quinta-feira, 19 de abril de 2012

62. e 63. - 62. Filosofia das Ciências e Filosofia com Ciências. Como articulá-las? 63. Logos tinos peri tinos (Platão) e legein ti kata tinos (Aristóteles). Citando Barbara Cassin. Breves comentários ao seu texto.







63. Logos tinos peri tinos (Platão) e legein ti kata tinos (Aristóteles). Citando Barbara Cassin. Breves comentários ao seu texto.







L.T. : “A mais simples symploke, entre nome e verbo, é de saída explicitada por Platão como um logos tinos peri tinos. Em Aristóteles, essa mesma symploke (essa é a tarefa das Categorias e do Sobre a interpretação) explicita-se na célebre fórmula: legein ti kata tinos. Ora, de uma fórmula à outra, há mais do que uma mudança de preposição – de peri, “em torno de”, a kata, “sobre” -, mesmo se, como se pensa, o kata desemboca em“categorias” que permitem normatizar a taxinomia de questionamento, de um sujeito e, por excelência, explicita em quantos sentidos o ser se diz. Com efeito, na fórmula platónica, conforme vimos, os dois tinos designam a mesma coisa; em “Teeteto voa”, por exemplo,trata-se em ambas as vezes de Teeteto, numa primeira vez como “ideia”propriamente “nomeada” no logos (é Teeteto), e uma segunda vez como ligado a, participando de algo diferente dele,como esfera de pertencimento (Teeteto: ele voa; não, está sentado). Na fórmula aristotélica, ao contrário, em cada ocorrência de ti trata-se de duas coisas diferentes: legein ti enuncia algo que é um predicado (por exemplo: voa, está sentado), e kata tinos é enunciar algo de outra coisa, a qual é um sujeito (por exemplo: Teeteto).”
Barbara Cassin, O Efeito Sofístico - sofística, filosofia,retórica, literatura, trad. Ana Lúcia de Oliveira e M. C. Franco Ferraz,Editora 34.
Ler em booksgoogle:
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Nota: não percebo por que é que os tradutores (ou o autor? não conheço o texto no original) não traduziram “peri” do Peri hermeneias como “acerca de”, “em torno de”, pois o“sobre” conforme vem na tradução (Sobre a interpretação) reenvia para kata que significa justamente “sobre”, ou para um movimento de “descida a”. “De peri,“em torno de”, a kata, “sobre” “, escreve Barbara Cassin. É que o texto conforme é traduzido - ou escrito no original - nestes pontos que creio bastante importantes pode tornar-se menos claro.
Questões que levantamos relativamente ao logos tinos peri tinos em Platão e ao legein ti kata tinos de Aristóteles.
1. Quando Barbara Cassin escreve: “Com efeito, na fórmula platónica, conforme vimos, os dois tinos designam a mesma coisa; em “Teeteto voa”, por exemplo, trata-se em ambas as vezes de Teeteto, uma primeira vez como“ideia” propriamente “nomeada” no logos (é Teeteto), e uma segunda vez como ligado a, participando de algo diferente dele, como esfera de pertencimento (Teeteto: ele voa; não, está sentado).
Questão: portanto, “os dois tinos designam a mesma coisa”. Esta análise observa uma posição de constatação, uma posição que se põe?
2. E quando escreve: “Na fórmula aristotélica, ao contrário,em cada ocorrência de ti trata-se de duas coisas diferentes: legein ti enuncia algo que é um predicado (por exemplo: voa, está sentado), e kata tinos é enunciar algo de outra coisa, a qual é um sujeito (por exemplo: Teeteto).”
Questão: “(…) em cada ocorrência de ti trata-se de duas coisas diferentes” . Se assim é, então no que respeita a Aristóteles, poder-se-á supor um desdobramento daquela constatação platónica?
23/04/2012

Vídeos com Barbara Cassin falando da tradução e das línguas numa sessão na Ucrânia.






