quarta-feira, 29 de maio de 2013

139. Relação de causa-efeito no princípio de identidade: "A é A"?












L.T. : Encontras alguma relação de causa-efeito no princípio de identidade: A é A?


23/05/2013


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F.B. :  Estás a puxar-me para questões de lógica, que não são o meu forte, mas estou a gostar. Respondo sem conhecer os dossiers sobre ambas as questões, sigo a lógica da minha fenomenologia.
Terei que detalhar cada um dos dois pontos propostos antes de os pôr em confronto. Ambos dependem da invenção da definição.

A é A. O 'é' ou o = em A=A são ambíguos, entre o sentido de idêntico e de o mesmo
Comecemos pela letra A.  A A A A : enquanto grafia, não são idênticos; mas são a mesma letra. Esta mesmidade sem identidade implica a não substancialidade do A, não é a grafia que decide mas a diferença com outras letras. A diferença antes da substância, é uma posição que vale tanto para Heidegger como para Derrida e que parece pôr uma questão ao princípio da identidade (o Heidegger tem um livro sobre isso, que li há mais de 20 anos e de que não me lembro, a questão na altura não me interessava). Este só valeria para 'A é igual a si mesmo' e não para dois AA empiricamente distintos, não idênticos.

Seja um nome: Luís, se me permites. Há muitos Luises, o mesmo nome para indivíduos não idênticos. A palavra cão é também a mesma para animais bem diferentes. A biologia molecular complicou e explicou: os cães têm o mesmo ADN no essencial mas com variantes individuais, nós igualmente.
 Enquanto que as rochas, as águas, os ares, são feitos de moléculas que são tanto idênticas como as mesmas: o
 que significa que a diferença com a ou rasto (différance, trace)
 (Derrida) introduziu duas mesmidades novas, uma a da reprodução dos vivos, 
outra a da denominação linguística sobre a identidade empírica. 
Aristóteles clarificou a questão: mesma espécie e diferentes acidentes individuais, ousia sendo o termo que dizia a mesmidade (essência e substância, nas traduções latinas), acidente a individualidade ou particularidade. Foi a definição que definiu a mesmidade (que a denominação já dizia). 
A é igual a si mesmo - serei uma 'essência' igual a si mesma toda a vida?  'alma' e 'sujeito' parecem dizer que sim, sem deixarem dúvidas. Heidegger cortou cerce: a noção de 'essência' não conta com o tempo, não serve pois para dizer o 'ser' dos humanos (é a grande tese de Ser e tempo). Nem dos cães.  Sem que Heidegger tenha dado os exemplos, basta pensar no comer e no aprender como ritmo estrutural dos vivos, nomeadamente aves e mamíferos, para se perceber que ninguém é sequer idêntico a si mesmo (as células dos ossos são totalmente regeneradas todos os 6 meses, o nosso esqueleto deixa de ser idêntico duas vezes por ano). Acrescente-se uma dificuldade: são outros que se comem. é saber dos outros que se aprende, de outros se faz o mesmo. Ai do princípio de identidade! Valha-nos a nossa frágil memória que nos garante alguma identidade, excepto quando sonhamos.
Em conclusão, creio que o princípio só vale da denominação, do logos, e isso Aristóteles sabia-o, foi desfeito (talvez no helenismo) na escolástica que creio que platonizou Aristóteles. Mas mesmo aí não deixa de haver problemas, não a propósito do significante, que foi o meu argumento, mas do sentido: a mesma palavra pode mudar de sentido por se alterarem outras à sua volta, sem se lhe tocar. Por exemplo, na frase que se segue, a palavra 'cara' ganha um sentido diferente do corrente devido ao que se escreve depois da vírgula: 'minha cara amiga, acabo de pagar 10.000 € a mais devido ao seu descuido'. Ora, foi por causa deste tipo de fenómenos, a polissemia, as ambiguidades, que após a definição Aristóteles teve que inventar a lógica e nos últimos tempos esta foi matematizada, expulsas dela as línguas. Como quem diz: os princípios lógicos, como A=A, são laboratoriais, só valem no laboratório dos lógicos.
