segunda-feira, 26 de novembro de 2012

124. Uma pergunta um pouco a cru. Pensamento prático ou pragmático?




L.T. : Uma pergunta um pouco a cru. Que responderias se te chamassem um filósofo com um pensamento prático? E prático pelo menos em duas vertentes: 1. Uma favorável, onde o sentido de prática, de uma práxis, exerce contrapeso ao de teoria, com todas as implicações que por vezes este segundo termo acarreta como, por exemplo, na sua conotação especulativa, enfim, fora de um certo critério de acção, etc. 2. Desfavorável, segundo certos critérios filosóficos de leitura, aonde, creio, essa praticidade, esse carácter prático, se torna, naqueles contextos, um tanto cru, digamos assim, para empregar de novo a palavra que usei de início como advertência para a minha pergunta. E é curioso que o teu primeiro livro tem no subtítulo 'prática' («Récit-Pratique-Ideologie»).
Não digo pragmático, para não entrar aqui nas etimologias nem confundir com o chamado Pragmatismo na filosofia anglo-saxónica. Pragmatismo que no entanto admiraste e pelo qual te interessaste durante algum tempo, por exemplo com o Rorty. Dei uma vista de olhos no artigo do Rorty sobre o Pragamtismo, no Dicionário do Pensamento Contemporâneo, dirigido pelo Manuel. Maria Carrilho, Ed. D. Quixote, 1991. Estou a lembrar-me do teu A conversa, Linguagem do quotidiano - ensaio de filosofia e pragmática, Ed. Presença, 1991.


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26/11/2012

L.T. : Continuando: Cru ou árido. É o problema de uma certa aridez em que alguns tendem - eu também, no início - a considerar alguns textos de Heidegger (Ser e Tempo e outros). Isto não terá que ver também com certas dificuldades relativamente àquilo que se chama o 'abstracto' em Heidegger, e de que já tivemos oportunidade de falar? Enfim, a questão da abstracção na filosofia. Mas é um abstracto extraordinário! Justamente, em vez de 'cru' ou 'árido', os teus textos também podem ser criticados, por alguns, exclusivamente daquele modo: também demasiado abstractos, dirão talvez alguns. Pois, há igualmente algo de abstracto e, paradoxalmente prático - e concreto, se quisermos - nos teus textos, a seu modo, claro.

26/11/2012

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F.B. : É certo que a fenomenologia a que cheguei, interpretando as grandes descobertas científicas do século XX com a fenomenologia de Husserl, Heidegger e Derrida, não é 'especulativa' ou 'abstracta' nem 'empirista', não se sujeita à descriminação entre teoria e prática. Tem por um lado uma ambição sistemática, a de não deixar de lado nada de fenomenal, mas por outro esse sistema não pretende conhecer nada na sua singularidade. Explicitando: recorre às descobertas científicas (que relevam de teoria e experimentação) mas para lhes reconhecer um papel não determinista de regulação autónoma (crescente com os níveis de complexidade) das coisas - graves, vivos, sociedades, textos, humanos - a que o motivo de duplo laço (Bateson, Derrida) dá consistência e ao mesmo tempo permite correlacionar coisas desses diferentes níveis ônticos. E portanto articular as respectivas ciências, sem que elas percam a sua autonomia.
Sobre a palavra 'pragmático': julgo que posso dizer que a minha leitura da história da filosofia acrescenta ao que Heidegger fez em relação às palavras filosóficas (dos gregos aos alemães) e Derrida aos textos (filosóficos e não filosóficos) uma leitura dos gestos filosóficos, como justamente as operações de escrita que são a definição e o laboratório científico, mas também a instituição de escola (Academia, Liceu, universidades medievais), a sua tradução (helenismo e clássicos europeus), papel na elaboração da teologia cristã em Alexandria e substituição de Platão por Aristóteles com Aquino, e por aí fora (direito, ética, política, estética, literatura, tudo domínios em que sou mais ou menos ignorante). Ora, isso pode ser dito uma leitura pragmática da história da filosofia.

