segunda-feira, 22 de outubro de 2012

115. Isto são questões







L.T. : 1. Sabendo muito pouco como sei do Lacan, e sem ir consultá-lo, pareceu-me bastante interessante quando ele trata da questão da criança - quando esta ainda não tem um suficiente domínio motor do corpo - ao ver-se diante do espelho, apoiando-se em algo para se suster e acenando à sua imagem reflectida, identificando-se a partir dela, sem que haja ainda a linguagem falada, duplamente articulada, para empregar motivos que te são caros. Como se qualquer coisa da ordem da imagem contribuísse e se antecipasse - ou pelo menos se articulasse - não só ao corpo na sua autonomia mas também à linguagem supondo esta como estruturante do Eu (artigo de Lacan: O estádio do espelho como formador da função do eu, ed. Arcádia).

2. "Estes eixos são grafados no cérebro com as aprendizagens fundamentais que fazem de nós seres no mundo da nossa tribo. Cá fora, pois, não saberia dizer nada da imaginação como interioridade." "Cá fora"; esta tua chamada de atenção parece-me ir ao encontro do que consideras digno de se pensar mais profundamente, a questão das ditas imagens mentais, do pensamento ("pois, não saberia dizer nada da imaginação como interioridade"), que algures pões em causa, que vêm das neurobiologias, neurociências (imagiologia (?)).
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Que me perdoem os lacanianos e não só por algumas imprecisões e mesmo alguns disparates. 
Mas há muitas coisas que uma pessoa não sabe...

21/10/2012

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F.B. : Quanto ao "estádio do espelho", uma miúda de 18 meses, nua e contente diante do espelho, com alguma linguagem já por certo; não é aí que estava a questão para o Lacan, mas na assunção da imagem de si como um todo, em contraste com certos discursos psicóticos que revelam um corpo 'morcelé', 'en morceaux', retalhado, em pedaços. Para o Lacan, é esse 'em pedaços' a nossa primeira consciência, o nosso primeiro saber de si. E creio que é o pôr-se de pé e falar que dá a possibilidade desta unificação de si numa 'imagem'.
Mas o espelho é, me parece, um elemento secundário, o que Lacan chama 'imago' é a produção dessa imagem de si integrada pelas imagens dos outros que nos rodeiam e que agem, andam, fazem, falam, enchem o ambiente de humano. O que me parece significar que a nossa imagem de si não é justamente a dum espelho, pelo contrário, a imagem que dá o espelho é sempre algo de estranho: a nossa imagem de mim é por assim dizer 'corporal', resulta de todo o sistema de neurónios que nós somos como 'sentindo o fora de nós e o em nós', a que só nós temos acesso, como diz Damásio em O Livro da Consciência. Auto-afectação e hetero-afectação vão de par, diz Derrida, é o que define o vivo animado (animal).

O problema da neurologia, do próprio Damásio, é só darem pela auto-afectação e ignorarem a hetero-afectação, não serem capazes de entenderem que somos grafados (o próprio Changeux não deu por isso, apesar do seu motivo excelente de grafo; percebe-se lendo os seus diálogos com Ricœur e com o matemático Connes). A tal ideia de que o cérebro é um órgão biológico e social. Ora, é por razões filosóficas, as que o Heidegger delimitou como ontoteologia, que os biólogos não chegam lá, eles permanecem 'aristotélicos' nisso, kath'auto, o 'autopoiético do Varela, ignoram o kath'heteron a que Aristóteles também não teve acesso: têm medo da alma mas não saem dela completamente.
Com efeito, isto é o resultado da definição, foi ela que pôs o acento no 'ente' (ontos) que o Deus (theos) cristão (mais bíblico do que grego, se dizer se pode, que transforma profundamente o grego, o do Plotino aliás) cobrirá porque já lá tinha à espera a 'alma' de Platão. “O auto-movimento é a essência da alma (psuchês ousian)” (Fedro 245e). Ela responde a uma atitude espiritual simultaneamente narcísica e humilde, permite compreender a espontaneidade das experiências de pensamento que, de tão fortes, não podem advir da aprendizagem com a tradição e com os seus mestres, mas outrossim tão fortes que terão a ver com outra fonte de excelência, não podiam ser criação própria apesar dessa espontaneidade. É já implicitar a afirmação do eu que pensa, como Descartes veio a compreender. A alma diz a grande fecundidade do pensador. Foi uma história de liberdade pessoal, espiritual, em mundos muito limitados politicamente.

