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UM PRECONCEITO FILOSÓFICO NO PARADIGMA DAS BIOLOGIAS
I - Selecção natural e lei da selva (diálogo com Teresa Avelar)
Filosofia com Ciências
1. Gostei muito da clareza argumentativa do recente livro de Teresa Avelar (T. A.), A evolução culmina no homem?, da sua tese sobre o papel da contingência (e das convergências frequentes) na evolução dos vivos, do carácter único e irrepetível desta. Bate-se assim contra os criacionismos anacrónicos, mas também contra o que diz ser um preconceito antropocêntrico de muitos biólogos evolucionistas, que colocam os humanos como ‘cúmulo da evolução’ dos animais. Já o filósofo Gilles Deleuze tinha nos anos 70 proposto substituir o esquema clássico da árvore genealógica hierárquica pelo do rizoma, como T. A. fala de arbusto. Assim como na história dos humanos há progressos (tecnológicos nomeadamente) sem progressismo[1], também a evolução se fez e se faz sem evolucionismo.
2. Este preconceito finalista é de origem filosófica, pois os conceitos das ciências europeias foram herdados historicamente da filosofia grega, Sócrates, Platão e Aristóteles, inventores da definição e da argumentação sobre as essências intemporais, abstraídas das circunstâncias, do contexto, dos seres concretos analisados. As narrativas e os discursos quotidianos dizem sempre respeito a singulares concretos em contextos determinados, a definição deu origem a um tipo de texto gnosiológico - filosofia, lógica e ciências - tendente a um saber geral, universal. Já havia geometria e astronomia, e portanto matemática, na Babilónia, no Egipto, na China como na Grécia, mas não os seus discursos teóricos, devidos a Euclides, cujos Elementos (300 a.C) só foram possíveis devido à Lógica de Aristóteles (que morreu em 322). As ciências europeias, por sua vez, inventaram o laboratório (Galileu, Newton, etc), em que se medem e avaliam movimentos, reelaborando em consequência as definições herdadas da filosofia na formulação das suas teorias: definições e argumentos dum lado face a experiências que lhes põem objecções do outro.
3. Ora, Newton, como mostra o título do seu livro principal, Princípios matemáticos de filosofia natural, considerava-se filósofo, só ao longo do século XVIII é que as ciências se foram autonomizando da filosofia, Kant tendo suspendido a dimensão filosófica que elas herdaram da história das definições e argumentações filosóficas para lhes garantir a necessária autonomia em relação à metafísica. Mas não era possível impedir que perdurassem preconceitos filosóficos nas evidências não questionadas dos sábios, uma boa parte das dificuldades das grandes descobertas científicas implicando um verdadeiro trabalho filosófico da parte deles contra preconceitos tradicionais, trabalho crítico esse constitutivo do que Kuhn chamou revolução dos paradigmas. Após o grande desenvolvimento científico dos dois últimos séculos, encontramo-nos na situação oposta: diante da imensa fragmentarização dos saberes científicos em especialidades infindas, a crescente reclamação de interdisciplinaridade estimula a recuperar essa dimensão filosófica das novas ciências e a formular uma fenomenologia, uma descrição dos fenómenos em que as principais descobertas científicas tenham também um lugar filosófico. Em prol duma articulação dos saberes. A uma tentativa assim chamei filosofia com ciências ou fenomenologia reformulada[2]. Se me ocupo aqui de biologia, é porque a filosofia de que me reclamo foi elaborada lendo livros de biologia e neurologia, entre outras ciências.
4. Digamos que há quatro grandes domínios ‘históricos’ da realidade de que se ocupam as ciências. 1) o domínio da gravitação: a história da formação dos astros, os seus fenómenos caracterizando-se pelos núcleos atómicos de protões e neutrões; 2) o domínio da alimentação: a evolução dos vivos, caracterizados pelo ADN; 3) o domínio da habitação: a história das sociedades humanas, caracterizadas pelas unidades locais de habitação e os paradigmas dos seus usos; 4) o domínio da inscrição: a história (ocidental) dos textos literários, filosóficos e científicos, caracterizados pelo alfabeto. Acontece que estas quatro ‘histórias’ são todas passíveis de inúmeras contingências e frequentes convergências, o que me incita a dialogar com T. A. sobre um outro pressuposto filosófico (também de cariz antropocêntrico, cf § 18) ignorado dos biólogos, que ela própria partilha. A grande dificuldade, onde residem tantos diálogos de surdos, é que este tipo de pressupostos corresponde a evidências não questionadas, que fazem parte da própria maneira de colocar as questões, da chamada ‘filosofia espontânea dos sábios’ (Althusser). É por isso que alguém trabalhando em filosofia pode ousar entrar em questões de especialistas sem o ser[3], a partir da sua outra especialidade.*
[1] A chamada Idade Média representa uma regressão em relação às grandes civilizações da Antiguidade mediterrânica, cujos progressos a sequência moderna europeia não ‘repetiu’.