Causa e efeito - aqui trata-se dum outro princípio elementar da razão, como o da identidade, que justificou a própria definição, necessária para ser capaz de pensar as causas das coisas num mundo com alterações constantes. Um pontapé numa bola que mete golo, é causa dele. Uma mãe que dá à luz um bébé é causa dele. Em ambos os casos, antes da definição, há anterioridade da causa em relação ao efeito. E a antecipação da morte em Ser e Tempo, é causa da angústia e da autenticidade possível? Uma fuga antes de um perigo ocorrer, este é causa daquela? Volta a questão da linguagem, se for certo que esta é necessária para antecipar e que sem dúvida jogou na complexidade da quádrupla causalidade de Aristóteles para definir o movimento. Motor (pontapé e golo) e final (fujo por antever perigo), material (aquele bébé daquela mãe, idêntico) e formal (os bébés das mães humanas, espécie, os mesmos) que permite antecipar para aquela grávida. Grande pensador do movimento (Physica) Aristóteles multiplicou os aspectos da causalidade dele, mormente o movimento dos vivos (que nascem, crescem, alteram-se, morrem), vários tipos complementares de causa para um só efeito. 
O laboratório de Galileu e de Newton restringiu-se ao movimento dos inertes que recebem duma força (causa) o efeito de se moverem, acelerarem, desacelerarem, travarem. Bastou-lhes a causa cinética (movimento) ou eficiente, desapareceu também o papel da linguagem antecipar: é a teoria experimentada que poderá predizer, antecipar. Pôr em questão este princípio de causa e efeito no laboratório seria pôr em causa a ciência moderna (como os físicos quânticos têm ar de fazer, para meu grande espanto, devo dizer). A questão é: e fora do laboratório, o que sucede à causa e efeito? Os cientistas, Laplace é o exemplo maior, extrapolaram da experimentação laboratorial justificada em equações que verificam nas suas variáveis os resultados, e decretaram o determinismo geral do universo. Um pouco rápido de mais, novamente substancialismo. Como é que a causa / efeito se põe para um automóvel? Há um motor  que dá o movimento mas para saber para onde o carro vai é necessária uma causa final, uma direcção ou sentido: ora, todo o aparelho do carro, além do cilindro, está ao serviço dessa finalidade aleatória para o mesmo carro e condutor, por vezes várias vezes por dia. O determinismo laboratorial que comanda o agenciamento das peças do aparelho e a sua articulação ao motor compõe-se de forma estrutural com o aleatório da direcção a tomar, segundo a lei do tráfego que não é determinista. O mesmo argumento pode ser aduzido para um cão, como fiz no blogue filosofia mais ciências: toda a sua anatomia que a biologia estuda em laboratório orienta-se (finalidade) para encontrar alimento que vai ser levado pelo sangue a cada célula (senão morre) e para evitar ser comido por mais fortes. O motivo fenomenológico do duplo laço que propus articula a causa eficiente (motor) com a causa final (aparelho) de maneira que contesta radicalmente o determinismo extrapolado: foram as próprias ciências que nos deram a indeterminação no coração de cada coisa, viva ou inerte, texto ou coisa social. Concluindo: causa / efeito é trivial (pontapé e golo) e científico em laboratório; fora dela, como Aristóteles percebera, é bem mais complicado do que o determinismo anuncia.
Causa / efeito e identidade? - se fôr verdade que esta exclui o tempo, isto é o movimento, e que só há causa de um efeito como movimento, alteração de algo, não vejo como é que os dois se ligam entre si: diferença, alteração, alteridade, movimento, são prévios à identidade. Mas tu que fizeste laconicamente a pergunta, poderás explicar-te melhor.


