizer com "como se o Ser voltasse ao sentido clássico 'ser do ente'"? Creio que a expressão 'ser do ente' reenvia para a 'diferença ontológica fundamental', justamente "entre Ser e ente", como escreves, rebatendo o 'ser como/enquanto ente' da tradição metafísica com ecos, nesta perspectiva, em Aristóteles (to on hê on). O 'ser do ente', expressão de Heidegger, remete para o ente é no/é pelo Ser, tal como Heidegger escreve algures (parece-me que, p.ex., em Identidade e Diferença). Pelo contrário, o ser como/enquanto ente abriu caminho para a tradição da metafísica ocidental que, segundo Heidegger, esqueceu o 'sentido do ser' (vj. Sein und Zeit) na medida em que o ser era compreendido, em última análise, precisamente como/enquanto ente. Ser era ente, de um modo geral. Ente herdado, por exemplo, do ser da Ideia (Idea - indicativamente ontológica) platónica e do ser teológico medieval, escolástico, com expressão máxima em Aquino. Donde a crítica heideggeriana da onto-teo-logia. Parece-me uma perspectiva, sem ter ido consultar textos. Mas também não sou heideggeriano.

27/03/2013

-

F.B. :  Está certíssimo, o que dizes. Mas como o Ereignis toma o lugar desse Ser doador - Ereignis doador de Ser e de Tempo - a hipótese que eu ponho é que o que é doado é 'cada ente' em seu ser (clássico) e temporalidade. Porque o Ser doador até aí, em diferença ontológica com ente, com cada ente, era este 'cada ente' que o Ser doava; e agora é o Ereignis que o faz! O quê? doação de 'cada ente', do seu 'ser e tempo'. Com efeito, até esta conferência, tanto quanto sei, nunca o 'ser' e o 'tempo' estiveram a par, como se 'tempo' fosse sempre o de 'cada ente' enquanto Ser era o doador. Ficando sem o seu lugar na diferença ontológica, o lugar que tu situaste bem e que durou até esta conferência, tempo e ser entram em parceria ao nível ôntico de 'cada ente' e ao nível ontológico do Ereignis. "Como se o Ser voltasse ao sentido clássico 'ser do ente". Entende-se agora?

27/03/2013



L.T. : Fica mais claro. Vou ler melhor sobre isto... 

28/03/2013

-

terça-feira, 26 de março de 2013

133. O 'Ereignis' - Heidegger - Uns apontamentos...






L.T. : Por falar em 'presença' e 'co-presença', no final do meu texto anterior, não é interessante e extraordinário o seguinte passo de Heidegger em Identidade e Diferença (Identité et Différence (1957), Questions I, Gallimard,)? : "Et l´être? Pensons l'être en son sens initial, comme présence. L'être est présent à l'homme d'une façon qui n'est ni occasionelle, ni exceptionnelle. L'être n'est et ne dure que parlant à l'homme et allant ainsi vers lui. Car c'est l'homme qui, ouvert à l'être, laisse d'abord celui-ci venir à lui comme présence. Pareille aproche, pareille présence a besoin de l'espace libre d'une éclaircie et ainsi, par ce besoin même, demeure transpropriée  à l'être de l'homme." (p.266)
E não é de ter em conta que Heidegger nos fale nas páginas anteriores de co-pertença ("coappartenance" (pp.261-266); "comum pertencer", na versão brasileira por Ernildo Stein)? E também, nas páginas seguintes à citação acima, a meditação do Gestell (das Gestell; Ge-Stell)? E logo a seguir aborde o Ereignis (acontecimento, co-propriação...), estabelecendo alguns nexos com estes temas?
Sabemos que consideras decisivo Tempo e Ser com a meditação do Ereignis (1962). No entanto, gostaria de perguntar-te: como marcas o Ereignis na linha do que apresentei acima e ao mesmo tempo no contexto de Zeit und Sein que me é ainda um tanto inacessível?
Espero que haja aqui algum ponto que te interesse e te dê tempo a pensar.