 62. Filosofia das Ciências e Filosofia com Ciências. Como articulá-las?


 




L.T. : Às vezes acho que sei pouco ou nada de filosofia. Gostaria de retomar a questão “Aristóteles”. Não li ainda com atenção o teu último texto sobre ele que está no teu blog. Vou somente tentar abordar alguns problemas que creio importantes, embora careça de muito mais leituras. Portanto, surgirão falhas, e até eventualmente graves. Retomo uns passos da mensagem 5 do bLogos. Se acharem por bem, que me perdoem e corrijam os leitores mais entendidos nestas matérias.
Citação de um meu texto da mensagem 5:
“"14. Le statut de la Physique serait donc celui de l’élaboration des motifs généraux des diverses sciences, motifs qui organisent leurs textes; car c’est en elle que sont élaborés, à la seule exception de dunamis / energeia (32), les grands motifs de la pensée philosophique d’Aristote et ensuite de l’Europe. Avec la mathématique et la philosophie première ou théologie, il s’agit d’une “science théorétique qui traite de l’étant qui peut se mouvoir, et de l’ousia [...] non séparable”, précise-t-il (33), telle qu’elle a le but de rendre possible ces diverses sciences." Philo.avec sciences. [sublinhei]
Há no entanto uma passo importante na Metafísica (1003 a 20), que certamente conhece: "Há uma ciência (epistémê ) que contempla (theorei ) o ente enquanto ente (tó on hê on - τὸ ὄν ᾗ ὄν) e o que lhe corresponde. E esta ciência não se identifica com nenhuma das que chamamos particulares (en mérei - ἐν μέρει, por partes, de cada vez, à vez), pois nenhuma das outras especula em geral (katholou – καθόλoυ) acerca do ente enquanto ente (to ontos hê on ), mas sim, havendo separado alguma parte dele, consideram os acidentes de esta; por exemplo, as ciências matemáticas (mathematikai tôn epistemôn). Mas o ente diz-se de múltiplos modos (Tó dé on légetai mén pollakôs)". Traduzi da Metafísica, ed. Trilingue, por Garcia Yebra. Este passo da Metafísica foi várias vezes referido por Mário Jorge de Carvalho nas suas aulas de Ontologia. O curioso é que () - «enquanto», «como», «que é» (diferenciando aqui do ti esti, τι εστι : o que é, o que é que) - do to on hê on refere uma particularidade, uma singularidade qualquer. A do ser enquanto tal. O ser enquanto material e formal. Mas ao mesmo tempo o remete para a epistémê katholou (M.J. de Carvalho). Daqui decorrem alguns apontamentos a que cheguei. Ser enquanto tal, não separado da ousia, a qual como se sabe é identificada ao ser (a questão "o que é o ser" equivaleria à questão "o que é a ousia", num outro passo da Metafísica, 1028 b 4) e não se separa das coisas. Claro que Aristóteles opera com a Física a distinção da teologia e das ciências. E como o Fernando refere, se não se sair da Metafísica de Aristóteles e não se der a devida atenção à sua Física, para a qual Heidegger apela com o seu Ce qu'est et comment se détermine la phusis, fica-se numa ambiguidade Platão/Aristóteles sem se compreender suficientemente o salto do segundo e da abertura para a instituição das ciências. No entanto, há algo de paradoxal. Não deixa de ser interessante este momento em que a epistémê katholou (ciência do geral, ou do universal) se mantém numa ponte onde as ciências en merei se manifestam ainda nela. Pois há uma ciência katholou (geral) como as outras (en merei - particulares), as quais, precisamente, também são 'ciência' (epistémê). Por outras palavras: a ciência geral (epistémê katholou), que trata do ser enquanto ser, distingue-se das outras ciências (epistemon , as particulares - en merei ), as quais, todavia, não deixam de ser ciência (epistémê ), tal como ela, que, noutro sentido, trata em particular - e portanto, arrisco a dizer, supostamente en merei - do ente enquanto () ente, (to on hê on) ou seja, que é afinal o ente em geral. E também enquanto ela, a epistémê katholou, se diz contemplar (theorei ) o ser enquanto () tal (o ser enquanto (é) ser). Mas a Física vem de facto indicar a sua separação, a das várias ciências? E no entanto, escreve Aristóteles: " a ciência é sempre Universal" (Met. 1003a15). Começará aqui também "o esquecimento do sentido do ser" segundo Heidegger?”
