sábado, 20 de agosto de 2011

11. O jogo das ciências.

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Filosofia
das ciências e filosofia com ciências.
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L.T. : Duas perguntas:
"Je me suis retrouvé ainsi face au rapport entre un discours scientifique et un discours philosophique où aucun n’avait de priorité sur l’autre, où chacun changeait de par son rapport avec l’autre (c’est ce qui indique «l’avec» dans mon titre, dans Philosophie-avec-sciences)" (Le jeu des sciences 1.6). [encontrei-me assim diante da relação entre um discurso científico e um discurso filosófico em que nenhum tinha prioridade sobre o outro, em que cada um mudava devido à sua relação com o outro (é o que indica o 'com' em Filosofia com ciências)]. Quando falas de “filosofia com ciências” e não de “filosofia das ciências” isso quer dizer que propões com a tua “nova fenomenologia” uma reformulação da filosofia e das ciências no ‘com’ (avec)?
“É preciso penetrar com ousadia nos paradigmas para se pôr em jogo a sua componente filosófica escondida”( La philo avec scie., parág. 6). Mas não é verdade que a ‘componente filosófica’ se manifesta em cada paradigma diferentemente, nas suas diferenças?
20/7/2010

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F.B. : Proponho que as ciências (que usei) joguem um papel filosófico na filosofia com ciências (f. c/c.), enquanto fenomenologia: retorno às coisas, aos fenómenos, definidos pelas duas leis indissociáveis e inconciliáveis. O que permite também fazer f. c/c. das ciências (por exemplo, discuto os conceitos de força e energia em física contando com as ciências dos vivos). Mas sobra muita filosofia, o pensamento do Heidegger e do Derrida é muito mais do que isto, as estéticas, éticas, etc.
Quanto ao obstáculo no paradigma das ciências, tem a ver com a preponderância do 'dentro' sobre o 'fora', em cada uma à sua maneira, é certo. A cena é que dá cada assemblagem (ou fenómeno), tem pois preponderância sobre ele (o tráfego 'explica' o automóvel); as ciências não dão por isso, o que se liga, em cada uma à sua maneira, é certo, outra vez, à relação sujeito / objecto. Nos três estratos de cada ciência (Jeu des Sciences, 9.28, vê também os §§ 23-30), é parcialmente no 2º mas sobretudo no 3º estrato que a questão se põe, este difícil para os cientistas, os outros para os filósofos. Estes não sabem do que se passa no laboratório; os cientistas têm uma má filosofia sobre a 'realidade' fora do laboratório, herança europeia que nos institui a todos no liceu, é a isso que pretendo remediar, apoiado nas próprias descobertas científicas (com elas), o que chamo fenomenologia tem a ver com o 'fora do laboratório', onde se passam as coisas.
23/7/2010
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Ler o pensamento no cérebro?
1. Grande livro, O homem neuronal, de J.-P. Changeux, que li em 1983 logo que saiu e depois disso já reli por duas vezes. Nomeadamente o seu conceito de grafo, que permite entender como o que aprendemos, por exemplo, a linguagem, se inscreve na rede neuronal e se torna parte dela. Esse conceito, a meu ver, contraria, felizmente, a esperança que ele manifestou na entrevista a Ana Gerschenfeld, de que ‘vai ser possível um dia ler o pensamento’ (P2 de 13/07). E digo felizmente porque penso no que uma polícia, PIDE ou de Guantamano, não poderia fazer com essa possibilidade.
2. Primeira dificuldade: se não souber sueco ou russo, não se pode ‘ler o pensamento’ nessa língua sem se a conhecer. Como o pensamento (que não consiste apenas em ‘intenções motoras’, o seu exemplo) só existe em discurso, com as suas regras linguísticas, é difícil de ver como um neurólogo o lerá nos grafos neuronais. Nem sequer os sonhos, que são visuais, cinematográficos, M. Jouvet conseguiu decifrar neurologicamente, apesar de ter consagrado a essa tentativa toda a sua vida de cientista (conclusão de O sono e o sonho, de 1992). Julgará Changeux que pode descobrir neuronalmente as regras linguísticas que se jogam nos nossos cérebros?
3. Em casos mais simples, pode-se dizer a dificuldade. As nossas palavras transformam-se em electricidade por meio de um telefone e voltam a palavras sonoras por outro telefone. Ou o que escrevo num teclado e chega ao ecrã dum amigo. Sem estes ‘transformadores’, não é possível ‘ler o pensamento’ directamente na electricidade.
4. Ora os grafos de Changeux são electricidade e química neuronal. Os neurónios são as células da ‘consciência animal’: com as suas sinapses podem ser afectados de fora, por outrem, e autoafectarem-se uns aos outros. Os transformadores, para os outros, são os ouvidos e a fonação. Mas para cada um de nós, não são necessários, sabemos o que pensamos nos nossos grafos, ao mesmo tempo em que o pensamos. Felizmente, grande liberdade nossa que, como diria o Esteves Cardoso, podemos mentir aos outros, só nós é que sabemos.
5. No caso do telefone e do computador, a distinção entre o que se diz ou escreve como software e os fios do hardware, é fundamental. Ora, o que é aprender? É criar grafos, software que, repetindo-se muito, se torna hardware; eis a grande descoberta de Changeux, a diferença clara entre o nosso cérebro e um computador. Mas haveria muito mais a dizer sobre os limites filosóficos da entrevista dum grande cientista.
O próprio do corpo é de se expor, enquanto rosto que fala, ao seu próximo, seres-no-mundo. A rede neuronal, pelo contrário em rede, não é senão a sua auto-afectação em rede, precisamente, a sua estrutura é ser uma rede de diferenças temporais (de electricidade iónica e química nas sinapses) que não pode ser atingida com aparelhos, enquanto ‘corpo’, já que desprovida de ‘substancialidade’ (como é o caso da circulação do sangue).
(F. Belo)

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Imagem: templo de Sounion, Grécia.
Cortesia: http://niranludens.blogspot.com/

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