24/03/2013

-


F.B. : Quanto à citação do Heidegger, devo dizer que não sou heideggeriano em sentido estrito, interessam-me as questões que ele abriu, transformou, mas leio-as tendo em conta o Derrida, por um lado, e tanto quanto eu o entendo, por outro. Essa citação que te entusiasmou não me diz grande coisa.

Sobre o Ereignis de 62, há que dizer que  julgo que para ele tem algo como o que o Kuhn diria uma mutação do paradigma civilizacional da modernidade, algo de visionário do que vem acabar e ultrapassar a metafísica.
 O que eu fiz foi entendê-lo no sentido da diferença ontológica entre Ser e ente (o Ser como doação que se retira, phusis ou Terra, noutros textos), que vem desde o princípio dos anos 30 (A essência da Verdade): o que me parece fabuloso é ter substituído o Ereignis ao Ser e colocar este em linha com o tempo, como se o Ser voltasse ao clássico 'ser do ente' mas que, com o tempo, diria a reviravolta de Ser e Tempo para Tempo e Ser. E o que dá, o Ereignis, implicar multiplicação de entes e temporalidade ('acontecimento' em sentido corrente), e já não o Um, o Nome simples (final do texto de Derrida La différance, nas Marges). O que haverá de visionário (cheirou-me de certos textos, agora já não sei onde) não será incompatível com isto, pelo contrário, mas isto é mais alcançável (por mim, pelo menos). Medir, como tentei no cap. 13 de Le Jeu des Sciences, a maneira como ele descobre e ultrapassa Aristóteles, a oposição ousia / acidentes.
Voilà.

25/03/2013

-

domingo, 24 de março de 2013

132. 'Não será que...?' [título a alterar em breve]







L.T. : Escrito à maneira de esquema na mesa do café. Transcrito agora, só com alguns reparos.
Cá vai texto:

1. Não será que se descobre, com a técnica e as ciências, o invisível que permanece invisível? Não será que já antes de Platão, mas principalmente a partir dele, se falava de invisíveis a olho nu (os inteligíveis - noeta, eide -; aorata...)? Não será que os genes (talvez mais os genomas) são de algum modo descendentes dos géneros, dos universais? Não será que estes eram invisíveis ao tempo de Platão e Aristóteles? Não será que os genes são da ordem do físico, bio-químico, enfim, da physis em sentido alargado? Ou ainda de um plano dos sensíveis (mas invisíveis)? No entanto, não será que os genes (poderíamos falar de átomos e de muitos outras designações microscópicas com as ciências actuais) só são "visíveis" técnica e cientificamente? Não será que a consumação do logos na sua formulação silogística aristotélica, e respectivamente o estabelecimento da proposição (protasis) - a par da "invenção da definição", do princípio de não-contradição, do apofântico, do categorial (categorias como summa genera), etc. - se encontram na origem de um longo processo que vem a ser chamado actualmente, contemporaneamente, 'prótese técnica' (p.ex., os dispositivos na sua caracterização protésica)? Prótese técnica podendo reenviar eventualmente para o jogo semântico prosthesis (adição, aplicação de uma coisa sobre outra, acomodação), pro-thesis (colocar diante...), pro-stassô (colocar perto, pôr à frente, no sentido também de protecção, ecrã...), protasis (proposição, premissa, prótase) embora estes termos gregos não estejam obrigatoriamente relacionados etimologicamente? Mas onde acaba e começa a etimologia? Mas não é o lugar nem o momento para analisar estas questões que por ora me ultrapassam.