22/10/2012

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 Imagem: obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

domingo, 21 de outubro de 2012

114. Com imaginário não vamos lá? Ainda a questão da definição






L.T. : Nem é tarde nem é cedo, e deixemos por momentos Ser e deuses e o passo célebre do Heidegger: "chegamos tarde de mais para os deuses e cedo para o Ser." 
Era a próxima pergunta que queria fazer-te. Como? Mas com a tua última resposta, eis que surge a oportunidade. "A minha dúvida acima é saber como é que a história da literatura, da música, da pintura, se articula com ela [a saber, 'definição']." Acrescentemos-lhe o cinema também. Estou a lembrar-me do belíssimo livro que li há quase 30 anos do Morin: O Cinema ou o Homem Imaginário (as questões do duplo, da projecção-identificação e da morte-renascimento, etc.). 
Também me lembro, por exemplo, do interessantíssimo As Estruturas Antropológicas do Imaginário de Gilbert Durand (a descida da taça mais difícil do que a subida) e do seu pequeno livro A Imaginação Simbólica que me foi dado a conhecer há muitos anos pelo Moisés de Lemos Martins.
E eu que escrevi há uns 3 anos um texto sobre o poeta Manoel (Manoel Tavares Rodrigues-Leal) publicado no site da SLP (Sociedade da Língua Portuguesa). Deixa-me cá dar um arzinho da minha graça: http://slp.pt/Variavel/Luis_Tavares.html
http://linguafone.blogspot.pt/search?q=o+outro+espa%C3%A7o (neste segundo link vem o texto com breves acrescentos). Nesse breve artigo abordo o ’alam al-mithâl  do Sufi Ib Arabi - "o grande sufi andaluz", escreve Agamben no seu texto Bartleby - ou Da Contingência no seu livro Bartleby - A escrita da potência (ed. Assírio & Alvim) a propósito do extraordinário texto literário Bartleby de Melville (com o célebre "I would prefer not to" - possível trad. : preferiria não fazê-lo). ’Alam al-mithâl, mundus imaginalis segundo Henry Corbin, primeiro tradutor do Heidegger em França.
Que é para ti o imaginário?


20/10/2012 

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F.B. : O 'imaginário' é uma categoria forte do Lacan (com o 'simbólico' e o 'real'), a que faço alusão no texto Linguagem e Filosofia, depois perdi a relação com ele, por um lado pelo predomínio do Derrida, por outro por ter-me cingido aos textos de Freud no que à psicanálise diz respeito. 
Por outro lado, toda esta zona do psiquismo e das faculdades da alma (percepção, imaginação, etc.) está eivada de mentalismos que torna muito difícil pegar num termo como 'imaginário' sem riscos de desentendimento logo à partida. O ser no mundo pede que se considerem as coisas que se vêem e as imagens que se pintam, fotografam, encenam em filmes. Mas nunca me senti capaz de grandes voos por aí, a estética sempre me foi vedada, paradoxo do meu nome. Enquanto que a linguagem é muito mais adequada a alguém que vem da engenharia (também nunca fui atraído por análises de poemas). O que apreciei no Derrida foi o ter-me permitido guardar a minha propensão para o sistemático com a singularidade, importante nas narrativas (meu interesse bíblico) e portanto também na história. Ora a imagem, como a entendo, desafia o sistemático, é singular dela mesma, donde a dificuldade das semióticas das imagens: nunca as houve.