24/05/2013

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L.T. : Só uma ressalva, ainda não li esta tua resposta. Só a primeira linha. Percebo pouco ou nada de Lógica comparativamente a certas pessoas que se dedicam um pouco mais, para não falar das que se dedicam muito. Apenas me surgem algumas questões e reflexões que me suscitam perguntas destas que me ponho, cujas respostas ou ainda não existem ou só em esboço muito vago. Assim, aproveito e envio-tas, com o interesse, claro, de receber alguma tua resposta segundo as tuas leituras.
Ao mesmo tempo, parecem questões atrevidas, com a sua brevidade, para quem as ponho, mas também para mim, tendo a ver com certas reflexões que vou fazendo e com o espanto a que chego (já Platão e Aristóteles falavam dele) quando estas mesmas perguntas podem ter de alguma maneira resposta afirmativa, sem que eu saiba propriamente responder de modo argumentativamente consistente. Fico-me às vezes pela perplexidade e espanto que elas me provocam, fazendo-me pensar, mas abrindo-me caminho.
Acaba por dever ser com modéstia que ponho estas questões.


24/05/2013





Este texto foi transcrito directamente do papel onde o escrevi na esplanada de manhã, sem qualquer alteração, salvo uma palavra ou duas palavras de retoque. Portanto poderão surgir algumas imprecisões temáticas.
1. Tentativa de resposta à questão da relação causa / efeito no princípio de identidade.
Quando falei do princípio de identidade estava a lembrar-me do "A é A" mencionado por Heidegger, ao invés de "A = A" (ele distingue-os em Identidade e Diferença). Neste texto, Heidegger estabelece o destaque importante entre "cada um ele mesmo para si mesmo o mesmo" e não "cada um ele mesmo  o mesmo" (O Sofista). Trata-se de um contexto platónico, e não podemos pensar que se inscreve num quadro proposicional lógico. mas ôntico-ontológico. Isto leva-me a pensar que em "A é A" se marca uma espécie de ressonância ou repercussão entre A e A'. Por exemplo, há quem expresse o princípio de identidade como "S é P" (Lalande, Vocabulaire Technique et Critique...), no plano proposicional de juízo e cópula. Sem querer entrar em psicologismos e associacionismos, poderemos entrever em "A é A" uma como que relação (embora 'relação' implique 3 elementos, em vez da cópula: 2) de sequência, de antecedência e consequência. Aliás, o predicado é o que se pré-diz de algo, mas evidentemente depois, mas antes de mais nada. Donde as categorias e a substância, por exemplo, esta como primeira categoria do ser em Aristóteles. Claro que na lógica não há, supõe-se, a dimensão temporal. As antecedências são formais e do plano da linguagem, enfim (?) ...
Mas estou ainda a lembrar-me de Hume que nos fala da relação causa / efeito na sua dimensão de hábito. Habituamo-nos na experiência, num primeiro plano, digamos, várias vezes que o fogo aquece a água no púcaro. Mas, segundo ele, isso não nos garante que sempre seja assim. Isto a traços largos. Não quero alargar-me mais neste plano, só que queria dizer que é um plano empírico e que a relação causa /efeito não remete, à partida, para o "A é A", pois este é tido na lógica e aquela na experiência. Mas não haverá ponto de articulação remoto?
Por outro lado, há o esquematismo e o esquema em Kant, dimensões que dificilmente poderemos apreender na sua plenitude, tal como ele refere na Crítica da Razão Pura. A imaginação entra em cena com a sensibilidade e o entendimento.