2. Não será que a "inversão do platonismo" (Nietzsche, Deleuze), pode ter começado, ou pelo menos ser admitida como possibilidade, num certo sentido, já em Platão, quando ele apela à passagem pontual pelos simulacros numa espécie de identificação com o papel do sofista, p.ex., no  chamado 'parricídio' em O Sofista, contradizendo nesse passo a posição de Parménides? Não será que aí ele ensaia a título de experiência o relativismo sofístico?
Não será que, numa outra perspectiva, a inversão do platonismo com Nietzsche é já o culminar de todo o processo de inversão inevitável? Não será essa inversão o desdobrar, o duplicar com o Gestell (Heidegger)? Não é interessante que um dos termos correlativos de Gestell é 'dispositivo' (vj. Agamben, G., Qu'est-ce q'un dispositif?, Rivages Poche, pp.27-28)? Quer dizer, aquela inversão não vem a par da técnica e de todo o caminho que desponta uma outra vez, p.ex. com a ciência moderna? Não será que com técnica e com as ciências somos de uma maneira inaudita mais platónicos que Platão, uma vez que com ela o plano teorético das formas se realiza sensível e experiencialmente - nomeadamente com os simulacros reais, a alta definição, alta resolução, tecnologia de ponta, as realizações e descobertas científicas, etc. -, sendo que este desdobramento ou duplicação da inversão se dá quase, se não totalmente? Então não se trata propriamente de inversão do platonismo? E por isso, não será que a inversão do platonismo convém ser repensada no seu mesmo desdobramento? Pois não se trata já de meditar sobre este estranho e complexo 'meio' que nos turva o olhar e a visão de tanta de visibilidade? Não será necessário repensar este 'meio', este media, diria? Ou duplo meio? Ou sobre-meio? Stiegler fala algurees de uma "envolvente" no âmbito das relações dos humanos e dos objectos técnicos (ver §2 do meu texto publicado na Revista de Comunicação e Linguagens (UNL):

Pensar o 'meio' da técnica, das novas tecnologias e das ciências? Não se trata aqui de pensar somente os objectos técnicos. Gestell, enquanto meio desdobrado no jogo dos invisíveis conceptuais, noéticos da tradição da metafísica ocidental, com os invisíveis da química, bioquímica e física, p.ex. (não falo dos átomos segundo Demócrito e Lucrécio...) das ciências ditas actuais? Por outro lado, não importa pensar a problematização dos visíveis e das chamadas aparências (doxasta, aistheta, etc.) com os, afinal, visíveis (ou não?) das imagiologias, das imagens astronómicas (hiper-macro), das imagens microscópicas (hiper-micro) electrónicas, etc. etc.?
O que é a visibilidade e a invisibilidade?

3. Não será que, de um certo modo, à maneira de Platão, afinal os visíveis eram os inteligíveis, e os sensíveis, visíveis só em aparência? Na linha do dito de Parménides; mais ou menos isto: "multidão enigmática, de duas cabeças, vagueiam cegos e surdos..."? 
Transcrevendo depois, de uma tradução de José Trindade Santos, 1997) : "[...] mortais, que  nada sabem, / vagueiam, com duas cabeças [...]/ [...] e são levados,/ surdos ao mesmo tempo que cegos, aturdidos, multidão indecisa [...]" (Parménides, frg.6)

4. Não será que com Platão constatamos que as formas "já lá estavam", co-presentes aos sensíveis, descobríveis pela ironia e maiêutica socráticas? Não será que com a contemporaneidade, um certo virtual do que existe sem vermos (genes...) "já lá está" também, mas com a physis? Não serão, neste sentido, o 'descobrir' e a 'descoberta', em termos científicos, perspectiváveis num plano outro que não o gnoseológico, dos universais, dos géneros, das formas, do Eidos, gregos, etc.? Não será que a descoberta destes corresponde à invenção da definição? Não será que no plano científico da modernidade, com Galileu, a descoberta se estabelece em analogia ou correspondência com a invenção? Não será o telescópio inventado por Galileu contribuidor para a descoberta, por verificação, do heliocentrismo?

5.  Não será o 'haver' da ordem do 'há' (do il ya - Levinas), do es gibt, do 'há', do 'dar-se', 'dá-se' do 'ser-o-aí' do Dasein (Heidegger)? Como questionar a physis de Aristóteles neste contexto?

