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A lei da selva comanda as anatomias animais*
7. A caracterização inadequada mas reiterada da selecção natural como mecanismo incita a procurar saber se haverá algo como uma lei fenomenológica a que obedeçam os mecanismos biológicos, que possa esclarecer melhor sobre o que é que se exerce a selecção natural. Ela andará em torno da questão crucial de todos os vivos, que implica a relação do organismo com o que está fora dele mas lhe é necessário, a saber a questão da alimentação através de outros organismos. O que há de particular nesta questão é que, à excepção da água, todas as moléculas que constituem as células contêm átomos de carbono. Poucos existindo à partida na água onde se gerou a vida, e o número de vivos tendo vindo sempre a crescer, isto só foi possível através da fotossíntese que os vai buscar ao CO2 da atmosfera para constituírem as moléculas das células das plantas, aonde os herbívoros os vão buscar e os carnívoros depois a estes, segundo o chamado ciclo do carbono (parecido com o da água). É este ciclo que implica o que se pode chamar literalmente lei da selva: os animais só sobrevivem comendo outros vivos, sejam plantas sejam animais. O que é assim um mundo de imensa contingência.
8. Qual é o interesse desta lei? Sem que eu saiba dizer como é que ela pode interessar as plantas, todos os animais minimamente extensos são estruturados segundo ela: deverão ter uma anatomia capaz de ‘caçar’ e de digerir plantas ou animais e capaz de fugir a ser caçado. Nos animais melhor conhecidos por um leigo em biologia, distinguem-se, além do esqueleto e do sistema da sexualidade, dois grandes tipos de sistemas de órgãos: a) órgãos que têm a ver com a ingestão e digestão dos alimentos e com a circulação do sangue em equilíbrio homeostático que leva as moléculas digeridas e o oxigénio da respiração a todas as suas células, para que estas operem o seu metabolismo, isto é, refaçam as moléculas da sua estrutura especializada; b) órgãos que têm a ver com a caça e a fuga, sistema neuronal (órgãos de percepção do exterior e interior, cérebro, nervos) e muscular da mobilidade. Se tomarmos o exemplo dum mecanismo, um automóvel, percebe-se alguma analogia conceptual: além dos cilindros do motor que transformam a energia, todos os órgãos do automóvel são calculados para circularem nas estradas, virarem à direita ou à esquerda, travarem, recuarem, acelerarem, etc., em função de situações regidas pela lei do tráfego, que não diz respeito só ao ‘meu’ automóvel mas a todos os que circulam e tem a ver com situações aleatórias. Precise-se que aleatório é diferente de acaso: que eu tenha que me desviar dum carro surgido repentinamente à minha esquerda, é aleatório, faz parte do possível na circulação automóvel; que o condutor desse carro seja um colega de liceu que nunca mais tinha visto é um acaso que não tem nada a ver com a lei do tráfego. Esta lei[1] determina todos os projectos laboratoriais dos engenheiros das fábricas de automóveis e tem como consequência lógica que todas as regras científicas (físicas e químicas) que jogam nas peças da máquina estão ao serviço duma condução essencialmente aleatória. O mesmo se passa com a lei da selva, obviamente mais complexa: ela determina todos os órgãos da anatomia dos animais minimamente extensos, e as regras bioquímicas, anatómicas e histológicas da constituição dos organismos respondem igualmente ao aleatório das situações de caça e de fuga.
Passar do ‘ambiente’ à cena ecológica
9. Todos os biólogos sabem isto, que eu deduzi do que li em livros de divulgação, e se digo ‘deduzi’, é por não o ter encontrado explicitado, ainda que sem a designação que lhe dei (a expressão ‘lei da selva’ é antiga, mas só se usa metaforicamente), não encontrei nunca esta explicitação da economia da alimentação. Razões empíricas: talvez que, antes da biologia molecular, os anatomistas não pudessem entender suficientemente as incidências do ciclo do carbono, e que, depois dela, a anatomia se tornasse um capítulo secundário face à importância das novas descobertas.