27/11/2012

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L.T. : Curioso que me ocorreu inicialmente 'pensamento pragmático' e não 'pensamento prático'. Mas pelas razões que já indiquei optei por prudência pelo segundo. "Leitura pragmática......" parece-me feliz e bastante interessante.

27/11/2012

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 Imagem: obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

domingo, 25 de novembro de 2012

123. Aspas








L.T. : Enquanto faço um compasso de espera, talvez para uma questão que careça de mais uns dias, e enquanto completo lentamente a leitura da tua comunicação, passo a uma pergunta que pode parecer patética, mas que me suscita interesse.
Por que é que preferes as aspas «'...'» às «"..."» e, mais ainda, às "«...»" que nem sequer usas, pelo menos de há uns bons tempos a esta parte? É que embora uses as segundas, estas, apesar de serem empregues em citações, não me parece terem o exclusivo dessa função. Pois as primeiras, apesar de servirem preferencialmente para sublinhar e destacar um termo, não deixam, ao que creio, de ser colocadas também, ao mesmo tempo e noutras circunstâncias, para citar. Por outro lado, as segundas servem igualmente para uma só palavra (para sublinhar, para relevar de alguma maneira?). "Muitos autores as usam nesses casos, como sabes, e noutros também para citar, sendo uma só palavra: «"..."».
Se não estou a fazer confusão - não fui agora consultar nem verificar -, parece-me que por vezes também empregas as primeiras para mais do que uma palavra, ou até mesmo para uma frase. Sendo que, neste caso, trata-se igualmente de citação. Ou não?
Isto não é bem um quebra-cabeças, como bem gostava o Heidegger, segundo disse numa entrevista. Mas com aquelas aspas e mais aspas até parece.

20/11/2012

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F.B. : Confesso que não faço por ver fazer os outros, tenho um critério simples. "..." indicam citação, como julgo ser a regra, enquanto que '...' implicam que uso a palavra com alguma distância em relação ao seu sentido filosófico corrente, em geral ontoteológico. Como quero ter relação ao discurso estabelecido e para isso tenho que usar as suas palavras, por vezes tenho que marcar essa distância (julgo que o Derrida fazia assim, mas nunca me preocupei em verificar a coisa); mas também as uso para dizer que uso a expressão em sentido um pouco particular, como as 'vírgulas ' adiante. Quanto a «...», corresponde a "..." na tipografia francesa, quando escrevo em francês o Mac põe-nas e não tenho outro remédio. Mas não gosto esteticamente delas, prefiro a elegância das 'vírgulas' portuguesas: ‘...’ e “...”

20/11/2012



 Imagem: obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

122. Vídeo: Debate - Colóquio Internacional - Pulsão, Afecto, Inconsciente - Fernand...

121. Vídeo: Limites ontoteológicos da psicanálise, que ela transgride - Fernando Belo

120. Retomando. Reler.







L.T. : Basicamente a questão é esta: Freud entendia que a psicanálise fosse uma ciência. Referes no livro Filosofia e Ciências da Linguagem a psicanálise enquanto 'ciência terapêutica', embora não fosse esse o caminho a seguires aí. Antes a dimensão epistemológica e filosófica da psicanálise, pois consideravas Freud um dos grandes filósofos do século XX.
Será então pela dimensão científica atribuída à psicanálise enquanto ciência terapêutica - e natural, se não estou em erro - que se encontra várias vezes empregue a palavra 'descoberta', pelo menos em obras e comentários sobre ela, tal como, por exemplo nas citações que deixei do Laplanche e do Pontalis?
Há 'descobertas' na psicanálise?