13/06/2013

 Imagem: desenho - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

terça-feira, 7 de maio de 2013

138. O que é o cérebro?? Uma pergunta que eventualmente se interroga...









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L.T. : Porque falei de cérebro como metáfora? Não me leves a mal, mas creio que, de tanto se falar hoje de cérebro, é como que quase coisificado, concretizado, digamos, mas paradoxalmente por força de tão abstraído. É uma estranha abstracção que coisifica, se não mesmo metaforiza, precisamente como uma figura de retórica. Se metáfora remete também para transporte e para movimento, há metáforas que se tornam por vezes em puras metáforas. Quer dizer, há uma coisificação, mas ela, contudo, move-se. Mas move-se, hélas, enquanto pura categoria, puro conceito, ou pura palavra, mantendo-se a separação com o real, mantendo-se a linguagem como instrumento, estatuto que tanto criticas e bem nos teus estudos.
Claro que o cérebro é real. Mas o que é o cérebro por si? E mais, porquê esta estranha relação entre um certo critério do cerebral e um certo critério da inteligência (de que deriva de alguma maneira a 'mente', a 'consciência', de que tanto hoje se fala nas ciências neurológicas, neurociências (Damásio) e em certas filosofias, e que escondem de alguma maneira essa mitificação da inteligência que tem já raízes no lógos, quer queiramos quer não)?
O Edgar Morin aí deu uma boa jogada, a do Homo sapiens-demens, argumentando por exemplo que a experiência, ou a "consciência da morte", para usar a expressão de Morin, é perturbadora na génese do humano, e que, por via de consequência, algo de louco, de demente (demens) desencadeou, com ela, a par de sapiens, a complexidade do devir e da evolução do humano, da hominização (vê o Paradigma Perdido; o Homem e a Morte). Mas não só sobre a questão da morte fala o Morin, também das sepulturas já no Neanderthal, da morte-renascimento, do duplo, e também dos excessos, a úbris dos extâses, quer sexuais quer mágicos tidos geralmente como desregramentos relativamente à consciência do sapiens, etc.
E a filosofia mantém-se ainda radicada num certo critério que hierarquiza as coisas tendo a inteligência no topo. Isto sem dúvida que se deve a uma herança talvez mal compreendida do teorético e do noético (inteligível) platónico. Convenhamos que há da parte da filosofia uma pretensão de superioridade que tem muito a ver com a chamada, fica bem dizê-lo, 'inteligibilidade'. Isso nota-se muito nos meios académicos...
E curiosamente, as ciências, principalmente as naturais não querem ficar atrás. E não há meio de se entenderem, filosofia e ciências, tudo categorias que podem ser tão abstractas, e tão coisificadas. As chamadas ciências humanas vão fazendo, no fundo, uma espécie de perspicaz leitura, mas inteligente também, das questões que atravessam aquelas disciplinas, e não só, quando elas não dão conta. Tais são p.ex., a Sociologia e a Filosofia da Técnica, a Sociologia e Filosofia da Ciência, como é o caso, entre outros, dos muito interessantes estudos do Hermínio Martins (Experimentum Humanum). Não é a filosofia uma ciência humana? E que pretenciosa generalidade é esta da palavra Filosofia parecer atribuir-se um estatuto à parte, qual persona autodenominando-se esse título? Pois, há filosofias, como costumas dizer.
O Carlos Fiolhais, figura simpática e sem dúvida inteligente, há dias comentou mais ou menos que "o que os jovens têm de melhor é o cérebro", talvez a propósito da chamada "fuga de cérebros para o estrangeiro". Mas não é uma estranha definição? Fulano tal é um cérebro!
Já reparaste na maneira como certas ciências dão importância ao cérebro?
Houve o Leonardo Coimbra que falava de 'cousismo' (ou coisismo). Não tenho medo de falar de certos nomes, de certos autores, mesmo que sejam praticamente esquecidos, desprezados por algumas pessoas, ao mesmo tempo que são louvados por outras. Não vou por aí. Posso dizer que o li há muitos anos, embora não faça parte das minhas leituras actuais. Não sei se sabes mas ele era um bom conhecedor de matemáticas. Mas, na minha opinião, esta noção de cousismo só deve ser tida em conta pontualmente a título de considerações de passagem. Pois não me parece que leve ela mesma a caminhos abertos. Para além do que, creio que retomada e tematizada frequentemente pode levar, pelo contrário, a caminhos um tanto perigosos, digamos assim...
Prefiro neste contexto os termos coisificação ou reificação.
Não me leves a mal, mas gostava de pôr-te a questão noutros termos, partindo ainda do cérebro. E espero que desperte alguma coisa nas tuas reflexões sobre o que te interessa e sobre quem lê estes textos. Pela minha parte leio as tuas respostas com atenção. Cito primeiro: "O que é o cérebro? é o conjunto dos neurónios, células da auto e hetero afectação, que se afectam umas às outras por via das sinapses, a maior parte das quais são abertas pela aprendizagem e fazem a nossa memória."
E os neurónios, como células, são coisas (a mensagem era para ir só com esta frase)?
Claro, também tento fazer a minha desconstruçãozinha