10. Seja como for, espanta-me que na literatura de divulgação biológica que li esta economia estrutural da biologia animal nunca tenha sido aflorada e os Gregos dizendo que o espanto é o começo da filosofia, atrevo-me a tentar procurar uma razão filosófica para esta lacuna de fenomenologia biológica. Tratar-se-á de outro preconceito filosófico que fará parte da teoria do paradigma dominante da biologia actual. Ele assinala-se no próprio texto de T. A., quando ela falando do ‘ambiente’, diz que este “inclui não só factores como temperatura, humidade, etc., mas outros organismos: predadores, presas, parasitas, etc.” (p. 32). Se se disser que a ‘temperatura’ e a ‘humidade’, o clima em geral, assim como a mineralogia do ecossistema, são exemplos normais de ‘ambiente’ no que este tem de exterior ou de ‘inerte’ em relação ao processo da reprodução das espécies, de não controlável por estas, percebe-se claramente que ‘predadores’ e ‘presas’ correspondem a uma categoria completamente diferente: todos os organismos animais são predadores e podem ser presas! É a lei da selva que claramente escapa a T. A., o que mostra que há que trabalhar este conceito de ambiente, substituí-lo, por exemplo, pelo de cena biológica ou, de forma mais geral, de cena ecológica.
*De um texto inédito: Diálogo com Teresa Avelar e António Damásio .
L.T. : Ando a ler sobretudo Heidegger (Ser e Tempo, Tempo e Ser e o texto sobre a Physis ), Aristóteles (A Física , bilingue), Platão (Fedro, Sofista, Timeu, Teeteto, etc., alguns bilingue) e algo de Derrida (por exemplo o texto La Différance que é extraordinário). E também o Jeu des Sciences. Isto é um mar imenso.
Mas queria pôr algumas questões sobre o diálogo com T.A. e A.D.
1. Se bem compreendi, o espantoso é que, na linha da tua proposta que me parece bastante interessante, a “atmosfera” (§7) não tem, por um lado, aparente e directamente a ver com a “questão da alimentação” de “todos os organismos animais”. Estes serão uma “categoria completamente diferente” (§10) - sendo eles predadores e podendo ser presas (§10) - da da ‘atmosfera’ (§7), e, de uma maneira geral, do ‘ambiente’ “no que este tem de exterior ou de ‘inerte’” (“mineralogia”, “ecosistema”, etc. (§10)), enfim do chamado ‘ambiente’ que deve ser substituído pelo conceito de “cena ecológica” (§10). Mas por outro lado a atmosfera tem também a ver com a alimentação. Pois dela, conforme referes, provém o CO2 cujos átomos de carbono são decisivos para a constituição das moléculas das células das plantas (fotossíntese) aonde se alimentam os herbívoros e a estes os carnívoros (ciclo do carbono, lei da selva). Espantoso também é o facto de que na “água onde se gerou a vida” poucos átomos de carbono existam, quando “todas as moléculas que constituem as células contém átomos de carbono” (§7).
Nota: Não sei se fiz aqui alguma confusão ao estabelecer analogia entre ‘atmosfera’ (§7) e ‘ambiente’ (§10).
2. Um aspecto que me parece importante é o de que embora a água não disponha de muitos átomos de carbono, ela alimenta as plantas (daí a seiva que corre nelas), as quais processam a fotossíntese indo buscá-los ao CO2 da atmosfera. Das plantas se alimentam os herbívoros e destes os carnívoros. Apesar de não saber explicar creio que haverá aqui uma qualquer articulação com o ciclo do carbono e com a lei da selva. Talvez resida aqui, nas plantas, algum papel para a compreensão desta lei. Mas difícil de determinar. No início do §8 levantas uma dificuldade sobre as plantas que me parece ir ao encontro desta questão. De facto, nas plantas não há predadores nem presas salvo a excepção das chamadas ‘carnívoras’. Mas esta excepção não me parece para este caso argumento convincente. Isto não é fácil.
2/3/2011
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F.B. : Tens toda a razão quanto à atmosfera, ela faz parte da cena ecológica (além do CO2, o oxigénio da respiração animal), mas os minerais também. O problema é que 'ambiente' é bom para a política, ecologia militante, ministérios, etc. Mas é 'sem lógica biológica', ao contrário de 'cena ecológica', é essa a questão. O ambiente fica de fora das considerações dos biólogos, não se presta a entender a lei da selva. Aliás a T. Avelar não entendeu nada disto, mostra-me que a questão dos termos / conceitos é pertinente. Quanto à água no texto refere-se aos primeiros tempos da evolução, em que não havia muitos átomos de carbono; digo logo no princípio do cap. 3 do Jeu des Sciences que ela foi retirada para dentro dos organismos, como sangue e seiva, justamente: a vida das células continua banhada em água, como foi nos primeiros seres vivos!
