segunda-feira, 19 de março de 2012

47. Escrita e leitura.



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L.T. : “Com o Heidegger e depois o Derrida, tal como os li, houve uma viragem, mais do que uma até. Mas que convida a ver no Husserl algo de diferente, que já se encontra, de fugida, em Kant, mais claramente em Hegel (Heidegger: O conceito de experiência em Hegel): a diferença entre a coisa empírica que aparece e o seu aparecer fenomenal ou estrutural, a primeira reduzida por Husserl que retém o segundo. É o que chamo, no cap. 13 do Jeu des Sc, diferença fenomenológica.” (de um teu e-mail de 08/03/2012)
Como disse, estive a dar uma vista de olhos em “O conceito de experiência em Hegel” do Heidegger. Ora esta citação mostra como não hesitas em ler um autor (Heidegger) lendo outro (Hegel), desde que tenhas o primeiro em conta e desde que o segundo seja também a considerar. Estás também lendo Hegel lendo Heidegger. Concordo com essa perspectiva como uma boa possibilidade. De facto, ler Heidegger lendo, por exemplo, Parménides, Heraclito, Platão, Aristóteles, Leibniz, Kant, e, no caso citado, Hegel, é uma experiência de leitura extraordinária. Poder-se-á até dizer que Heidegger vai produzindo o seu pensamento através dessas leituras e escritas. Mas Derrida é outro exemplo dessas leituras como chegas a referir, e até vai mais longe nesta questão segundo a tua leitura (“com uma posição mais extrema”, vê o vídeo da mensagem 10 do blog “Compreender as coisas”). Aí afirmas também que Derrida “raramente tem um texto escrito por ele” e que “a sua maneira de escrever é sistematicamente trabalhar a partir dos outros”, “tirar dos outros aquilo que para ele é forte como pensamento … tirá-lo da ganga, daquilo que o retém”, embora "nos últimos tempos tenha mais textos escritos por ele", conforme dizes no vídeo. Ora, quando foi do teu livro Leitura materialista do Evangelho de Marcos… editado em França em 1974, houve uma polémica com o Jacques Ellul a propósito destas questões: “Marx, que Belo ne connaît en réalité qu’à travers Althusser” (para mais elementos ver a mensagem 13 deste blog). Não pretendo focar aqui as abordagens dos temas da hermenêutica, do círculo hermenêutico, do intertexto, mundo do texto, etc., que não deixam por isso de ser muito importantes (P.Ricoeur, p.ex). Em suma, parece-me que aqui estão mais em jogo as questões da 'cena de inscrição' que referes noutro e-mail, da escrita e da leitura em Derrida.
Uma questão que talvez seja simples demais mas que gostaria de colocar: como é que a escrita e a leitura se jogam aqui?
Não sei se me repeti muito.
12/03/2012
F.B.: A Filosofia foi sempre feita por escritas a partir de leituras de filósofos anteriores, ainda que a maior parte das vezes sem os citar; sem dúvida que há também, ou melhor, ao mesmo tempo, experiências de pensamento, relativas nomeadamente às mudanças de contexto de civilização, mas é lendo grandes pensadores que o pensamento se experimenta. A dizer verdade, toda a gente faz assim, não apenas quando escreve mas também quando fala. Pela simples razão de que aprende-se, quer as palavras quer as regras de sintaxe das frases quer os códigos dos textos, ouvindo e lendo outros e depois citando mas reorganizando as frases e os textos. Isto é, escrever, como falar, é citar modificando o que se cita. A citação é a 'maneira' da linguagem, qualquer escrita (matemática, caracteres chineses, música, e até imagens) transmite-se assim. Só que cita-se sem se saber que se cita, quando se sabe põe-se aspas, como Heidegger escrevendo sobre Hegel, Derrida sobre imensos textos. Fora disso, a escrita é uma amálgama de citações que se ignoram como tais: se isto que estou escrevendo fosse consciente, se cada palavra ou frase que escrevemos nos fosse recordada como aprendida de tal ou tal pensador, isso seria, não uma citação, mas um ditado pelo outro. O apagamento de quem se aprendeu é a condição essencial para se escrever (ou falar) em nome próprio, para se pensar pela 'própria' cabeça. Mas que seja de facto citações, isto é, a mesma língua, é condição para se ser entendido quando lido. É o âmago do enigma da aprendizagem e da nossa 'identidade' enquanto vinda dos Outros, antepassados retirados, mestres e pais apagados (os sonhos são vestígios disto). É neste jogo ininterrupto que consiste de facto a cena da inscrição. Ela faz parte da cena da habitação, já que falamos no dia a dia, constantemente. Mas a cena autonomizou-se enquanto tal, enquanto cena histórica no Ocidente, pelas escritas literárias, filosóficas, científicas, cujo jogo de citações - tradições e rupturas - é a história ocidental do pensamento, com autonomia relativa em relação à cena da habitação, dos usos de cada dia, nas nossas casas e empregos e outros passatempos. Essa autonomia manifesta-se nas instituições (que são unidades sociais, da cena da habitação) cujo alvo é da ordem da inscrição, nomeadamente a escola e os chamados médias, desde os livros até às televisões e internet. No passado, as igrejas eram predominantes, holísticas, todos eram apanhados por elas; hoje é a escola que é holística, obrigatória para todos, como condição de terem empregos na cena da habitação. Onde se mostra como a cena da inscrição, surgida no 1º milénio antes de Cristo, e mormente na Grécia que filosofou, marginal até há uns 2 séculos, veio a ter efeitos preponderantes sobre a habitação, as sociedades; incrível há alguns séculos (esmagadora maioria de analfabetos), mas estamos tão habituados a isto que não damos por ela: aprendemos muita coisa com mãos e pernas etc. mas sem a linguagem, oral e escrita, sem leitura, somos inadaptados nesta sociedade.Se há alguma novidade nisto, a gramatologia do Derrida, é porque estas questões são pensadas na nossa tradição europeia na base do 'cogito' cartesiano, das ideias antes das palavras, estas instrumento do pensamento, meio de comunicação ou de expressão e outras 'mentalidades', 'representações'. A gramatologia insiste na inscrição, no pensamento como pertencendo ao texto, neste como histórico, com uma história: a da cena de inscrição. Acho que me desviei da tua questão.


12/03/2012


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Imagem: pintura - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

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