14/11/2012

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L.T. : Está bem, vou ler melhor a tua conferência no teu blogue:


16/11/2012 

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F.B.: Explicar como é que a psicanálise pode ser considerada uma ciência só pode ser feito com uma série de telegramas.
Primeiro: uma ciência é uma actividade laboratorial, fragmentária, que é interpretada em função da cena da 'realidade' a que os fenómenos pertencem: o divã é o laboratório psicanalítico em que se 'reduz' a cena (diz-se tudo o que vem à cabeça, por parvo ou indecente que seja, não se dissimula nada).
As principais ciências são sobre 'espécies': (átomos e moléculas em química); espécies biológicas em biologia; as diversas sociedades humanas nas c. sociais; as diversas línguas nas linguísticas. A psicanálise não tem 'espécies', mas atravessa as três últimas, discurso, parentesco e lei social, sexualidade e alimentação.
A teoria das várias espécies, na perspectiva fenomenológica de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, implica um duplo laço entre a lei de reprodução geral das espéceis da cena e a lei de autoreprodução de cada singular, aquela dando esta como autonomia individual mas dissimulando-se; este duplo laço manifesta-se em duas formas de retiro em relação à cena, um estrito referente à energia (excepto na célula, que é diferente, constitutiva do "rasto vital") e um regulador da autonomia do ente singular na cena aleatória. Ora, a psicanálise é a única ciência que teorizou este duplo laço!
Enfim, como a caracterizar? como uma disciplina da medicina (regional), foi durante muito tempo só coisa de médicos, com a diferença em relação às outras regiões da medicina que não recorre a análises e medicamentos físico químicos, mas a uma relação discursiva. Pode ser comparada com a análises de discurso chamadas em tempos semióticas, de corpus narrativos ou poemas, ou de um texto singular já escrito (Barthes, S/Z) : semiótica experimental dum discurso singular, enquanto ele se faz em relação à energia sexual humana no seu laço à lei social.
"Um dos pontos tem a ver com a sua teoria da sexualidade, que ele não ‘inventou’ mas ‘descobriu’ nas associações livres dos seus pacientes, quando as suas resistências a dizer
– esquecimentos, lapsos ou outros actos falhados, intervenções súbitas da consciência vigilante que se auto-censura, silêncios, desmentidos, risos, choros, negações, etc. – se lhe deram como sintomas energéticos (diferenças de sentido e diferenças de força indissociavelmente) que assinalam uma clivagem, uma margem, um limite que não se pode passar, uma fronteira fractural, digamos, entre o que se diz e o que não chega ao dizer. Além dessa fronteira encontram-se os nós discursivos escondidos que manifestavam os sintomas neuróticos que levaram a pedir a terapia. Ora, é nessas repetições e resistências diversas que a sexualidade se manifesta como sexualidade censurada, interdita, tingida muitas vezes de agressividade, sexuali­dade incestuosa e de ciúmes correlativos : isto é, ela manifesta-se como ligada à lei social. Censurada, não apenas em relação ao analista, mas antes de mais e sobretudo em relação à consciência vigilante do sujeito, que se ofusca com aquelas revelações e não quer crer nelas. O interdito do incesto, que Lévi-Strauss veio a reconhecer como obrigando à exogamia, à aliança entre famílias, formando o nó constitutivo do social, é descoberto por Freud como o que, lei paterna vinda de fora, cria o inconsciente, isto é, um recalcamento que gera sublimação e é a própria dinâmica dos psiquismos humanos" (citado do final da conferência que esté no blog filosofia com ciências2.


 17/11/2012

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119. Provocação - extracção - Heraus-fordern - Heidegger; Descoberta - inconsciente - Freud






L. T. : Sim: "a natureza assim em estadia [enquanto questão] -> a natureza assim obrigada a responder". Não foi a melhor tradução.

"Porém, o desvendamento que rege a técnica moderna não se desvenda numa pro-dução no sentido de ποίησις. O desvendamento que rege a técnica moderna é uma pro-vocação (Heraus-fordern), pela qual a natureza é intimada a fornecer uma energia que possa como tal ser extraída (herausgefördert) e acumulada. Mas não se pode dizer outro tanto do velho moínho de vento? Não."