Dito isto,reformulo a tua questão assim: de que falamos quando dizemos que imaginamos, que não é o mesmo do que pensamos? Dois exemplos para começar. Os sonhos são muito mais fortes como imagens da imaginação do que quaisquer outras que acordados imaginamos (excepto alucinações, que são primas dos sonhos), provavelmente fazem-se nos olhos (que mexem) e vêm dos rastos de antepassados reelaborados; pouco controláveis, a não ser o que Freud chamou 'elaboração secundária'. O outro exemplo é o dos artistas que desenham ou pintam, com ou sem modelo, imaginam, melhor ou pior, isto é, ou têm logo tudo ou vem-lhes a pouco e pouco à medida do desenho. Este segundo exemplo releva do eixo visão / mãos, em contraste com as frases que relevam do eixo audição / fonação, como predominâncias, obviamente. Estes eixos são grafados no cérebro com as aprendizagens fundamentais que fazem de nós seres no mundo da nossa tribo. Cá fora, pois, não saberia dizer nada da imaginação como interioridade.
Ora, o ser no mundo é feito de aprender os usos da tribo, com visão e mãos (e pés), com audição e fonação, que a tribo (os tais antepassados) repete e nos torna capazes de repetir singularmente, dizendo o que nunca ninguém disse ou pintando o que nunca ninguém pintou. O que vemos e mexemos e nomeamos são gentes e coisas variadas em seus contextos, vemos-lhes formas (eidos) que se alteram eventualmente no tempo, dizemos-lhes os nomes em receitas de fazer ou em narrativas. Eu diria que imaginarmos releva deste ver e manipular, pensarmos deste nomear como se ouviu, mas sem que possamos separar imaginar de pensar. Só que o que pensamos - com imaginação - podemos dizê-lo com bastante aproximação sem que o imaginar venha igualmente (como melhor vem o sentir), excepto nos que desenham e pintam, fotografam ou filmam, e disso que vemos podemos pensar coisas diferentes das dos autores. 
Se há um imaginar dos poetas - viva o Manuel António Pina que se foi -, que diria respeito à sonoridade em seus ritmos e aliterações (capaz de musicar-se), ele é indissociável do que no poema pensa. 
Gentes que somos, imaginamos imagens ainda que sem as ver mas pensamos em palavras, digamo-las em alta voz ou não. 
Mais do que estas fracas considerações não é para meu imaginar pensar.


21/10/2012 

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Imagem: obra plástica de Luís de Barreiros Tavares - 2012

terça-feira, 16 de outubro de 2012

113. Definição, escrita, inscrição





L.T. : Citações tuas:
1. "Sem a invenção da definição o que seria da filosofia? Impossível responder. Tanto que nem sequer tem jeito dizer que se 'defende' a definição, ela não precisa de ser definida. De qualquer forma, eu fui descobrindo a pouco e pouco o lugar fulcral da definição, como operação violenta da escrita, desde um debate com o Fernando Gil que ele não leu. E espanto-me um pouco de nem o Heidegger nem o Derrida, tanto quanto eu saiba, terem diagnosticado esse lugar da definição (nem li ninguém que o fizesse, devo dizer). Com algum espanto meu, em La Philosophie avec Sciences au XXème siècle, no índice da I parte, vêm definições, de automóvel, mamíferos, sociedade, linguagem, ciência (a minha primeira formação foi de engenheiro, nunca o reneguei). Mas não são definições de 'objectos', nem o automóvel sequer o é, ao guiá-lo eu sou levado por ele, tive que aprender, como se aprende a andar a cavalo. E então, pode-se dizer que, com muitas pinças, o Derrida procura definir a 'différance' no texto com esse título nas Margens. E talvez também o Heidegger o 'mot', no livro citado acima." (bLogos, mensagem 77) (meti itálicos)

2. "A questão da escrita é simples: a definição é uma operação de linguagem, de escrita (se tivesse ficado na oralidade do Sócrates, não saberíamos dela, não tinha havido nada). A violência manifesta-se, por exemplo, na instituição da escola, da Academia e do Liceu, na dificuldade pedagógica imensa que é a 'abstracção' que ela provoca : sem definição, não passaria de literatura, que já havia, muita e boa, antes da definição e não precisou nunca de escola. É o meu ponto aliás em relação ao Heidegger, não sou nenhum nostálgico do antes da definição (nem creio que ele o fosse, mas com o japonês, quase parece)." (bLogos, mensagem 79) (meti itálicos)

3. "Quanto ao Derrida, o motivo da escrita era 'maldito' pela filosofia, justamente por ser literário e cheio de ambiguidades, foi donde a definição saiu; o que ele fez foi levar esse motivo a sério, o motivo de texto e de diferença, e revolver a filosofia relendo a escrita dos textos filosóficos..." (meti itálicos)

