sábado, 20 de agosto de 2011

10. Os 'universais'. Nominalistas e realistas.


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10. “ Há que admirar o homem por ser um pujante génio da arquitectura que conseguiu erigir sobre […] água corrente um edifício conceptual indefinidamente complicado” (Nietzsche)*
“… 2. Na minha comunicação ao colóquio de 2000, comemorando nesta mesma Faculdade de Letras o centenário do início da fenomenologia de Husserl, delineei dois gestos sobre a linguagem na instituição filosófica dos dois epistemas europeus, o clássico e o moderno (2). O primeiro gesto foi o de Occam e do seu nominalismo, negando a existência das essências aristotélicas nas próprias ‘coisas’ (nas ‘coisas-em-si’ dirá Kant, seu descendente), para as alojar nos “ nomes mentais” com que essas coisas são pensadas; quanto aos nomes das línguas com que elas são designadas, eles serão subordinados aos mentais universais. A génese da representação mental teve aí uma etapa decisiva (com origem porventura na filosofia árabe comentando Aristóteles), abrindo precocemente o epistema clássico: representação elaborada mormente por Descartes como ideia, que depois retomarão de formas várias racionalistas e empiristas, como se diz. Segundo os nominalistas, as coisas são todas substâncias singulares, inclusive as almas que as conhecem, Descartes di-las-á ‘res’, umas extensas, outras cogitantes: Occam enterrava assim a mesmidade parmenidiana entre ser, pensar e dizer que subsistia ainda na não-separação entre a substância-essência dos seres vivos e o discurso das categorias que que os pensava o aristotelismo medieval (3). De facto, a representação mental só ganha sentido como ‘ponte’ entre os separados: das ‘coisas’ às ‘almas-sujeitos’ que as conhecem, e tão afastadas ficam as duas margens do rio do conhecimento que Descartes, Malebranche, Leibniz, Berkeley, precisarão de Deus para garantir o conhecimento verdadeiro. Neste epistema, a linguagem não tem senão uma existência secundária, a dum instrumento, a duma expressão das excelentes representações que são as ideias.”
“3. Foi o que veio corrigir o segundo gesto, o de Nietzsche. Foucault: “a linguagem só entrou directamente e por ela mesma no campo do pensamento no final do séc. XIX. Poder-se-ia dizer que no séc. XX, se Nietzsche o filólogo – como ele era sábio, sabia tanto, escrevia tão bons livros – não tivesse sido o primeiro a aproximar a tarefa filosófica duma reflexão radical sobre a linguagem (ed. Fr., p.316) [As palavras e as coisas]. Quero crer que o que, em termos filosóficos, há de totalmente novo neste texto póstumo de 1873 [Sobre a Verdade e a Mentira num sentido extra-moral] é justamente o ter abordado a questão do conhecimento afrontando a representação mental através da tentativa de elucidação da génese da linguagem: uma vez que tal como a representação caracteriza o epistema clássico, segundo Foucault, também assim o tempo das géneses caracteriza o moderno.”
*Texto inédito. Comunicação ao Colóquio realizado na Faculdade de Letras de Lisboa em 10 e 11 de Maio de 2001 Nietzsche para o século XXI, retomando 20 anos depois a leitura que fizera dum texto de Nietzsche em Leituras de Aristóteles e de Nietzsche. A poética. Sobre a verdade e a mentira, Gulbenkian, 1994.
Notas:
(2) Foucault, As Palavras e as Coisas .
(3) “As categorias de Aristóteles são ao mesmo tempo de língua e de pensamento: de língua enquanto elas são determinadas como resposta à questão de saber como o ser se diz (legetai); mas também como se diz o ser, como é dito o que é, enquanto tal como ele é: questão de pensamento, o pensamento, a palavra ‘pensamento’ que Benveniste utiliza como se a sua significação e a sua história fossem óbvias, não tendo em todo o caso nunca querido dizer nada em relação ao ser, à verdade do ser tal como ele é e enquanto é (dito). O ‘pensamento’ – o que vive sob esse nome no Ocidente – nunca poude surgir ou anunciar-se sem uma certa configuração de noein, legein, einai e dessa estranha mesmidade de noein e de einai de que fala o poema de Parménides” (“ Le supplément de copule, la philosophie devant la linguistique”, Marges. De la philosophie, Minuit, 1972, p.218 há trad. Port. Na Rés, Porto), peça de um debate célebre com o grande linguista E. Benveniste, que, em “Catégories de pensée et catégories de langue” (Problèmes de linguistique générale), se propôs ler a lista das dez categorias de Aristóteles como um “documento” para demonstrar que essas categorias de pensamento não são senão categorias da língua grega.


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L.T. : Pegando no ponto 2 do artigo sobre o Nietzsche: Segundo os nominalistas, um ‘universal’ diz-se (do?) ‘mental’ (supondo o mental já como um intra – um 'dentro') e não da realidade extra-mental nos realistas. Segundo os nominalistas os universais não têm realidade extra-mental (ver artigo de Lucien Jerphagnon no Dicionário das grandes filosofias , dirigido pelo mesmo) . E o ‘universal’ é um nome, um flatus vocis. Então não haverá um 'exterior', pelo menos parcial, desses universais nominalistas? Quer dizer: o 'universal' intra-mental nominalista não será parcialmente exterior relativamente ao também ‘mental’ nominalista? Mental, como disse, que já supõe um dentro, um intra: "...para as alojar nos "nomes mentais" com que essas coisas são pensadas [pelo mental]". Se assim é, aqui parece poder pensar-se e dizer-se um espaço linguístico ou da linguagem. Espaço que não é propriamente o mediador e instrumental (p.ex., organon ), um ‘entre’ que caracteriza toda uma tradição que coloca a linguagem subalternizada, secundária ao pensamento que dela se serve. Mas não sei bem como é que isto se explicita melhor. Claro que poderemos fazer girar estas análises sobre os realistas, etc. Mas agora não vou mais longe porque não posso.
A questão da mesmidade escapa-me um pouco aqui. Quanto à ‘definição’ no teu penúltimo e-mail ainda estou a repensá-la.
L.T. : Passados dias numa conversa em Sintra no café Cintia sobre estas questões : " O mental é extra-corporal " (F.B.).
F. B. : O que li sobre nominalismo já faz perto de 30 anos, não me seria fácil explicar agora o que era 'mentalismo' em época tão pré-moderna. Hoje, o último livro do Damásio, O livro da consciência, propõe uma excelente colocação do mental como o neuronal tal que só o próprio (humano ou animal) tem acesso a ele, o que daria para dizer o 'dentro' do neurónio (corporal, porque célula, mas sem que o neurologista lhe tenha acesso senão 'por fora'). Tudo isto é também 'corporal', é impossível dissociar corpo / mente num neurónio, mas ao mesmo tempo essa diferença existe, irredutível, entre os métodos de abordagem, dos neurólogos e sua aparelhagem, por um lado, dos psicólogos ou linguistas, por outro. E também cada um de nós, no enorme apreço que tem pelo seu 'interior', pelo seu 'mental', é capaz de sacrificar aspectos de bem estar 'corporal' (comida, descanso, divertimentos) por dedicação à cultura destas coisas. É donde vem aliás o grande incremento da filosofia e das ciências, como das artes, das espiritualidades, desde sempre. Grande desafio à juventude de hoje, já que dedicar-se a estas exaltantes coisas não garante facilmente empregos.
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Foto: Fernando Belo e Luís Tavares.

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