07/05/2013

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F.B. : Respondo telegraficamente, já que tenho escrito muito sobre as questões que me pões (blogue Filosofia mais ciências 2) e o Manifesto no Filosofia mais ciências). Verifico que é  das raras vezes, senão a primeira, em que pegas em questões de ciências.
Não creio que possa ser acusado de 'coisificação' do cérebro: coloco-o como órgão crucial na regulação do sistema de alimentação dos animais e do sistema de mobilidade na selva ecológica, órgão da articulação, juntamente com a boca, dos dois sistemas.
Quanto à diferença entre filosofia(s) e ciência(s): a primeira definiu-se no Ocidente pela invenção da definição e a segunda pela do laboratório científico, herdando a definição mas pondo-a à prova da medida dos movimentos dos graves. É enquanto herdeira que a(s) ciência(s) deve(m) à filosofia, que é capaz de lhe(s) avaliar teorias, motivos e métodos, o que ela(s) não sabe(m) nem pode(m) fazer com os seus métodos. Mas este ser(em) herdeira(s) deu-lhes uma dimensão filosófica, que Kant suspendeu e foi um bem para a autonomização delas em relação às questões metafísicas; foi essa dimensão que eu procurei recuperar para o projecto fenomenológico, um passo além de Kuhn e de Derrida.
Bem hajas sempre pelas tuas questões.

08/05/2013
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L.T. : Ok. Obrigado. Vou recarregar baterias...


09/05/2013


 Imagem: desenho - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

segunda-feira, 6 de maio de 2013

137. Continuação










L.T. : Um passo do teu texto:
“O que saberíamos nós de Portugal sem os mapas? Claro que não é só mapas, como tu não és só os teus retratos. E lixa completamente a linguagem, as coisas contra as palavras. Os actos contra os discursos, como se os discursos não fossem actos. As palavras colhem as coisas que dizem e colocam-nas no discurso diante de ti, como um rapaz colhe flores e oferece um ramo à namorada. O princípio da não contradição admite tudo isto, os seus defensores acérrimos é que não. Amanhã virá o 2º tempo.”
Ok, vamos lá ver se esta minha interpelação te motiva para o 2º tempo. Eis então uma das duas questões que queria avançar independentemente destas que estamos a tratar. Todavia, tento articulá-las.
Penso então nas palavras, nos discursos, sendo e fazendo actos (ou sendo feitas por actos?). How to do things with words” do Austin, não é? Sim, não penso agora nos speechs acts nem nas filosofias pragmáticas, etc. e tal, para não me baralhar mais…
Pego numa passagem do budista japonês, erudito e praticante, e, ao mesmo tempo, bom conhecedor da filosofia ocidental, o extraordinário Daisetz Teitaro Susuki, que muito admiro: "Chan-tao distingue, dans son commentaire sur le Sûtra des Méditations, deux sortes de pratique dévotionnelle pour le fidèle du nemboutsou (1), «correcte» et «mêlée». La «pratique correcte» consiste à penser (nien) au nom du Bouddha Amitâbha, l'esprit fixé sur cette pensée unique. Mais ici également «penser au nom» n'a de sens que si le nom est déliberément prononcé. Cette sorte de pensée n'est efficace que lorsque les nerfs et les muscles vocaux sont mis en mouvement, en concordance avec la représentation mentale. En fait, il est douteux qu'aucune pensée, élevée ou basse, puisse durer sans cet accompagnement musculaire, si léger et imperceptible soit-il."
(1) Ponho esta nota: Nemboutsou, ou Nembutsu, digamos de modo simplificado, expressão abreviada em japonês – que também há para o sânscrito e para o chinês - significando “homenagem ao Buda amithâba”, enquanto prática de recitação e invocação do nome do Buda.