Questões:
Um imbroglio parece ocorrer quando Platão escreve a partir da oralidade de Sócrates, defendendo a segunda como prioritária em relação à primeira (Fedro, 274b-274c). Todavia, esse mesmo problema é condição de possibilidade de compreender como viável a escrita enquanto necessária, no tempo, para a oralidade de Sócrates que nunca escreveu e que nós lemos. Só assim este poderia ser lido. Lido no tempo? Não tenho competência para fazer uma análise da questão do Tempo em contraponto à escrita segundo, por exemplo, Heidegger : temporalidade, historialidade, etc. E também não com o Derrida: différance, trace, espaçamento, temporalização... Mas qualquer coisa da ordem do Tempo garante, por seu turno, 25 séculos depois de Platão, que possas afirmar justa e pertinentemente, creio: "o lugar fulcral da definição, como operação violenta da escrita"; "dificuldade pedagógica imensa que é a 'abstracção' que ela provoca"; "o motivo da escrita [...] , foi donde a definição saiu."A  inscrição, e não só a escrita  - ou serão a mesma coisa? - parece-me decisiva na consideração temporal da definição. Também não é raro empregares o conceito de 'inscrição'. Sendo assim, até que ponto inscrição e escrita diferem, embora possam ir a par, quanto à questão do pensar a definição que não deixa de ser abstracta, ou de 'provocar abstracção', como dizes? Quer dizer, simplesmente: quais as relações, não só entre escrita e definição, mas entre inscrição e definição?
Se não te importares de responder, claro.

15/10/2012

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F.B. : A inscrição é o gravar e portanto perdurar duma instituição, que precisa de ser decifrada, compreendida, significada, "A inscrição como habitação em geral" (Derrida, cit Le Jeu des Sciences, cap. 2, § 43). Um prédio, por exemplo (cena histórica da habitação). O ADN, outro exemplo (cena  histórica da alimentação).
Por mim, chamei cena histórica da inscrição à que se destacou da cena da habitação, no Ocidente, e ganhou uma história própria. Matemática, filosofia, ciências (e com elas talvez também, não sei para poder dizer com certeza: música, pintura, fotografia, cinema,  literatura. Trata-se de inscrições numa matéria de empréstimo.

Quanto à escrita em sentido corrente é uma das muitas formas de inscrição, cuja forma alfabética foi muito importante no Ocidente, para a filosofia nomeadamente (meu texto sobre os caracteres chineses). Em sentido derridiano ('écriture') por vezes escrito 'arquiescrita', é muito perto de 'différance', 'trace' (rasto) e outros: movimento de 'inscrever' espacializando e temporalizando, relação ao outro, origem da linguagem (e, acrescento eu, da 'interioridade'): o que disse acima como 'inscrição' são 'resultado' deste jogo que não 'aparece', se dissimula, retêm e difere; mas quando lemos uma inscrição, um texto, um problema, uma música ouvida, essa leitura repete o jogo, e excede essa repetição, segundo a capacidade do leitor.

Em relação à definição, escrita e inscrição em alfabeto entendem-se como sinónimos, digamos. A definição é uma operação de escrita, o tal arranque criador de essências intemporais e incircunstanciais e argumentação sobre elas: o que chamei texto gnosiológico, que se destacou dos narrativos e discursivos correntes e que inscreveu a escola (Academia, Liceu, Porta estoica, Jardim epicurista) como instituição da sua tradição. Mais tarde as universidades medievais, os laboratórios científicos. É a sua história com efeitos na transformação das sociedades , da cena da habitação, que mostra como ela se destacou da cena da habitação (a que pertence, como à da alimentação e à da gravitação) como cena histórica. A minha dúvida acima é saber como é que a história da literatura, da música, da pintura, se articula com ela.

15/10/2012

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 Imagem: obra plástica de Luís de Barreiros Tavares - 2012

sábado, 13 de outubro de 2012

112. Filosofia e literatura







"O momento chegou para deixar de sobrestimar a filosofia e, por esse mesmo facto, de exigir-lhe demais. Tal é o que importa (o que nos é necessário proceder) na penúria actual do mundo: menos filosofia e mais atenção ao pensamento; menos literatura e mais cuidado dado à letra como tal." (Martin Heidegger, Carta sobre o Humanismo; traduzido de Questions III).