(Heidegger, Ensaios e Conferências, trad. A. Préau, Gallimard). Citação retirada de Pierre Trotignon, Heidegger, Trad. Armindo José Rodrigues, Lisboa, Ed. 70, 1982, p. 84.

Na primeira citação, está também em causa, de facto, o Heraus-fordern (provocação, extracção... Heidegger). Por outro lado, pensei na questão do 'apelo'. Não conheço o texto e o termo correspondente no original alemão, mas vou consultar. Depois, se for oportuno, direi alguma coisa.

Sobre a questão da 'Descoberta':

"Se fosse preciso concentrar numa palavra a descoberta freudiana, essa palavra seria incontestavelmente a de inconsciente. Por isso, nos limites da presente obra, não pretendemos historiar esta descoberta nos seus antecedentes pré-freudianos, na sua génese e nas suas sucessivas elaborações em Freud."

"É sabido que o sonho foi para Freud o caminho por excelência da descoberta do inconsciente."

Citações da entrada: "inconsciente", de Jean Laplanche; J.B. Pontalis, Vocabulário da Psicanálise, Trad. Pedro Tamen, Lisboa, Editorial Presença, 1990, p. 205 e p.206. [desculpa lá se falha alguma coisa na forma de anotação, tenho de tomar mais atenção a estes detalhes]

06/11/2012
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F. B. :  Não percebi nenhuma questão aqui.

07/11/2012




 Imagem: obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

terça-feira, 6 de novembro de 2012

117. Técnica e ciências - A questão da 'descoberta'. À espera de Godot?





L.T. : Se queres que te diga, me parece, as chamadas descobertas científicas não são mais - e já são muito, sem dúvida - do que a prova de que há uma dose, diria, e uma pretensão, embora compreensível, de previsão. Porquê? Porque ao fazer-se uma descoberta é preciso ter em conta que essa mesma descoberta responde, por seu turno, àquilo que se pode chamar a resposta da natureza ao apelo de que fala Heidegger: "... afin qu'on sache si et comment la nature ainsi mise en demeure répond à l'appel." Tento traduzir: "afim que se saiba se e como a natureza assim em estadia [enquanto questão], responde ao apelo" (A Questão da Técnica; retirado da citação na mensagem 110 do bLogos). É a tal história de que já tínhamos falado de uma certa inversão, ou antes reversão da frase do Protágoras que diz: "o homem [individualmente ou não, pouco importa agora] é a medida de todas as coisas" (vê a mensagem 15). Em que todas as coisas teriam uma quota-parte enquanto medida do homem. Isto parece um pouco um Ovo de Colombo. Mas talvez não. E, com o devido respeito, também não se trata da dialéctica especulativa hegeliana.
Nas ciências descobre-se. 'Descoberta' não é uma palavra usada e talvez abusada nas ciências? Descobre-se, na medida em que a descoberta vai no sentido do que as chamadas 'coisas' - o que não deixa de ser uma maneira de dizer -  fazem e vão fazendo com que as coisas, outras coisas já, e os estados de coisas (aqui penso no Wittgenstein), assim sejam, e não de outro modo. O que lembra aqui um pouco Leibniz e o princípio de razão suficiente, mas agora sem Deus.
Se se descobre um medicamento, esse medicamento corresponde, acho eu, a uma previsão. Ele vai responder, co-responder, à previsão, não só de que vai curar muita gente, mas de mais gente que poderá vir a necessitar dele em número acrescido no futuro. E sabemos que ironicamente as doenças entram muitas vezes numa lógica circular aonde elas são precisamente o produto de uma série de circunstâncias estruturais ao nível social, psico-social, económico, civilizacional, etc. Por exemplo, a sida, o cancro, com todo o respeito que tenho por estas abordagens. Mas também há o aleatório a que te referes, aonde - num determinado contexto, fora do laboratório, aparentemente controlado pelas terapias investidas por este - outras patologias, incertezas e perigos de toda a espécie decorrem, imprevisíveis. Decorrem, precisamente, em função do aparentemente controlado (e este conceito é forte; penso no Foucault), mas aonde entra o aleatório, de fora, tal como estudas nalguns dos teus textos, embora me desloque aqui um pouco no modo de expor o problema.
"Mas lá, aonde há o perigo, cresce o que salva" como diz o Hölderlin tão citado pelo Heidegger.
Não indo agora mais longe, creio que algumas das tuas propostas filosófico-fenomenológicas respondem bem e a seu modo a estes problemas.
É que a previsão por vezes parece-me supor o estar à procura de alguma coisa.
Revisitando o extraordinário Samuel Beckett, será que nós todos, cientistas ou não, escritores, poetas, artistas, gente na sua vida, andamos À espera de Godot?