Suzuki, Daistez Teitaro, Essais sur le Bouddhisme Zen, III vol., Albin Michel, 1972.
Fiz esta citação no dia 2 de Setembro de 2008 no Transporizações:
Claro, isto é budismo, e arrisco-me a confundir ainda mais as coisas…
Mas tentando tirar qualquer coisa daqui, e a ver se isto abre caminhos: “En fait, il est douteux qu'aucune pensée, élevée ou basse, puisse durer sans cet accompagnement musculaire, si léger et imperceptible soit-il.”
Com efeito, e resumindo sem elaborar muito, as minhas dificuldades aqui são: como explicar que uma palavra, uma frase, um som, enfim, também um pensamento, pensados, passe a redundância, possam provocar uma expressão, percepção?, eu diria, não só facial, outrossim, corporal, seja ela o mais ínfima possível, imperceptível, por exemplo, uma pequena percepção, “pequenas percepções” (que, diria, não estão do lado nem do sujeito nem do objecto), para falar à Leibniz, à Deleuze e, já agora, à J.Gil. Este último, principalmente, na filosofia do corpo e na filosofia da arte, reenviando para o pré-verbal, com, p.ex., o seu muito interessante livro A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções (livro de que há alguns anos me havias falado mais do que uma vez), etc., etc., isto e mais tanta coisa que eu não sei?
Mas, já agora, há outras coisas que me fazem confusão. Por exemplo, essa polarização cérebro /corpo, mente/cérebro, esta vindo substituir, parece-me, mente/corpo... Olha, o Searle tem um livro que é Mente, Cérebro e Ciência...
Isto cá para nós, o que é isso do cérebro? Que coisa é essa? É alguma metáfora...?


04/05/2013

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F.B. : A minha resposta anterior já tinha os dois tempos, foi escrita em dois dias e está lá assinalado. Sem importância.
A questão budista. Se entendi bem, não me parece difícil nem necessitar da parafernália do Deleuze e Gil. A citação do Sofista do Platão com que tu começaste estas conversas, se bem me lembro, distinguia a dianoia, no silêncio da alma, e o logos que fala com outros sonoramente, dizendo que são o mesmo. Genial Platão, face à sua posteridade europeia e ao seu mental.
Pode-se imaginar que seja parecida a aquisição da fala como a da leitura, que começa por ser em voz alta e passa depois a remuer os lábios (adultos que lêem mal) até que se faz sem nenhum som audível de fora. A dianoia, o pensamento é o mesmo que o discurso (logos), com palavras em frases e regras da língua, mas nós aprendemos a guardá-lo dos outros, a pensar sós, em forma de segredo, como defesa dos outros. O Changeux sugere algures no Homem neuronal que há um mecanismo do cérebro para fazer essa 'mentalização' do discurso, limitá-lo aos neurónios a que só o próprio tem acesso: Damásio chama a isso 'mente' (como lembrei no Montepio). O teu budista parece querer fazer o caminho inverso, conseguir que algo do mecanismo muscular da fonação na laringe e boca acompanhe a meditação, não a deixe puramente 'mental', só do que medita, mas algo de aberto ao comunitário, se bem entendi. 
Não acho que haja algo como pré-verbal em quem já sabe falar, isso são restos cartesianos ou kantianos ou husserlianos, restos em qualquer caso. O Derrida dizia que não há percepção, como se o cérebro conhecesse 'paralíticos', nele tudo é cinema.
O que é o cérebro? é o conjunto dos neurónios, células da auto e hetero afectação, que se afectam umas às outras por via das sinapses, a maior parte das quais são abertas pela aprendizagem e fazem a nossa memória; é ele que regula a homeostasia do sangue, função biológica por excelência, tal como a aprendizagem é a sua função social. É um espantoso órgão biológico e social, que faz de qualquer animal um ser no mundo, pese a Heidegger que limitava isso aos humanos. 

07/05/2013


Ver  texto "SOBRE O TEMPO":



Imagem: desenho - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares
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quinta-feira, 2 de maio de 2013

136. Sobre o princípio de não-contradição, etc.









L.T. : Diz-te alguma coisa o famoso princípio de não-contradição de Aristóteles (também chamado "de contradição", Metafísica, 1005 b 19) que diz mais ou menos: "uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto"?
O Aquino também fala dele.