Releitura: Há, digamos assim, um entretecimento das ciências na totalidade (diríamos uma symplokê, um plegma; Platão também fala de um entretecimento do nome e do verbo). Sendo que, porém, quando a epistemê katholou investe as ciências particulares enquanto ciências, estas, por sua vez, investem, instituem aquela como ciência, sendo ciência tal como as outras, com elas, quando cada uma destas, por sua vez, é ciência. Penso que esta perspectiva não implica uma lógica de simplificação assente numa simetria.
Ora, o que é que acontece com a predicação silogística? Um entretecimento. Exemplos: 1. A de B, B de C, etc.; 2. A é B, B é C, A é C…
E o que é que acontece com o desencadear das ciências a partir da Physika segundo a tua citação do Aristóteles (“… telle qu’elle a le but de rendre possible ces diverses sciences.")? Por esta ordem de ideias um entretecimento, parece-me também.
Diremos que há correspondência entre estes níveis, entre estas duas escalas? Isto leva-me a dizer que sim. Quais as implicações?
Isto reenvia para a famosa árvore de Porfírio. Mas Aristóteles fundou-o, e aquele, segundo se diz, tratou de classificar mais as coisas elaborando – com seu mérito, claro - a partir daí a tal “árvore”. Com estas questões pode-se caminhar também para o nominalismo. Escrevi o que pude sobre isto na 10.
Mais do que uma linha ontológica optas por uma linha fenomenológica. Pode-se dizer que se marca aqui uma diferença e que há que tê-la em conta na leitura dos textos acima. Deslocando para a questão da filosofia das ciências e da filosofia com ciências. Neste quadro, o “de” da “filosofia das ciências” talvez não seja o bastante para a compreensão da questão da filosofia e das ciências, como pareces indicar no Jeu des Sciences. Por outro lado, a filosofia com ciências que propões na tua nova fenomenologia não dispensa, como disseste algures, a filosofia das ciências.
Mais uma vez e de outro modo a questão: Como articulá-las?
18/04/2012
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F. B. : Creio que a distinção importante a fazer é entre a Physica como filosofia do ente enquanto se move, onde Aristóteles elabora as suas categorias, e a Metaphysica como filosofia do ente enquanto ente, em que ele reelabora as categorias da Physica. Ora as categorias da Physica (ousia, aition, cada uma com 4 sentidos, dunamis e energeia...) são depois utilizadas para as diversas disciplinas 'científicas' em sentido grego, a partir da definição, e é por isso que a Physica é filosofia com ciências. Se isto esclarecer as tuas questões, muito bem, se não não vou pôr-me a reler o velho Aristóteles, já estou velho eu também.Agora, a questão é saber porque é que isto não é claro? O Heidegger começou por uma tese de doutoramento sobre um texto medieval e veio a suspeitar o aristotelismo dessa gente, tendo levado uns 25 anos até ao "Como se determina a phusis". Creio que o problema foi a maneira como Tomás de Aquino substituiu o Platão (que até aí era o filósofo da teologia, desde o Orígenes e do Agostinho), por Aristóteles, ou melhor pela Metaphysica do Aristóteles, sem dar a atenção devida à Physica: considera o 'movimento' um 'acidente'; o latim separa a ousia (1ª e 2ª) em substância e essência; a introdução do Criador como dando 'acto de ser' (esse) à essência em cada acto de criação. Isto, e / ou coisas parecidas provocou uma embrulhada imensa, de que um dos mais importantes filósofos da Idade Média em língua francesa, Alain de LIbera ( La querelle des universaux, De Platon à la fin du Moyen Age, 1996, Seuil ), dá testemunho 'malgré lui', ao considerar a certo momento, uma afirmação de Aristóteles como não aristotélica (assim como não se dá conta de que este não conhece o conceito de 'signo', que veio dos Estoicos e pressupõe a tradução, e portanto o helenismo).