"Por agora é o Idiota: é ele que diz Eu, é ele que lança o cogito, mas é também ele que detém os pressupostos subjectivos ou traça o plano. O Idiota é o pensador privado por oposição ao professor público (o escolástico) (...)."
(Gilles Deleuze, O que é a Filosofia?, Trad. Margarida Barahona e António Guerreiro, Ed. Presença, p.57)



L.T. : Sabemos que o Heidegger não era muito dado à literatura.
Não sei se isto te choca, mas por vezes, mesmo quando estou a ler um texto do Heidegger, também me ocorre a impressão de entrar em qualquer coisa que raia o literário. Às vezes acontece-me estar a ler uma obra filosófica e de súbito começar a ver nascerem personagens. Talvez seja um pouco aquilo que o Deleuze quer dizer com "personagens conceptuais" (O que é a Filosofia?). Neste livro parece-me estabelecer-se uma relação entre o conceito, ou a criação de um conceito, e a personagem conceptual: "As personagens conceptuais [...] operam os movimentos que descrevem o plano de imanência do autor e intervêm na própria criação dos seus conceitos" (p.59); "Pode acontecer que a personagem conceptual só bastante raramente, ou por alusão, apareça por si mesma. No entanto, ela está lá; e mesmo inominada, subterrânea, tem de ser reconstituída pelo leitor (p.58)." Creio que nesta última citação o Deleuze encontra na criação dos conceitos o modo como através deles se manifestam, devêm - para empregar a sua linguagem - as personagens conceptuais.
Por outro lado, estou a lembrar-me da distinção que fazes entre os "três tipos linguístico-textuais nos grandes corpus literários do Ocidente", (§ 44 do La philosophie avec sciences... , na sequência da tua leitura do Benveniste, reenviando na nota de rodapé 27 para a 3ª parte do livro -  ). Embora refiras aí que estes tipos linguístico-textuais podem comunicar entre si ("Mais il faut convenir que chacun peut intervenir peu ou prou dans l'autre" (§ 44)).
Mas não deixo de perguntar-te se um dos motivos fortes dos teus textos é o de os manter gnoseológicos tanto quanto possível (neste caso, mais nos campos das filosofias e das ciências), tanto mais quando te dizes defensor da 'definição'.


10/10/2012

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F.B. :  Eu não sou 'defensor da definição', ela não precisa de ser defendida, acho eu, a filosofia depende dela. Justamente enquanto texto gnosiológico, argumentos sobre essências definidas intemporais, incircunstanciais.
Sem verbos, apenas cópula ('é' ou plural 'são'). A história dela é a história de releituras incessantes dos seus debates, relançando-os, alterando-os, dando de passagem origem às ciências, e isso fez uma história, complexa, é claro, mas que veio a alterar a história ocidental, transformá-la, fenómeno único neste planeta (de que o cristianismo participou, mas justamente por ter sido enxertado de filosofia).
As narrativas dizem respeito a acontecimentos singulares: para Aristóteles relevam do acidental, não são susceptíveis de epistêmê. Os discursivos, de um 'eu' para um 'tu', falam da experiência ou saber de singulares, são a doxa de que Platão quis libertar o saber. Claro que nunca se arrancou completamente ao singular, ao histórico, mas isso funcionou historicamente. Mesmo o 'eu' do Cogito cartesiano é um conceito filosófico, deu o sujeito, a consciência. Ora, a aceleração da história com o início da revolução industrial e as revoluções políticas, a Francesa e a Americana, trouxe-a, à história, à filosofia: Hegel, Marx, Nietzsche, Heidegger. Estes dois últimos deram um passo filosófico para o 'antes' da definição, para fora do par sujeito / objecto, mas esse passo, se se aproximou da literatura, não deixou de ser filosófico na sua problemática. Não foi 'contra' a definição, mas indagar além dela. O Heidegger namorou Hölderlin e outros poetas, mas não fez literatura (nem Nietzsche, que mais parece, aonde filosofia e literatura se distinguem mal). Quanto ao Derrida, o motivo da escrita era 'maldito' pela filosofia, justamente por ser literário e cheio de ambiguidades, foi donde a definição saiu; o que ele fez foi levar esse motivo a sério, o motivo de texto e de diferença, e revolver a filosofia relendo a escrita dos textos filosóficos, indagando da sua escrita e dos percalços que ela provoca à filosofia que se queria 'pura', racional, não 'letra', só pensamento; mas também leu textos literários, poéticos, dos mais difíceis.