3/3/2011
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3 § do livro ainda inédito de Fernando Belo:
FILOSOFIA COM CIÊNCIAS
UNIFICAR OS SABERES
(Darwin, Damásio, Prigogine)
CÉREBRO, CONSCIÊNCIA E MUNDO
(diálogo com António Damásio)
e outros ensaios de FILOSOFIA COM CIÊNCIAS
A produção de entropia
37. Segundo Prigogine e Stengers[1], a história da Física no século XX reparte-se em três épocas: a) a da formação de duas teorias fortes, a da relatividade e a da mecânica quântica; b) a das descobertas experimentais, depois dos anos 50, das partículas instáveis, da história do Universo (o famoso big Bang) e das estruturas de não equilíbrio; c) a actual (escrito em 1988), a busca duma nova “coerência” teórica (T.E., p. 43-4, II). Ilya Prigogine (1918-2003) recebeu o prémio Nobel da Química em 1977 pela sua descoberta da “estrutura dissipativa” das reacções químicas no metabolismo das células dos seres vivos, que é uma das formas de estruturas de não equilíbrio que os autores referem (N.A. 223-7). Esta descoberta levou-os à critica do modelo da Dinâmica clássica que domina a Física desde Newton até Einstein e à Mecânica quântica inclusive, criticando também a relação deste modelo com a Filosofia (aliança de Kant com Newton, N.A., 142-7, Leibniz e o princípio da razão suficiente, T.E., 26, I, 35-7, II): é o determinismo deste modelo que é constantemente questionado nestas obras, a sua noção de causalidade, a reversibilidade das trajectórias dos elementos e a sua consequente ignorância da irreversibilidade do tempo, da sua flecha, da diferença entre passado e futuro. Com efeito, nesta Física clássica, qualquer fenómeno num sentido temporal dado pode ser concebido como fazendo o trajecto inverso, de acordo com as equações que descrevem essa trajectória (como se pode voltar matematicamente à equação de partida). Ora, em qualquer das ciências das outras realidades, biologias, sociologias, filologias, não se pode voltar atrás, o passado conta estruturalmente para se entender o presente; esta crítica de Prigogine, nas regiões da Física em que for pertinente, permite articulá-la com as ciências de vivos e de humanos.
38. A estabilidade dos fenómenos físicos depende de duas coisas: dos movimentos dos planetas nas suas trajectórias previsíveis e da estabilidade dos átomos do nosso Universo morno, permitindo a construção de moléculas e de organismos vivos (T. E 145, VI). Ora, já no século XIX se impuseram aos cientistas fenómenos de instabilidade como a propagação do calor e a termodinâmica dos gases. Para poder tê-los em conta, os autores propõem passar da concepção clássica – trajectórias de ‘elementos’ independentes uns dos outros nas suas trajectórias – a outra concepção em que se trata de campos abertos e das respectivas populações, de ‘elementos’ que interagem entre si com transferências de energia que alteram esses elementos, por exemplo, as colisões das moléculas dum gás ou as partículas num acelerador, que provocam ‘acidentes’, no calão dos físicos, isto é, alterações das trajectórias; estas tornam-se tão complexas – devido às correlações longas que se originam nos campos – que, a partir dum certo horizonte temporal, deixa de ser possível prever as transformações do campo, e menos ainda seguir as trajectórias das partículas nos seus movimentos. Quer isto dizer que as trajectórias já não são reversíveis, que nem sequer se pode falar de trajectórias (no sentido em que supõe a independência dos elementos da população em movimento). Trata-se assim de fenómenos que relevam das probabilidades, portanto do indeterminismo: há que introduzir, na própria noção de lei física, o factor tempo, no sentido que o termo tem em história, comportando uma flecha para o futuro, a irreversibilidade, a não simetria entre o passado e o futuro.
39. Seja então o caso do metabolismo celular. Nos seus fenómenos químicos predominam reacções químicas não lineares[2], de auto-catálise, auto-inibição e catálise cruzada (N.A. 209, 223) num conjunto de “milhares de reacções químicas simultâneas, que transformam a matéria de que a célula se alimenta, sintetizam os seus constituintes e rejeitam no exterior os produtos não utilizáveis” (N.A. 206). Estes fenómenos não podem ser estudados apenas no nível molecular da Química estabelecida, há que considerar a organização supramolecular (N.A. 220) e também as flutuações que, em vez de regressarem para o estado de equilíbrio (segundo o 2º princípio da Termodinâmica), se amplificam e invadem todo o sistema, que evolui para um estádio instável, longe do equilíbrio, onde essas flutuações permanecem no entanto estruturadas dissipativamente. Em contradição com o princípio de ordem da Termodinâmica estatística de Boltzmann, a dissipação entrópica produz uma nova ordem, que não é inteligível senão ao nível da célula com “regulação propriamente macroscópica, tornada possível pelas regulações microscópicas, mas qualitativamente novas em relação a elas: o global não é, como tal, directamente dedutível das suas partes analisadas” (N.A. 226).