6. O que se joga entre a co-presença noética (inteligíveis, eidos, formas) e aisthética (sensíveis, imagens...) em Platão (embora saibamos que se fale também da anterioridade das formas - pré-existência - 'descobertas' (?) pela reminiscência - anamnesis)  e a co-presença do virtual, simulacral (que é técnico e científico) das coisas descobertas mas invisíveis, algumas até já, desde há ums boas décadas, puras formulações matemáticas enquanto partículas (Heisenberg), etc.?



22/03/2013


-

F.B. :  Não é uma questão, como de costume, mas uma avalanche de 'não será que'?
Onde eu encontro a minha dificuldade em entender a conexão entre elas [questões] é na noção de 'inversão do platonismo'.
Eu julgo que tal coisa nunca existiu, nem em Nietzsche nem em Deleuze, como aliás também nunca Marx inverteu Hegel. Deixando Deleuze de lado, tanto Marx como Nietzsche (e Freud, Heidegger, Derrida) após um gesto de inversão deslocaram-se para fora do paradigma do platonismo em sentido lato, para fora da ontoteologia, e o gesto de inversão foi já comandado por essa saída, não existiu sozinho, como um primeiro gesto que precisava dum segundo: foi um duplo gesto, se quiseres.
Postas assim as coisas, a questão da visibilidade e invisibilidade como tu a pões permanece platónica invertida? Se for o caso, excluem-se uma à outra e não vejo maneira de saber em que é que consiste a invisibilidade.  A visibilidade releva dos nossos olhos que tem limites, o que não quer dizer que não possa ser tida em conta pelos organismos (o sistema imunitário tem a ver com impedimento de bactérias, estas são unicelulares, são 'invisíveis' aos olhos mas tidos em conta pela evolução). O microscópio também releva da visibilidade, como os óculos dum míope. Quanto à invisibilidade, o eidos e outras abstracções que a definição produziu como 'inteligíveis', isto é, sem apoio no 'sensível', foi 'desconstruída' por Derrida já que ela só se entende enquanto diferença entre sensíveis (palavras sonoras ou escritas), a qual não só não é sensível (tratei disso há algum tempo: a diferença entre duas cores não é uma côr), como também não é inteligível, porque diferença entre sensíveis.
Onde as tuas questões terão pertinência, creio, é no facto de que, se um leigo vê ao microscópio uma célula', um gene, uma molécula, um  átomo, não sabe que vê isso, só vê desenhos, riscos, cores, pintura abstracta. O que significa que, assim como diante da experiência da queda duma bolinha por Galileu o criado dele só via coisas engraçadas (tipo 'ai que giro!) e não uma experiência científica, o microscópico só permite ver o que os cientistas nos dizem com a teoria científica e nesse sentido por certo que relevam de Platão e da invenção da definição. Haverá aí indissociabilidade dentre o microscópio, a molécula vista nele e a teoria bioquímica, entre o sensível, a técnica e a abstracção teórica, e não platonismo, não visibilidade e invisibilidade, não sensível e inteligível.


24/03/2013

-

Adenda sobre o Sofista e o parricídio. No meu ensaio de leitura "Sócrates e Platão", em português e francês nos meus blogues, pareceu-me que o que chamamos platonismo teve o seu auge na República e no Banquete, e que o Parménides introduziu a sua crítica com a conivência de Aristóteles, o Teeteto que se lhe segue enveredando por um caminho pós-parmenidiano, o do saber sobre as coisas deste mundo: o par 'mesmo / outro' do Sofista será a descoberta grande desse caminhar (com a grelha de dicotomias inicial). O Timeu está muito perto da phusis de Aristóteles (ousia: hulê, morphê, sterêsis), mas se não chegou lá abriu-lhe o caminho, o discípulo foi-o mais do que se costuma dizer, creio. Mas não creio que se possa falar de 'relativismo sofista' num texto que busca justamente mostrar como é que é possível o discurso falso dos Sofistas!