13/10/2012


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 Imagem: obra plástica de Luís de Barreiros Tavares - 2012

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

111. Filósofos, filosofia e profundidade






L.T. : Vai assim: não sei se é uma questão de fundo. Não achas que os filósofos (a filosofia (?)) - e não me excluo disso -, tendem por vezes a supor (pressupor (?)) que levantam geralmente questões de maior profundidade que as de outros campos do saber, mas também do produzir? Não o neguemos; quantas vezes ouvi dizer de x, y, z, etc., que sicrano ou beltrano (ou os seus pensamentos) é mais profundo que fulano de tal, etc... Será verdade?


04/09/2012

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F.B.: Essa questão, posta assim parece um conflito entre departamentos de especialidades diferentes a quererem um ranking de profundidade. Na perspectiva do que faço, creio que o que nos interessa hoje é colaborar entre especialistas fora dos laboratórios, porque adentro deles os paradigmas, como dizia o Kuhn, são incomensuráveis. Mas este 'fora' é muito difícil.

O aspecto mais geral da questão: a filosofia inventou a definição e inaugurou o discurso do saber ocidental. Durante muitos séculos, os filósofos eram globais, até aos séculos clássicos pelo menos, XVII e XVIII. Pelo contrário, as ciências nasceram por regiões ônticas (matéria e energia, em torno do movimento, no caso da física que se expandiram a outras afins, como a óptica e depois a electricidade, e por aí fora; biologias, história dos textos antigos, etnologia, sociologia, história, e por aí fora, psicologias), são especialistas. Mas saíram da filosofia (que se tinha ocupado dessas regiões sem laboratórios e critérios experimentais) e tentaram livrar-se das suas problemáticas metafísicas. O problema (raros cientistas dão por ela), quando se lhes põem as famosas revoluções de paradigmas, é que as suas questões estão enredadas na ontoteologia que as suas descobertas (evolução em biologia, por exemplo importante, ou psicanálise, linguísticva com Saussure, etc.) põem em questão: ficam com o rabo entre duas cadeiras. Os filósofos percebem as questões de forma mais geral e abstracta (é a isso que se chamava 'profundo'), de mais difícil acesso para eles, são poucos por isso, mas também para os que não são filósofos, com o resultado actual de se encontrarem sozinhos entre si, também especializados em regiões filosóficas, de pouca gente os entender.

Pode-se pensar que quase todas as questões interessantes que os filósofos levantaram ao longo de 25 séculos de filosofia são retomadas por ciências, de há uns dois séculos para cá, mais ou menos. Só que são questões que  transbordam muito as especialidades, até entre ciências  e entre regiões da mesma ciência, o que torna os cientistas mal apetrechados para elas, em geral sem o saberem: o problema da ignorância é não saber que é ignorante; mas os filósofos também são demasiado ignorantes das ciências e escapam-lhes pois aspectos importantes que as ciências revelaram e que tornam novos os problemas filosóficos.
Esta mútua ignorância é de 'paradigma', de formação em sentido universitário. Há hoje gente que passa de especialidades para outras, e nomeadamente de biologia ou medicina virem estudar também filosofia.

Mas eu falo a partir do que entendi do Heidegger e do Derrida, e aí o caso é ainda mais dramático, porque quase ninguém os conhece, quase só especialistas que os comentam e interpretam. Ora, seriam o farol do futuro do pensamento fecundo, a meu ver, mas arriscam-se a ficarem marginais, continuando-se a fazer filosofia e ciências como se eles não tivessem publicado nada.
Ou então, mais provavelmente, sou eu que não sou suficientemente profundo.

04/09/2012

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Imagem: obra plástica de Luís de Barreiros Tavares - 2012