28/04/2013

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F.B. : Respondo-te em dois tempos, agora o primeiro apenas, primeira reacção. Claro que é um princípio necessário à razão, à argumentação. 'Sob o mesmo aspecto', é verdadeiro. O problema é ele ser em geral, ter sido na história do pensamento ocidental, creio que quase sempre depois dos Gregos clássicos, após a separação entre pensamento e coisas, interior e exterior, o que terá tornado o princípio um rígido auxiliar da separação entre contrários, opostos, em que o ' termo rico' ganha ao 'oposto pobre', a alma ao corpo, à matéria, etc. Até no chamado materialismo, invertendo e fazendo da matéria o termo rico e tornar o espírito pobre (o estalinismo é isso também).
Para não contradizeres tens que separar. O Magritte: 'isto não é um cachimbo', quando é óbvio que é um cachimbo, como o teu retrato és tu e o mapa de Portugal é Portugal. É e não é, é sob um aspecto e não é sobre o outro. Não vai contra o princípio, mas Magritte e um teórico da informática que foi um dia palestrar à faculdade "o mapa não é o território". O que saberíamos nós de Portugal sem os mapas? Claro que não é só mapas, como tu não és só os teus retratos. E lixa completamente a linguagem, as coisas contra as palavras. Os actos contra os discursos, como se os discursos não fossem actos. As palavras colhem as coisas que dizem e colocam-nas no discurso diante de ti, como um rapaz colhe flores e oferece um ramo à namorada. 
O princípio da não contradição admite tudo isto, os seus defensores acérrimos é que não. Amanhã virá o 2º tempo.
Vai em forma de pergunta sobre a noção de 'significante' em Saussure. Se bem te lembras, ele não consiste, como se julga habitualmente nos sons (ou nestas grafias que estou a escrever), já que o som duma frase varia com as vozes, de criança, de adulto ou adulta, de velho, de doente, etc., assim como as letras de cda um variam, as tipografias. Então, o significante consiste nas diferenças entre sons de vozes variadas serem as mesmas, serem elas que se repetem. A pergunta é: uma diferença que é repetição, uma repetição feita de diferenças, é ou não compatível com o princípio da não contradição? Julgo que o aspecto em que se vê uma e outra não será o mesmo, a diferença é entre sons da mesma voz, a repetição é de diferenças em vozes diferentes, o princípio será respeitado. E estará um lógico de acordo? Não creio que Derrida estivesse 'contra' a lógica ou contra a razão ou sequer contra a definição. Mas estava interessado no que as excede, no que excede as repetições (económicas), em mecanismos de escrita que não tinham sido descobertos. Por outro exemplo. Houve uma altura em que ele escrevia 'a vida a morte' para evitar opô-las (só os vivos morrem, e todos morrem, a vida inclui a morte. Este exemplo permite perceber que o que ele tentou, após Husserl e Heidegger e tematizando pela primeira vez a escrita, foi desfazer contradições fáceis e perenes no pensamento ocidental, desconstruí-las. Tendo nomeadamente em conta o tempo, além da linearidade. Talvez se possa dizer que ele despediu o princípio da não contradição, como aliás o conceito de 'princípio', que é histórico, filho da definição. Ele confessou uma vez, não me lembro aonde, mas foi numa entrevista, que a palavra que ele mais detestava era a de determinação, que, acrescento eu, repete a de 'definição' juntando-lhe a causalidade (e me parece boa para dizer a operação do laboratório científico). O velho Aristóteles já foi um quase desconstrutor do platonismo, mas ficou-lhe discípulo. E Derrida, não será o fiel discípulo de ambos, infiel como qualquer discípulo digno desse nome? Porque ser 'fiel' discípulo será repeti-lo tal qual ou repetir-lhe de maneira diferente a infidelidade que já o mestre foi para ser mestre? Contradição da fidelidade na relação entre mestre e discípulo?
30/04/2013



L.T. : Já li a tua resposta. Vou reler com mais atenção. Para já, tenho mais duas questões a fazer, cada uma por si, indepentemente destas, mas ainda vou ver se interessam.
Mas esta tua resposta poderá eventualmente suscitar-me alguma outra questão. Logo verei.
Se quiseres dizer mais alguma coisa no segundo tempo de que tinhas falado, será recebida com atenção!


02/05/2013