40. Trata-se portanto duma produção de entropia que cria uma ordem instável, ou estabilidade longe do equilíbrio, e não da entropia uniforme da estabilidade da tradição. A actividade entrópica deixa de ser “sinónimo de degradação, de nivelamento de diferenças” (T.E. 50, III), deixa de ser uma “negatividade”, uma “morte térmica”, para ser uma estruturação positiva, criadora de matéria e espaço tempo na origem do Universo, dos astros, da vida orgânica na Terra. Três exigências para pensar esta entropia: irreversibilidade (“corte da simetria entre antes e depois”), acontecimento (“não pode ser deduzida duma lei determinista”) e criação duma nova coerência (“transformação do sentido da evolução, ritmada pelos acontecimentos [...] gerando novas coerências”) (T.E. 46-7, III). Quer dizer que se tem um campo e a sua população – o campo é teoricamente prévio à população mas não é sem ela, já que resulta das relações de força dos seus componentes populacionais (ver §§ 39-40) – que se encontra num estado de turbilhão, de ressonância, de caos pletórico de acontecimentos populacionais, e que é o próprio campo que é transformado, da desordem a uma outra ordem (acompanhada aliás duma certa desordem residual): pode-se falar de Acontecimento.
41. Em que é que consiste esta novidade de produção de entropia, chocante à primeira vista face ao 2º princípio da Termodinâmica? Assim como a entropia desse princípio (Clausius), negativa, é a qualidade degradada da energia que não serve já para nada, por exemplo o vapor de água a ferver, o gás que se dissipa na atmosfera após ter explodido, dir-se-á que tem entropia positiva a energia capaz de ‘trabalhar’, de produzir algo, por exemplo, o movimento dum automóvel. No caso deste, como já o era na máquina a vapor, após o estádio dissipativo da explosão no cilindro do motor, o êmbolo liga fortemente essa energia para a poder fornecer ligada como energia de trabalho ao aparelho do automóvel, susceptível de oscilações, desde o ponto morto até à alta velocidade, para se adequar ao aleatório das situações do tráfego na estrada[3]. Teremos então três estádios entrópicos da energia dum carro: em expansão caótica, ligada ou inibida e capaz de trabalho. O terceiro, oscilante consoante a sua situação, é manifestamente instável mas de forma paradoxalmente estável, sempre diferente da pura dissipação (a qual no entanto continua necessária, tanto quanto a ligação forte conseguida pelo êmbolo, para que a oscilação seja possível). Ora bem, este estádio instável, oscilando entre limites, corresponde nos fenómenos biológicos onde Prigogine a teorizou como estrutura dissipativa, ao motivo de homeostasia: estrutura em equilíbrio produzida pela entropia positiva (ver citação de Monod, § 39n.). Mas o pensador, tanto quanto o li, nunca saiu do nível bioquímico, nunca pôs a questão da relação desta estrutura dissipativa com os motivos da biologia molecular (ADN, ARN, etc.), assim como não parece ter aceite que esta entropia positiva permaneça susceptível de conhecer uma degradação mortal, que ela é pois uma fase transitória da realidade viva (essencialmente mortal), durando um certo tempo e vindo depois à negatividade entrópica de Clausius, que ela diferiria enquanto ‘criação’, de que ela seria um adiamento[4], o que permite explicar simultaneamente a vida e a sua mortalidade intrínseca. Será este modelo prigoginiano reformulado que nos permitirá abordar os fenómenos que as diferentes ciências estudam.
[1] Isabelle Stengers, química e filósofa, assina com Ilya Prigogine os textos a que me refiro aqui: A Nova Aliança, metamorfose da ciência, (N.A.), Gradiva, 1987, e Entre le Temps et l'Éternité (T.E.), ed. port. Gradiva, 1991 (este citado da ed. francesa, com o capítulo em romanos).
[2] “Cujo efeito reage em compensação sobre a causa” (N.A. 223). O cap. 4 de Le hasard et la nécessité de J. Monod conta bem essas reacções. Com correlações entre elas, são activadas ou inibidas por enzimas consoante a sua proporção (se falta ou sobra o substrato catalizado), num sistema oscilante entre limiares, que implica o que J. Monod chama “estado homeostático do metabolismo celular” (p. 98).
[3] Aleatório é diferente de acaso. Se tenho que desviar o meu carro dum que me aparece inopinadamente, é aleatório, conforme com a lei do tráfego. Se o condutor desse carro é um amigo meu, é acaso.
[4] Não só nunca fala nisso nos seus textos, como recusou essa perspectiva derridiana quando lha propus, num encontro em Lisboa, no Outono de 1988.
Imagem: pintura - obra plástica de Luís de
Barreiros Tavares
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