24/03/2013

-

131. Ao tempo de Platão e Aristóteles, a) "havia genes" ou b) "já existiam genes"?






L.T. : Obrigado pelas respostas.
Sim, mas os genes - também estou a pensar no genoma - são invisíveis a olho nu ou vista desarmada...
E se em vez de "no tempo de Platão e Aristóteles havia genes?", "no tempo de Platão e Aristóteles já existiam genes?"?

20/03/2013


F.B. :  Não vejo que diferença fazem as duas formulações.

21/03/2013




quinta-feira, 14 de março de 2013

130. Continuação. Algumas impressões sobre os 'genes' contemporâneos e o 'génos' e 'gene' antigos









 L.T. :

"Estrangeiro: Ora, os mais importantes de entre os géneros são os que acabamos de passar em revista : o ser mesmo, o repouso e o movimento.
Teeteto: Sim, e de longe." (Platão, O Sofista, 254d)

Não esperava uma resposta tão rápida. Resposta complicada. Boa ginástica de escrita, se me permites a opinião.

Sim, vejo-me grego com estas coisas. E há as afinidades, digamos, terminológicas e etimológicas, do contemporâneo 'genes' com o antigo 'génos', 'gene'...
Consultei a entrada 'Génos' no Termos Filosóficos Gregos do F.E.Peters, e nesta alguns reenvios bibliográficos.

Terei de ler melhor este teu texto na muito interessante referência à alma. Quanto ao 'descobrir' e à 'descoberta' nas ciências, parece-me uma questão bastante delicada. Deixarei para outra altura.

Mas 'genes', diria mais da phusis; 'génos', 'gene', do logos.
Ou não é?

12/03/2013




-



F.B. :
“Mas 'genes', diria mais da phusis; 'génos', 'gene', do logos

1. Boa questão, os ‘genes’ transmitem-se de pais em filhos, o genos é a linhagem, a família de antepassados em descendentes na mesma casa e mantendo o mesmo nome, é o que no genos (género) é generoso. Ora, com a grande excepção de Parménides (e de Platão), o que suscita o interesse dos pensadores anteriores à definição, exacerbado em Heraclito, diz o Peeters que tu citas, é a mudança. Qual é a origem das coisas, das gentes? de que condição nasceram? qual o nascimento? Tudo isso é questão de genos, a linhagem são os que têm a mesma origem. Ou seja, para onde aponta, no logos, a palavra genos é para a geração, ou seja para a phusis.
2. E a meu ver, é o grande espanto aristotélico da phusis: os vivos terem o movimento por si mesmos, katha autôn, as coisas crescerem, de muito pequeninas (a phusis gosta de esconder-se, Heraclito?), os vivos serem frágeis, à vista das rochas que são fortes e não crescem. Não conheço grande coisa além de Platão e Aristóteles, mas é fácil de pensar o alvor do pensamento grego, para nós o alvor do pensamento sem mais, como a fascinação por este crescimento, a misteriosa fecundidade, os genes e as células que a biologia veio enfim a descobrir.
3. Fecundidade, generosidade: contra a lógica medieval e cartesiana (do menos não pode vir o mais), do menos cresce o mais (alimentando-se, claro: a lógica não deixa de o ser). Mas sem se saber como é que as moléculas do alimento, do animal ou planta comidos, se tornam nas nossas próprias moléculas, o espanto impõe-se. Quando se sabe, percebe-se que os outros vivos, primeiro os progenitores, depois os comidos, são condição de cada um que cresce: katha autôn pressupõe katha heterôn. E o espanto é ainda maior, acho que Aristóteles não soube disto.
4. Que o genos, género, tenha dado o ‘geral’, sempre segundo o logos, dá a entender que phusis e logos andaram sempre a par, que o modelo que os Gregos encontraram para pensar o pensamento foi o da geração: na leitura que Derrida fez do pharmakon em Platão, ele mostra como o logos é pensado como o filho do que o pronuncia (enquanto que a escrita, também é filha, mas bastarda, órfã). E também na República (507c-508c) se diz que o Sol é filho do Bem. O que implica que o Eidos do Bem (inteligível) gera, dá à luz, que ele seja o pai do sol (visível), portanto talvez, de forma geral, que os Eidê celestes geram os entes sensíveis (há não sei onde um argumento de Aristóteles contra isto). Todavia, sobre a geração não há senão ‘opinião’ (doxa) e não saber, como sobre a ousia (534a).
5. S. Paulo tem um problema parecido para pensar a ‘potência’ do Messias ressuscitado, em termos de ele ser ‘filho de Deus’, que é o Senhor de toda a potência. O motivo de ‘pai’ atribuído a Deus não existe na Bíblia hebraica, tenho para mim que foi Paulo que o introduziu no novo Testamento, tendo recorrido ao platonismo helenista e ao verbo ‘definir’ na carta aos Romanos (cap. 1, 4).