04/11/2012


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F.B. : "a natureza assim em estadia [enquanto questão]" -> a natureza assim obrigada a responder

A minha resposta supõe a diferença entre laboratório e cena fora do laboratório, a chamada 'realidade'. Só pode haver 'previsão' dentro do laboratório, nos fragmentos experimentais. Como no teste duma máquina, por exemplo, em laboratório; fora, o carro joga na circulação aleatória. Ou a queda dum papel e dum pedaço de chumbo, no vazio laboratorial, à mesma velocidade; fora do laboratório, o chumbo é mais rápido, o papel conta com a resistência do ar. No caso dos remédios, a previsão de com aspirina deixar de haver uma dor de cabeça é previsível, mas há dores de cabeça que resistem e não desaparecem; por outro lado, há os chamados efeitos colaterais, hemorragias possíveis, por exemplo da aspirina, usada por isso aliás para evitar coágulos e AVC. Mas estes efeitos colaterais são justamente efeitos não previstos na experimentação, sobre outros órgãos do corpo; basta ler qq literatura de remédio para ver como são variáveis, aleatórios segundo os doentes que os tomam. Aliás, as 'análises' são  feitas justamente para se circunscrever tanto quanto possível as variações do estado de saúde / doença, em ordem a medicar, têm em conta o aleatório.
Outra coisa, com exemplo da fisica (Le Jeu des Sciences, cap. 9, § 31): os resultados das medições da experiência (tipo 100metros, percorridos em 30 segundos, e outras distâncias e em tempos t) vão preencher as 'variáveis' da equação v= e/t. A descoberta é essa correlação entre variáveis resolvendo uma equação física. São esses resultados que verificam equações que são depois aplicados em técnicas variadas, ou em remédios.
Creio que a diferença entre descoberta e invenção é entre a ciência e a técnica (tenho um texto recente sobre isso).
A citação do Heidegger não tem a ver com o laboratório mas com as técnicas muito poderosas actuais, por exemplo as poluições que elas provocam, as paisagens esburacadas da actividade mineira, a transformação da paisagem dum rio pela construção duma barragem, o rio virando albufeira a montante e ribeira quase seca a jusante, ar viciado das cidades, etc.


05/11/2012

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quinta-feira, 1 de novembro de 2012

116. Continuando. Kafka, Lacan, Derrida, Damásio e outros que tais.....






L.T. :  “…a nossa imagem de mim é por assim dizer 'corporal', resulta de todo o sistema de neurónios que nós somos como 'sentindo o fora de nós e o em nós', a que só nós temos acesso, como diz Damásio em O Livro da Consciência. Auto-afectação e hetero-afectação vão de par, diz Derrida, é o que define o vivo animado (animal).”
Embora possa parecer excessivo, diria que é como que uma imagem que se “adivinha”, mas não no sentido vulgar de adivinhar. A ‘adivinhação’ remete, p.ex., para as astrologias e magias antigas e/ou arcaicas e para certos mitos. E não é o mesmo que ‘previsão’, esta remetendo, como noção decisiva, para as ciências modernas. Menos ainda, ‘adivinhar’ na acepção de pré-figurar. Também não se trata de visualizar, ou pré-visualizar; mas, parece-me, no que está em jogo, em parte no 'hetero-afectar'  e 'auto-afectar'. Não  é, pois, do plano da visibilidade. O termo que usei de início ('adivinha' e seus derivados) serviu precisamente para ajudar a fazer-me entender no que segue, e pô-lo de lado, para me facilitar nos passos seguintes e abrir caminho. Portanto, já está fora de jogo.
O fabuloso conto Na Colónia Penal do Kafka poderá tornar mais explícito o que pretendo indicar. O condenado não visualiza propriamente a inscrição que lhe é dolorosamente infligida no corpo. Também não a lê no sentido banal. Há um misto de visualidade, leitura e tactalidade; hapticidade, digamos; mas não basta dizer que há um misto desses factores. O que faz com que se subverta qualquer interpretação, quer exclusivamente inteligível (ele não intelige a escrita, sendo esta, apesar de tudo, invisível aos seus olhos: ele sente-a), quer sensível (lê, mas sem ver sensivelmente, e, portanto, em parte, paradoxalmente intelige), quer mista (jogando redutoramente estes dois planos). Há qualquer coisa da ordem do corpo que se move no movimento de inscrição nele mesmo. Por outro lado, como sabes, a tatuagem remonta a práticas ancestrais, pré-históricas, como uma espécie de pré-escrita consistindo em inscrições, pinturas e adornos corporais. Mas há também algo da ordem da escuta, de l’entente, para usar um termo francês, evocando a “escuta do Ser” em eco a Heidegger. 

Mas, voltando às tuas citações que deixo aqui. É que remetes justamente para o corporal. Repetindo: “a nossa imagem de mim é por assim dizer 'corporal'.” Pareces sugerir que não é da ordem da visibilidade perceptiva, mas, dir-se-ia que é uma como que con-gregação, se assim se pode dizer, de múltiplos factores, donde o “auditivo”, o interactivo (várias alíneas com as suas diferenças: a) consigo e com os outros;b) auto-afectação e hetero-afectação; c) o em nós e o fora de nós; d) Innenwelt e Unwelt, Lacan?), e, acrescentaria, táctil, háptico, reenviando para o que escrevi acima.
Mas também há a desagregação, digamos, "o corpo retalhado (morcelé)", para que chamas a atenção no Lacan. Mas aqui me detenho por acrescida ignorância e incompetência.

Voltando à tua mensagem anterior (vê bLogos, 114) citaria este passo: “O outro exemplo é o dos artistas que desenham ou pintam, com ou sem modelo, imaginam, melhor ou pior, isto é, ou têm logo tudo ou vem-lhes a pouco e pouco à medida do desenho. Este segundo exemplo releva do eixo visão / mãos, em contraste com as frases que relevam do eixo audição / fonação, como predominâncias, obviamente.” É claro que te moves preferencialmente no eixo audição / fonação.  E é aí que parece entrar mais um certo critério corporal. Creio que um dos méritos e novidade do teu pensamento é abrires caminho para alguns critérios do 'corporal' e do 'material', difíceis, porém, de compreendermos à primeira, à segunda ou à terceira... Mas não haverá aqui um limiar, uma linha de delimitação ténue com a qual devemos estar atentos sob pena de sermos levados para um plano de pura inteligibilidade, como sói dizer-se numa certa doxa pretensamente intelectiva tão corrente nalguns meios académicos da Filosofia-Ontologia e da Ontoteologia?
A frase do Paul Valéry  -“o que há de mais profundo no homem é a pele” (ce qu'il y a de plus profond en l'homme, c'est la peau) - vai de alguma maneira ao encontro do que quero dizer. Subverte-se o que é da ordem da profundidade e da superfície, não deixando de se abrir caminho para outra compreensão do que são essas dimensões (categorias?), digamos, ainda assim mantendo-as e nomeando-as.
Onde não estou a compreender?  Ou ando por aqui às aranhas?
Estas questões postas assim são viáveis para ti? Não sei se queres dizer alguma coisa a partir do Freud.


31/10/2012

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F.B. : Já em tempos te tinha dito que não uso, senão muito raramente, a palavra 'corpo', porque ela traz consigo a 'alma' como o seu outro, ou sujeito, a consciência, tudo instâncias que nos permitem falar do 'nosso' corpo como uma parte de nós, e inferiorizada, já que será difícil de se defender que a 'nossa interioridade', que tanto preservamos, cultivamos, não seja 'mais importante' do que o 'nosso corpo´'. Ora na citação que me fazes, caí na esparrela de escrever corporal, embora pondo aspas. Porque justamente não se trata do 'nosso corpo' como outro do que a nossa consciência: pelo contrário, reenvia para a 'mente' segundo Damásio, a internalidade dos neurónios a que só cada um tem acesso, aquele que ouve, vê, lê, sente, pensa, sonha, recorda, imagina, etc: tanto coisas que são tradicionalmente atribuídas à alma como ao corpo. Esta imagem de mim reside nos (meus) neurónios, não tem a ver com a visibilidade: eu não me vejo; ao espelho, numa foto ou num vídeo, eu vejo uma imagem de mim como vejo a de outros. É claro que abuso aqui da palavra 'imagem' (disse-te também que não é das palavras que uso), a melhor palavra para dizer isto que quereria dizer ainda será a etimologia da 'consciência', o saber de si, mas há que colocar esse 'saber de si' no mundo, também é saber de outros e com outros (segundo o dicionário latim-francês do Gaffiot, o primeiro sentido latino da palavra dizia o saber de algo partilhado com outrem, 'saber com', a modos duma cumplicidade), e ainda saber de usos que uso habitualmente, de aspectos da casa onde moro, tanta coisa que a palavra 'consciência' não diz, mas que cabem em 'saber' na expressão 'saber de si'. E claro que não tem a ver com 'adivinhar', é pelo contrário uma base - que vai mudando com a nossa história pessoal - para as nossas certezas (possivelmente quiseste visar uma certa indefinição), é algo que escapa justamente à partição tradicional da alma / corpo. O 'corpo em pedaços' do Lacan vem justamente no discurso psicótico, não é 'corporal', é discursivo, memória.

Auto e hetero afectação: uma não vai sem a outra, nem há precedências entre ambas, qualquer delas é condição da outra. O Derrida define a consciência como a autoafectação da voz (A voz e o fenómeno): falando, eu sei que falo, sou autoafectado pelo que digo, ou pelo que penso. Aqui acrescento à voz e ao seu 'sentido', os outros 'sentires' que sentimos, dentro e fora de nós.

Uma observação sobre a 'previsão' em ciências. É uma ideia determinista, razoavelmente falsa. Verifica-se em certos casos, sobretudo em astronomia: o planeta Neptuno foi calculado e descoberto aonde tinha sido previsto. Também o Saussure 'previu' no seu sistema dos fonemas indo-europeus a casa dum fonema que era ignorado no seu tempo e que foi descoberto uns 50 anos depois de ele ter morrido (falo disso na Epistemologia do sentido). Foi como o Mendeleev em química, a sua tabela teórica dos elementos, que é um dos casos mais extraordinários de descoberta científica. Mas em geral, as leis científicas são descobertas em laboratório e correspondem a regras que se jogam fora dele, numa cena aleatória. Por exemplo, a queda duma pedra segundo a lei da gravidade verifica-se quando algo lhe permite mover-se, um pontapé ou um sismo, e não se pode 'prever' o caminho que ela segue por uma ribanceira abaixo. Isto não tira nada à lei da gravidade, tira é alguma presunção aos cientistas, acho eu. 

31/10/2012


 Imagem: obra plástica de Luís de Barreiros Tavares - 2012