[2] Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida (2 volumes), 2007 (com índice pormenorizado das matérias: Biologia, cap. 3, 6.3-11, 11.2-46, etc) e e La Philosophie avec Sciences au XXème siècle, 2009 (Biologia, §§ 19-26, 53-60, 67-8, 88-95, 168-70), ambos na editora L’Harmattan. Gonçalo Z. Pereira escreveu uma recensão muito inteligente do segundo no nº 38 da Revista Filosófica de Coimbra, que acaba de sair. Ver também um resumo em www.filosofiamaisciencias.blogspot.com.
[3] Tendo vindo a estas questões, não pela física ou pela biologia mas pela linguística (Belo, 1991a, tese de doutoramento na Faculdade de Letras de Lisboa, onde ensinei Filosofia da linguagem vinte e cinco anos), sou relativamente ignorante da tradicional filosofia das ciências devido a esta minha contingência, mas a ela devo a originalidade que julgo ter a minha proposta.
* Os quatro primeiros parágrafos do diálogo com Teresa Avelar e António Damásio.
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L.T. : Penso que compreendi melhor certas coisas. E só hoje à noite é que pude ler o teu texto com atenção. Comigo tem que ser assim. 'É precioso ler, pensar e escrever'. Se bem que isto 'fosse pensado como logocêntrico'. Isto leva-me a pensar segundo as tuas palavras, que ler, pensar e escrever precisa de não ser pensado logocentricamente. Pois tudo isso é aprendido de fora e no tempo: "Como é que se pode 'aprender' uma ideia? Só palavras e frases, isto é, os seus significantes", escreves.
Por outro lado, ainda seguindo as tuas palavras, e se bem compreendi, provavelmente o pensamento do Damásio também é logocêntrico. Daí que escrevas "o privilégio destes perto da alma (ou no cérebro, na 'mente' do Damásio)". Parece-me um dos pontos da tua crítica do Damásio. Volto a insistir num efeito que há tempos abordei em conversa contigo e que poderia chamar-se 'diálogo de surdos' que referes precisamente no início do teu diálogo com a T. Avelar e o A. Damásio. É que provavelmente ele também pensa logocentricamente (vício talvez de um certo estatuto científico) acerca do modo como pensa o pensador não 'científico', por exemplo o chamado filósofo, o pensador, e mais ainda talvez o que faz filosofia das ciências, estes sem 'laboratório'. Mas é interessante que nos filósofos e nos pensadores entre eles também pode acontecer o mesmo. E também entre cientistas de diferentes especialidades, enfim, entre diferentes especialistas. Mas não sei desenvolver isto.
Se assim é, ou se se pode falar de coisas destas, e segundo estas leituras, o que é que se passa então de tão difícil de compreender (não sei explicar melhor), e que marca muitos dos discursos, científicos, filosóficos, etc. enquanto logocentrismo? Quer dizer, como é que o logocentrismo está nesta diversidade de discursos, se é que se pode colocar assim a questão?
3/04/2011
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F.B. : Somos todos logocêntricos, no Ocidente, espontaneamente.
O essencial da minha crítica ao Damásio implica o entender os humanos, os animais em geral, como seres no mundo: dados pelo mundo (antepassasdos, progenitores, mestres, alimentação, todo o tipo de aprendizagem) que nos faz e deixa ser autónomos, e por isso mesmo 'logocêntricos espontaneamente', quando dizemos 'eu penso que'. Donde que me seja muito difícil eu pensar-me a mim não logocentricamente: é possível que só se possa pensar o logocentrismo na 3ª pessoa, ou gnoseologicamente: somos / são todos logocêntricos.
A não ser quando por exemplo damos por um sonho bizarro nosso e nos interrogamos sobre ele, ou certas experiências em psicanálise em que se percebe que há mais do que uma instância, não apenas o 'eu', mas também certas 'crenças', ingénuas ou não, certas pulsões, fobias, com que não concordamos, de que nos quereríamos livrar, que nos provocam uma dor que não é como a de partir uma perna, que dói no 'eu', se dizer se pode. Este tipo de coisas mostram que somos inscritos além do 'eu' de que temos consciência. O logocentrismo é a ignorância deste carácter primordial de inscrição (Derrida), de doação retirada (Heidegger).
4/04/2011
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