14/03/2013

-

segunda-feira, 11 de março de 2013

129. Genes no tempo de Platão e Aristóteles? Uma questão mais complicada do que parece?









L.T.:


"Será diferente a 'invenção' da phusis da do logos? Só há definição deste e neste, as da phusis são descobertas pelo
logos."

Aí vai ela: no tempo de Platão e Aristóteles havia genes, por exemplo?


12/03/2013

-


F.B. : Os genes foram inventados pela célula, com a célula. Os biólogos (logos da vida) contemporâneos descobriram-nos, não os inventaram. E quando os descobriram, descobriram-nos como tendo para cima de 3 biliões de anos, portanto também os havia já no tempo de Platão e Aristóteles, que não sabiam disso, e nesse sentido, no 'tempo' deles não havia. O 'tempo' deles, sendo o duma ruptura importante na maneira de saber que permitiu, com muitas outras coisas, claro, que num 'tempo' 25 séculos mais tarde se descobrisse o inesperado. Para Aristóteles nomeadamente, que definiu os vivos como os que têm movimento por eles mesmos, por uma 'alma' (diferente da de Platão, mas no Fedro também é a alma que define o automovimento dos vivos). Os genes - mas aqui tenho que mudar os termos, os genes são parte das células - as células são outra coisa do que a 'alma', rigorosamente incompatível com ela, pois só têm movimento por serem alimentadas, mas fazem tudo para se alimentarem, esse esforço por se alimentarem faz parte essencial do seu movimento, é tudo o que as células fazem. O que nenhum dos dois grandes filósofos souberam foi que os outros estão antes (como doadores) de cada vivo, o que contraria radicalmente a ideia de 'alma': e os biólogos de hoje também não parecem sabê-lo, descendentes que são destes dois: ainda têm restos de alma e não sabem, ficariam indignadíssimos se lhes dissessem, é outra maneira de dizer o que escrevi em debate com Teresa Avelar.
Como vês, é mais complicada do que parece, a tua questão.

12/03/2013

-

sexta-feira, 8 de março de 2013

128. A invenção da definição - retomando







L.T. : "A invenção da vida, da célula, foi a dum ‘mecanismo’, uma assemblagem de moléculas reunidas a partir dum mar de moléculas equivalentes, uma nova unidade capaz de se reproduzir adentro desse mar de moléculas, que a podem alimentar mas também destruir. " (num dos últimos textos que me enviaste)

Aqui parece-me que a expressão ("a invenção da vida") se articula mais num contexto da tua "filosofia com ciências", para a compreendermos no sentido do processo da manifestação do 'vivo' nas ciências e num pensamento fenomenológico destas, na tua proposta de uma "Nova Fenomenologia", etc. Como se a própria natureza também inventasse. Por outras palavras, como se a invenção fosse estruturante da natureza.

No entanto, quando te referes no contexto de Sócrates, Platão e Aristóteles (Metafísica, 987b), creio que a "invenção da definição"  inscreve-se segundo um ponto de vista conceptual, ou se quisermos, na linha dos Universais (Aristóteles), do apofântico, de um Logos, etc.

