quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

127. Há matéria nos fonemas?








L.T. : Há matéria nos fonemas?





26/02/2013


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F.B. : Linda questãozinha.
Primeiro, seria preciso saber se o som, o ruído, que é uma vibração do ar, tal como uma onda do mar, uma frequência,
se é 'matéria'. No vazio, não há som, haverá pois matéria aérea que suporta o som. O som linguístico, palavra, frase, conversa, resulta duma inscrição de diferenças nessa 'matéria sonora', se ela for matéria, como o que chamei 'matéria de empréstimo'. Esta consideração prévia não se poria se a tua questão fosse sobre as letras, e não sobre os fonemas: a tinta, o carvão do lápis, o giz de antigamente, são matérias de empréstimo das letras, das palavras escritas, destas que estou escrevendo.

No rigor saussuriano, "na língua não há senão diferenças", não há matéria nos fonemas, eles são da língua, os sons relevam da fala. Mas esse rigor é necessário ao laboratório linguístico, onde apesar de tudo, se trabalha com sons, e durante séculos sobre palavras escritas (gramáticas!). Os fonemas formando palavras são puras diferenças (estas também): não há matéria neles, mas fonemas, só os há na matéria sonora do ar. Os fonemas são o que é o mesmo em diferentes vozes sonoras. E a matéria sonora das vozes é o que, em cada uma, excede esse mesmo que lhes é comum, a todas, e que permite que elas se entendam (melhor ou pior, é claro, mas isso é já um passo adiante, questão de sentido).

Ora, o interesse enorme da tua tão pequena questão é que toda a tradição filosófica acreditou que os fonemas das palavras eram sonoras, sensíveis, e que o sentido delas era inteligível. Ainda um bom linguista saussuriano, Roman Jakobson, intitulou (ou não foi ele o autor do título? de publicação póstuma) um seu livro 'Seis lições sobre o som e o sentido'. Esta partição da palavra, do signo, entre som e sentido, como se ambos existissem previamente e a linguagem os juntasse, é contra essa visão metafísica (sensível / inteligível), que de Platão e Aristóteles nos vem, que de Saussure se levantou. Nem os sons 'con', 'cei', 'ção' existiam em sítio nenhum prévio, nem a 'ideia' de 'concepção'. Inventar palavras, e portanto fonemas, regras de sintaxe para formar frases, tudo isso foi necessário para se 'pensar' o que palavras e frases dizem, uma receita de cozinha, por exemplo. Sem os fonemas em palavras não há sentidos, não se pensa no sentido corrente da palavra.

É por isso possível, com inspiração em Derrida ("La différance", in Marges), mostrar como a linguagem é obstáculo decisivo a essa oposição metafísica: os fonemas não são sensíveis (neles não há matéria) mas são diferenças entre vozes sensíveis (só os há em matéria); e também os sentidos das palavras não são inteligíveis (isto é, não são independentes da sensibilidade), visto que, ao nível agora da frase, elas só podem ser entendidas com sentido enquanto diferenças entre elas (que só as há, igualmente, em matéria sensível). Foi uma razão forte para a subordinação europeia da linguagem à 'ideia' inteligível, desde Descartes até Husserl.
A língua e as suas diferenças (sem matéria) só existem em falas sonoras ou em escritas (matérias de empréstimo).



27/02/2013

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