 


18/04/2012
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Imagens: pinturas - obras plástica de Luís de Barreiros Tavares

61. Heidegger e Derrida.






61. Heidegger e Derrida






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F.B. : Imagina que me perguntavas: como é que tu vês a relação do teu trabalho com os pensamentos do Heidegger e do Derrida de que te reclamas? É claro para quem te ler e os ler a eles, que têm estatutos bem diferentes.
Acontece que o lançamento recente do Heidegger, pensador da Terra me fez pensar na questão, estive a reler uma entrevista do Derrida pelo Nancy, "'Il faut bien manger' ou le calcul du sujet", Points de suspension, Galilée, 1992, para me inspirar. A questão tem a ver com o facto de se tratar de dois pensadores que se iniciaram através da fenomenologia do Husserl mas depois chegaram a um estatuto, por assim dizer, meta-fenomenológico e de eu pretender que, através deles e das principais descobertas científicas do século XX, é possível e fecundo reformular a fenomenologia fora do 'sujeito' husserliano. Primeira coisa: não creio que nenhum deles tenha cortado com a fenomenologia de maneira que não seja possível que eles iluminem as tais descobertas científicas (estas não é discutível que têm a ver com 'fenómenos'). Nomeadamente: a diferença ontológica heideggeriana, entre Ser (Ereignis, em 62) e entes, permite considerar estes como fenómenos (em "A questão dos exemplos", tratei disso há poucos dias), assim como a différance derridiana tem uma dimensão económica e outra excessiva, singular, que permite encarar fenómenos. Ainda que nenhum deles se tenha interessado sobremaneira por isso, mas tinham-no no horizonte (Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, cap. 13, §§ 58-60). Esta fenomenologia iluminada por eles, feita com eles, pode ajudar as ciências a considerarem o fora do laboratório em que se confinam sem darem por isso, a reformularem o seu discurso em consequência: o laboratório reduz o fenómeno a analisar, criando condições de determinação que não existem nas cenas da chamada realidade, redução e determinação essas que são essenciais às ciências. Ora, as tais descobertas, vista fenomenologicamente, esclarecem as regras dessas cenas.Mas também creio que issto se torna interessante para a desconstrução derridiana: seja a dita entrevista que põe a questão do que substitui o 'sujeito', ou melhor a sua problemática, após ser desconstruído; a fenomenologia proposta permite, parece-me, 'esclarecer' alguns pontos do 'terreno' digamos em torno dos quais eles andam como que sem saída. O 'sujeito', tal como a 'alma' a que ele sucede, exclui o corpo e assim como a neurologia (Damásio) ganharia em considerar o 'ser no mundo' para perceber o funcionamento do cérebro fora dele, no mundo, também o questionamento de Derrida ganharia em ter em conta a biologia para o que procura no 'animal', que é nessa entrevista o que substitui o 'corpo' (palavra que ele evita: quando o conheci, explicou-me que falando de 'corpo', a 'alma' vem atrás) por exemplo, perceber que um macaco e uma formiga, ambos sendo 'animais', jogam de maneira totalmente diferente em relação à questão do sujeito humano, um é comparável, o outro não, de maneira que a questão 'é preciso comer' faz parte essencial dos 'sujeitos humanos' tanto como dos 'animais', de 'todos' aliás. Também a consideração da aprendizagem dos usos da tribo como instituindo os sujeitos humanos poderia permitir entender melhor o discurso dum 'sujeito' que vai se alterando à medida dos usos que aprende; ou a consideração da diferença entre um discurso em 'eu' (como o Cogito, origem próxima do sujeito) e um discurso gnosiológico. É certo que não pretendo que ter essa fenomenologia em conta fosse decisivo para a desconstrução propriamente dita enquanto operação de pensamento de Derrida, mas alargaria os textos a considerar, e nisso ele é inimitável, verdadeiramente prodigioso.A fenomenologia que propus pretende contribuir para uma reformulação pós-desconstrutiva, reconstrutiva, da tradição sistemática do saber ocidental, que está hoje em dia estilhaçada entre numerosas disciplinas que se ignoram umas às outras e ignoram também a tradição filosófica donde vêm e que poderá ajudar a esclarecer o que elas buscam. Pensar sempre foi querer 'economizar' saberes.
19/04/2012

Nancy falando de Derrida:


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Cortesia Youtube:







Imagem: pintura - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares