quarta-feira, 31 de julho de 2013

147. Nietzsche?









L.T. : Gostava de falar um pouco do Nietzsche. Porquê? Porque também escreveste e falaste sobre ele nas tuas aulas (em livros Leituras de Aristóteles e Nietzsche, Gulbenkian, 1994; artigos, etc.). Heidegger, que tanto aprecias, tem longos textos sobre ele.
A propósito, gostava de fazer uma breve referência ao José Pedro Serra e às suas muito interessantes aulas de Cultura Clássica sobre o Nietzsche e A Origem da Tragédia na UCP. O seu entusiasmo, digo bem, era tal, que o timbre da sua voz chegava a ressoar, vibrar levemente nos tampos de madeira das mesas. Sem estridência. As bacantes, Diónisos, Apolo, etc. Eu, pelo menos, dei por isso. Isto foi em finais da década de 80 do século passado.
Por que deixaste o Nietzsche, conforme uma vez me disseste numa conversa em Sintra?

Ver link:


 


27/07/2013

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F.B. : Gosto do José Pedro Serra, mas não me lembro de o ter ouvido (foi meu aluno) nem lido.
O problema do Nietzsche é que é difícil de o tratar devido à sua maneira literária, é preciso lê-lo muito. O Deleuze foi-me precioso, mas já lá vão 40 anos que o li. Na minha tese, digo algures que ele [Nietzsche] é perigoso e que estou ali para ser professor. Ou seja, creio que ele arriscou tudo, completamente, e acabou por a cabeça lhe explodir ou implodir. Li em tempos um livro sobre o dossier médico dele, não me pareceu que fosse possível encontrar uma 'doença' diagnosticável e tratável, foi o pensamento dele, a sua vontade de pujança (M. G. Llansol) que rebentou com ele: é um assombro, no sentido também que mete medo. Mas tudo o que escreve é fabuloso, só que tem uma zona 'anti' povo que eu detesto, de quem gosta de escravos.

29/07/2013
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sábado, 13 de julho de 2013

146. Corpo, linguagem, arte, etc.







L.T. : 1. “"O que o Caledónio entende como ‘corpo’ é provavelmente o que o missionário ocidental, que o interpela, entende como ‘espírito’, e vice-versa. Opera-se uma troca. Só uma troca? Não. Esta troca, por si só, não esclarece a diferença. Não se trata só de uma troca, menos ainda de uma troca simétrica". Não entendo o que te levou a escrever isto.”
Porque se fosse uma mera troca simétrica estaríamos num registo categorial, de um modo geral, ou mantendo o binómio sujeito/objecto, ou mais propriamente corpo/alma (vj. também espírito). Poder-se-ia objectar a quem sustenta uma filosofia ou filosofias do corpo o seguinte: “o senhor está a pensar categorialmente o corpo.” Mas pode surgir a contra-objecção: “Mas quem está a adiantar com o argumento de que a minha tese assenta no categorial é o senhor e não eu. Não falei disso. Você é que falou e está falando de categorial e da categoria corpo…” É que hoje usa-se muito o termo categoria para referir binómios, dicotomias e oposições, p. ex., a do sujeito /objecto.
Mas isto não me parece suficiente. O que me importa é perceber outras formas do aparecimento da linguagem. Por exemplo, o Agamben quando diz, acerca da linguagem, que é o dispositivo talvez mais antigo entre aqueles que enumera (“peut-être le plus ancien”): “…e, porque não, a própria linguagem, talvez o mais antigo dispositivo no qual, há vários milhares de anos já, um primata, provavelmente incapaz de dar conta das consequências que o esperavam, teve a inconsciência de se fazer tomar por ela (“ l’inconscience de se faire prendre” (?))” (Agamben, G.; Qu’est-ce qu’un dispositif?, trad. Martin Rueff, Payot Rivages Poche, 2007, p.32).
Como quando, por exemplo - isto parece-me muito importante - se processa o milenar trabalho do corpo, da linguagem e do pensamento – mesmo um trabalho milenar da ordem do espiritual, do meu ponto de vista – na arte do Paleolítico Superior. Não sei se sabes, fiz em tempos alguma pesquisa plástica sobre arte pré-histórica, acompanhada de alguma investigação bibliográfica. Trabalho milenar, com um jogo de distanciação e aproximação até à demarcação da dimensão do que é da génese espiritual do humano relativamente à realidade dos outros animais na sua estranha familiaridade connosco, por um lado, e na sua estranha distância, abissal distância, separação, em relação a nós, por outro. É a figuração ou configuração – para não falar nos signos esquemáticos e abstractos daquela arte – dos animais pintados traçados e esculpidos. Mas não é curioso que as figurações humanas são caricaturais, raras, e se produzem em esboços ou mistos zoo-antropomórficos (p.ex. xamanes camuflados com peles de animais, ou transfigurados neles)? E não é curioso que os animais naquelas produções artísticas tem expressões com algo de humano? E porque é que os homens não se figuraram? Chegam a fazer essa pergunta ao Leroi-Gourhan em entrevista ao realizador e entrevistador Paul Seban. Está num vídeo que fui buscar ao INA, praticamente esquecido, até por um distinto arqueólogo que conheço, o Vítor Oliveira Jorge, e que não tinha conhecimento desses vídeos. Evidentemente que lá por ele não conhecer aqueles vídeos não quer dizer que não saiba muito mais de arqueologia, paleontologia e muitas outras coisas que eu.
Embora Gourhan diga que se trata de um dos grandes enigmas da arte do Paleolítico Superior, acaba por resolver a questão, um tanto evasivamente do meu ponto de vista, dizendo que não havia destreza suficiente para trabalhar a fisionomia, as figura humanas, etc. Sinceramente, com todo o respeito e admiração que nutro por ele, não me convence esse argumento. Basta olhar para as linhas extraordinárias das gravuras, por exemplo de Foz Côa, bem como as pinturas de Altamira, Lascaux, para não falar nas esculturas, etc. Mas isto pede muito trabalho e é só um desabafo para já. Aliás já te tinha falado disto. Há uns anos, em conversa breve com o José Gil sobre estas questões, ele disse-me que tinha a ver com o corpo próprio. E de seguida deu o exemplo de Leenhardt com o Caledoniano de que falámos há pouco na mensagem anterior e noutras. Antes já tinha dito numa aula que era uma questão muito delicada e não podia ser tratada em minutos. E ficámo-nos por aí.
2. “… tive uma vez uma amostra com o João Resina Rodrigues, físico e filósofo, professor de relatividade e mecânica quântica (livros sobre ambas) no IST e doutor em filosofia por Lovaina, muito mais inteligente do que eu, sem dúvida nenhuma, e que não era fisicalista, é claro, não foi capaz de entender o duplo laço dum automóvel: para ele as peças jogam umas sobre as outras, causa e efeito, e mais nada, era o laboratório a raciocinar. “
Não percebo por que dizes que o João Resina Rodrigues é muito mais inteligente do que tu e depois acrescentas que “não foi capaz de entender o duplo laço dum automóvel: para ele as peças jogam umas sobre as outras, causa e efeito, e mais nada, era o laboratório a raciocinar. ” Não sei se interessa explicar esta passagem melhor.
3. Para já é só isto sem grandes elaborações. Depois vejo se posso desenvolver algumas coisas que me interessam sobre o corpo próprio, proprioceptividade (Merleau-Ponty), corpo-sem-orgãos (Artaud, Deleuze), se o corpo é o que está dentro da pele (“encorpado”, Damásio, segundo a tua observação na mensagem anterior) ou se ele não se limita aos seus contornos (Gil), etc.
Penso que já é texto suficiente para suscitar-te algumas questões.


8/7/2013



F.B. : Nem tanto. De paleo-história, arte ou não, não sei praticamente nada. Diria apenas, a propósito da linguagem como dispositivo mais antigo, que não creio que se trate só dela, mas que o primitivo será o par receita / uso, a linguagem dizendo coisas que se fazem, ou seja os usos fazem parte do dispositivo. 
Quanto ao J. Resina não compreender o duplo laço, não implica menos inteligência mas outro paradigma, em que o laboratório de física predomina. Aliás, ouvi-o uma vez  dizer, após uma conferência sobre qualquer coisa de filosofia das ciências (já não sei o quê, foi há muitos anos) dizer na conversa que se seguiu que não sabia nada de ciências sociais e humanas. Grande vantagem, saber o que se sabe e o que não se sabe. 

Continua as tuas questões sobre o 'corpo', é sempre em torno das questões que temos que convém trabalhar. O 'corpo próprio' foi um tema do Lacan e tinha a ver justamente com o corpo ocidental, o da alma, do sujeito, da consciência, o tal que o indígena não conhecia, que para ele seria 'comunitário', segundo o J. Gil. O ser no mundo do Heidegger acho que sai desse corpo próprio mas creio que falei disso na última vez, o Freud também ajudou fortemente a sair mas guardou-o em parte.
13/7/2013




Imagem: desenho - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

sábado, 6 de julho de 2013

145. Continuação - do corpo








L.T. : 1. “O corpo é no Ocidente uma noção metafísica.” A partir da tua afirmação creio poder evocar-se a célebre passagem do Caledónio citada pelo José Gil, e sobre qual cheguei a conversar um pouco com ele.
 "O corpo comunitário implica uma vivência do corpo singular como não separado, não isolado das coisas e dos outros corpos. O «corpo próprio» que a fenomenologia erigiu em conceito, é um produto do Ocidente - não é o que quer dizer o Caledónio cristianizado ao qual o missionário Leenhardt perguntava: «Em suma, é a noção de espírito que nós trouxemos para o vosso pensamento?» e que respondia: «O espírito? Oh! Vós não nos trouxestes o espírito. Já conhecíamos a existência do espírito. (...) O que vós nos trouxestes foi o corpo» [Leenhardt, M., (1947), Do kamo. La personne et le mythe dans le monde mélanésien, Gallimard, Paris, p.212]."
José Gil, Metamorfoses do Corpo, Lisboa, Regra do Jogo, 1980, p.48.
José Gil, Metamorfoses do Corpo, Lisboa, Relógio D'Água, 1997, p.58. Vj. também a entrada “Corpo”, por José Gil, na enciclopédia Einaudi.

Vê a mensagem 82 do bLogos sobre este tema e com esta citação.
Ora, quando o Caledónio responde ao missionário Leenhardt que o que lhe trouxeram foi o corpo e não o espírito (“Já conhecíamos a existência do espírito”), isso pressupõe já um binómio espírito /corpo em contextos que nos poderão escapar. Desconhecemos se esta versão do Leenhardt corresponde àquilo que o Caledónio realmente disse ou queria dizer. É que trata-se aqui de uma versão com algumas tonalidades ocidentais por parte de quem testemunhou ou recebeu o testemunho desse episódio e do que nele foi dito. Com efeito, desconhecemos o que o Caledónio entende propriamente por ‘corpo’ e por ‘espírito’. E se ele fala do corpo, ou se naquele momento pode falar dele, já teria a sua vivência, ou a sua noção, se se quiser. Embora diferente, bem como a do espírito. Quer dizer, uma vivência do corpo e do espírito certamente diferente. Daí que - e isto merece ser mais pensado - um seja tomado pelo outro. Ora, creio que o que está em causa e dificulta esta discussão é o seguinte. O que o Caledónio entende como ‘corpo’ é provavelmente o que o missionário ocidental, que o interpela, entende como ‘espírito’, e vice-versa. Opera-se uma troca. Só uma troca? Não. Esta troca, por si só, não esclarece a diferença. Não se trata só de uma troca, menos ainda de uma troca simétrica. Seria muito fácil uma leitura assim. É uma questão importante do meu ponto de vista. Ela pediria muita tinta e muito papel. Deixo-a em aberto com estas observações.
Também gosto de dar um arzinho da minha graça.
Coloquei uma questão semelhante sobre o ‘corpo’ ao José Trindade Santos que conheci pessoalmente há uns meses e a quem fiz duas entrevistas. Está no escrita-fone.
2. Virando a página e tentando manter o fio condutor. Cito uma passagem de um texto do Bragança de Miranda, Corpo e Imagem, Vega, 2008, p.84:

A formação do «corpo» enquanto categoria da metafísica começara a esboçar-se no mínimo desde os gregos, caracterizando-se por uma divisão essencial: entre «corpo e alma», antigamente, e entre corpo e «consciência», nos modernos. Esta divisão constitui sempre uma linha de combate, altamente dramática, e que toda a história sublinhou. É em torno desta divisão que se opera a crise do «corpo». Que, afinal, mais não é do que a crise da forma moderna do corpo, que tem sobrevivido mal aos imanentismos científicos e outros. Para que a «alma» se tornasse num mero fenómeno neurofisiológico bastou um passo, dado alegremente por muita gente (97). Desaparecida a «alma», o corpo fica reduzido ao orgânico e às imagens em que se pluraliza.

(97) O sucesso do livro de António Damásio O Erro de Descartes (1994) revela que se trata de um resultado largamente esperado. Mesmo uma filósofa como Catherine Malabou tem dificuldade em rebater o fisicalismo contemporâneo, procurando encontrar-lhe alternativas no próprio cérebro, que realmente se tornou num campo de batalha. Cf. Catherine Malabou (2004), Que faire de notre cerveau?, Paris, Bayard.

Talvez a este propósito, estou a lembrar-me daquela frase ou ideia lapidar do António Damásio que reza mais ou menos assim: “Se sinto, existo, logo posso pensar”.
Agora, Fernando, uma questão. Como o próprio nome indica, ‘fisicalismo’ comporta um sentido do que é da ordem do físico, reenviando mesmo para a etimologia de phusis, na acepção das ciências naturais, físicas (?) mantendo-se, parece-me, uma certa tensão com algumas ambiguidades entre, precisamente, o que é da ordem do físico e da ordem do conceptual. É provável que o fisicalismo atravesse, em parte, várias áreas do saber actuais, entre elas algumas ciências, neurociências, etc. bem como algumas vertentes filosóficas do campo epistemológico e cognitivo, como se diz muito hoje. Não sei como vês o “fisicalismo” neste possível contexto e se o consideras ou não viável, e como? 

26/07/2013

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F.B. :  "O que o Caledónio entende como ‘corpo’ é provavelmente o que o missionário ocidental, que o interpela, entende como ‘espírito’, e vice-versa. Opera-se uma troca. Só uma troca? Não. Esta troca, por si só, não esclarece a diferença. Não se trata só de uma troca, menos ainda de uma troca simétrica". Não entendo o que te levou a escrever isto. O José Gil cita essa conversa a propósito do que chama 'corpo comunitário' e que está mais perto do que creio ser o 'corpo' dos humanos como 'seres no mundo' (em nós com diferenciações de civilização, claro), se a palavra ocidental 'corpo' se prestasse a isso e não estivesse tão marcada pela sua oposição à alma, pela definição que justamente criou os limites (fines) ao corpo, pondo-os na pele. É aí que me diferencio do Bragança de Miranda: se houve desaparecimento da 'alma', como ele crê, não desapareceu enquanto oposta ao corpo, o nosso corpo guarda a alma, o sujeito, a consciência. Basta ler qualquer neurologista, sobretudo quando se quer fisicalista, para se ver que a 'alma' está na cabeça deles, nas questões que põem ao cérebro, à relação dele com o corpo, como se não fosse parte dele, etc. Quando o Damásio, no seu último livro, diz da 'mente' que ela é a rede neuronal a que só o próprio tem acesso, ele avançou fortemente para se sair da oposição corpo / alma em neurologia, mas ao não dar importância à aprendizagem nem à linguagem ficou a meio caminho, isto é, continuou 'encorpado' na pele. É por isso que acho que a palavra 'corpo' pura e simplesmente não pode ser utilizada em ciências ou filosofia, não se livra do seu passado.

Quanto ao fisicalismo, trata-se da pretensão dos físicos de serem capazes de explicar toda a realidade do mundo com as leis da física; ele reside na incapacidade de sair do laboratório para as cenas históricas, respectivamente da gravitação (astros), da alimentação (vivos), da habitação (sociedades humanas) e da inscrição (filosofia e ciências). As leis da gravitação valem em todas as outras cenas, que dela sairam, mas as suas ciências não sabem das leis que se lhe seguem, da vida (a bioquímica não chega para a biologia), como as da alimentação não sabem das leis seguintes, etc. Por definição de cena: saindo duma antecedente como excesso, uma nova estabilidade instável, esta tem regras que escapam às ciências da cena anterior, como prova aliás as diferenças de espécies (que a física nem a química explicam), ou as diferenças das sociedades e das línguas (que a biologia não explica).


O fisicalismo é um caso óbvio de reducionismo, que reduz tudo o que escapa ao seu laboratório. Tanto quanto percebo, eles estão limitados pelo tipo de causa / efeito que testam laboratorialmente e com que 'explicam' as equações cujas variáveis se verificam com os resultados experimentais, em que creio que reside o núcleo essencial da sua cientificidade. Assim, creio que o determinismo dos genéticos que queriam, por exemplo, encontrar genes da inteligência, genes da homossexualidade, é um fisicalismo, que não percebe que os genes se limitam a sintetizar as proteínas das suas próprias células especializadas e não parecem dar nenhuma importância à anatomia que os biólogos clássicos estudaram, e que é a continuação do trabalho dos genes. Li vários livros de biólogos muito importantes, nenhum fala nisso, como se a descoberta da genética molecular tivesse absorvido toda a biologia, o que é um fisicalismo bioquímico.


O caso mais flagrante de redução fisicalista é a da linguagem, se se sabe que Saussure e depois Derrida encontraram o seu segredo na diferença entre sons, e não nos sons. Um fisicalista é incapaz de o entender, só pode reduzir, mas sem conseguir explicar as diferenças entre as línguas. A acústica, região da física, não explica nada das diferentes línguas.

Também é incapaz de entender o motivo fenomenológico de 'duplo laço' (como aliás  qualquer motivo filosófico), tive uma vez uma amostra com o João Resina Rodrigues, físico e filósofo, professor de relatividade e mecânica quântica (livros sobre ambas) no IST e doutor em filosofia por Lovaina, muito mais inteligente do que eu, sem dúvida nenhuma, e que não era fisicalista, é claro, não foi capaz de entender o duplo laço dum automóvel: para ele as peças jogam umas sobre as outras, causa e efeito, e mais nada, era o laboratório a raciocinar. 

Isto é tudo dito rapidamente. Para se entender, é bom ter presente ao menos o MANIFESTO do meu blogue filosofia com  ciências.
29/06/2013
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Imagens: desenhos - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares