segunda-feira, 19 de março de 2012

44. Porquê a Fenomenologia?



-

L.T. : "IV - Porquê a Fenomenologia? - O termo significa estudo dos fenómenos, isto é, daquilo que aparece à consciência, daquilo que é dado. Trata-se de explorar este dado, a própria coisa que se percebe, em que se pensa, de que se fala, evitando forjar hipóteses, tanto sobre o laço que une o fenómeno com o ser de que é fenómeno, como sobre o laço que o une com o Eu para quem é fenómeno. Não é necessário sair do pedaço de cera para fazer uma filosofia da substância extensa, nem para fazer uma filosofia do espaço, forma a priori da sensibilidade: importa circunscrever-se ao próprio pedaço de cera, sem pressuposto, descrevê-lo apenas tal como se nos apresenta. Desenha-se deste modo no seio da meditação fenomenológica um momento crítico, uma denegação da ciência (Merleau-Ponty) que consiste na recusa em passar à explicação. Porque explicar o vermelho deste abat-jour consiste precisamente em pô-lo de lado enquanto é este vermelho ostentando neste abat-jour, sob cuja luz eu reflicto sobre o vermelho; consiste em apresentá-lo como vibração de frequência, de intensidade dadas, é colocar em seu lugar alguma coisa, o objecto para o físico, que já não é de modo algum a própria coisa, para mim. Há sempre um pré-reflexivo, um irreflectido, um antepredicativo, sobre que se apoia a reflexão, a ciência, e que ela escamoteia sempre, quando pretende explicar-se a si própria.Compreendem-se agora as duas faces da fenomenologia: uma forte confiança na ciência instiga a vontade de assentar as suas bases com solidez, a fim de estabilizar todo o edifício e impedir nova crise. Mas, para realizar tal operação é preciso sair fora da ciência e mergulhar naquilo em que ela inocentemente mergulha."

Lyotard, J.-F., A Fenomenologia, trad. Armindo Rodrigues, Lisboa, Ed. 70, 1986, p.10.


A "Fenomenologia é o estudo dos fenómenos". Eu diria que a fenomenologia é o estudo da descrição dos fenómenos. Parece uma definição redundante. Creio que ouvi ou li de alguém esta definição. Mas sinceramente não me recordo de quem. Retrabalhando-a faço as seguintes considerações argumentando um pouco de acordo com a minha limitada competência, pois não fica mal admitir ignorância na filosofia e, neste caso específico, na fenomenologia: é que a fenomenologia não só descreve o fenómeno, ou seja, procede à descrição do fenómeno no sentido em que o estuda, descrevendo-o, e estudando essa mesma descrição, mas, por outro lado, estuda o fenómeno enquanto descrição, pois o fenómeno descreve (um movimento, uma manifestação, des-velamento/re-velamento, mais o 'dá-se' do que o 'que é dado' ,etc.). Não creio haver separação entre estes dois motivos de descrição. Tentando sintetizar: a descrição é uma questão fundamental e delicada na fenomenologia. Perguntas: a) nos teus textos de fenomenologia a descrição é um leitmotiv? b) como perspectivas nos teus textos a questão da descrição na tua investigação fenomenológica que se inscreve na filosofia com ciências?
8/3/2012
F.B. : Excelente questão Descrever e não explicar, diz o Lyotard. Explicar, sem dúvida que não, nem sei se as ciências 'explicam' as coisas. Mas a diferença que Lyotard estabelece entre descrição fenomenológica e ciência, "sair fora da ciência", bate certo com a diferença entre o fenómeno no laboratório e fora dela, na cena. Dito isto, o que tentei, passando pelo ser no mundo heideggeriano e pela escritura derridiana, afasta-se desta descrição quase kantiana. Descrever, também me oferece dúvidas: posição estática, contemplativa, percepção, antepredicativo, a coisa ou fenómeno não mexe. Não me reconheço nisto também, a fenomenologia de facto apareceu ('fenómeno' é aparecer) assim com Husserl, consciência de coisa, retorno às coisas. Com o Heidegger e depois o Derrida, tal como os li, houve uma viragem, mais do que uma até. Mas que convida a ver no Husserl algo de diferente, que já se encontra, de fugida, em Kant, mais claramente em Hegel (Heidegger: O conceito de experiência em Hegel): a diferença entre a coisa empírica que aparece e o seu aparecer fenomenal ou estrutural, a primeira reduzida por Husserl que retém o segundo. É o que chamo, no cap. 13 do Jeu des Sc, diferença fenomenológica. É esta que faz a diferença, mas falta-lhe o tempo (e o Outro, Levinas). Foi a busca incessante do Heidegger, a diferença ontológica entre o Ser (não ente, nada) e os entes temporais, primeiro os humanos (Ser e Tempo, 1927), depois todo e qualquer ente (II Heidegger), que culmina em Tempo e Ser (1962), após lentas buscas na história do Ser (este também temporal, destinando).Ora bem, o Derrida retomou a diferença fenomenológica de Husserl mas acrescentou-lhe o tempo, a relação ao Outro, a linguagem como inscrição (De la Grammatologie). Tudo ficou diferente. É a partir daqui que a tua questão me interessa.


8/3/2012



Imagem: pintura - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

Sem comentários:

Enviar um comentário