Há uns tempos perguntei-te se a expressão "invenção de definição" era tua (bLogos, 19). Respondeste que era do Aristóteles. Mas voltei a consultar, e a palavra 'invenção' não vem lá. Portanto, parece-me que há aqui uma reformulação tua, que não deixa de ser bastante interessante. Digamos, como se no zoon echon logon de Aristóteles a invenção também se manifestasse. Como se a 'invenção' fosse estruturante do logos.

Em suma, se é que isto faz questão, como compreender estas duas vertentes: 1. a phusis e a invenção; 2. o logos e a invenção?

 06/03/2013

-


Peri horismôn epistêsantos prôtou tên dianoian, que traduzo assim: o primeiro a ter voltado cientificamente o pensamento para as definições, ou assim: o primeiro a ter voltado em termos de saber o pensamento para as definições.

É certo que o termo ‘invenção’ não pertence ao vocabulário filosófico grego.
É diferente de ‘descoberta’, que pressupõe algo até então desconhecido mas existente que é encontrado (invenire, em latim) e que é o termo habitual em ciências ; a invenção é mais termo de engenheiros, por exemplo a invenção do automóvel, e supõe que se trata duma conjunção de elementos que vêm a ter futuro, a reproduzir-se. Assim o motivo de paradigma de Th. Kuhn, por exemplo, a Física do Newton, os Princípios matemáticos de filosofia natural, contendo embora descobertas mas o conjunto releva duma invenção, já que originou um novo movimento científico com maior alcance, comparando a Galileu e os outros pré-newtonianos.
A dificuldade que porá a noção de invenção aplicar-se à célula, ou à reprodução sexual, ou a qualquer nova espécie, à ‘natureza’ enquanto evolução, resulta apenas, quero crer, a supor-se que uma invenção tem que ter um ‘autor’, como Newton, no exemplo que dei. Mas o do automóvel, ou as invenções da televisão, computadores, e coisas assim que não têm ‘um’ inventor conhecido, a própria electricidade desde a invenção da pilha por Volta em 1800, que permitiu dispor de corrente eléctrica e portanto toda a teorização sobre ela e as invenções do século XIX, todos estes casos mostram bem que as invenções são devidas a vários, que acrescentam ao que outros fizeram. O próprio Newton retomou uma frase medieval para dizer que era um anão aos ombros de gigantes, os antepassados que o tornaram possível. Se olharmos para o processo de invenção (cap. 10 do Le Jeu des Sciences) e para o aleatório, os acasos mesmo que o tornam possível, descrevê-lo, implica mostrar, se possível, como os elementos da conjunção se aliaram uns aos outros: haja ou não ‘autor’ conhecido!
No caso da ‘definição’, o papel dos três filósofos é bem diferente, na minha leitura. Sócrates inventou-o por razões de pedagogia ética, digamos, para que os seus jovens interlocutores consigam definir tal ou tal virtude e, conseguindo-o por eles próprios, a pratiquem por essa convicção ganha com a definição da virtude. Platão faz dos ‘definidos’ do mundo da ética alem das virtudes, o belo, o bem, o justo, e as coisas da razão, a grandeza, a força, e por aí fora, faz delas as Formas ideais celestes, eternas, contempladas pela alma antes de nascer num corpo, tendo em seguida acrescentado as outras realidades (mas não o ‘mal’ nem o ‘lixo’, se me não engano). Já deu um passo em relação a Sócrates, mas raramente define, nunca vi e procurei. Como dirá Aristóteles, ainda se ocupou apenas de ética e politica, como Sócrates. O Estagirita aplicou-a às coisas das ciências, zoologia, política (como ‘ciência’), tragédias e outras obras poéticas, retórica, silogística, e por aí fora, e física e metafísica. O texto da Poética, o que conheço melhor, define com muita frequência: pode-se dizer que foi ele quem ‘inventou’ a ‘nossa’ definição, deslocando a de Sócrates e Platão.
Será diferente a 'invenção' da phusis da do logos? Só há definição deste e neste, as da phusis são descobertas pelo logos. 

07/03/2013