quinta-feira, 31 de maio de 2012

84. Qualquer coisa sobre as imagens



Extractos do texto "Discursos, Números, Imagens, Músicas.
Livro, Cérebro, Computador"
que se encontra na íntegra online:



Entre[1] os numerosos usos sociais que as sociedades como a nossa transmitem de geração em geração, renovando-os sem dúvida e acrescentando-lhes invenções novas que se tornarão usos a transmitir também, poderemos distinguir os que têm finalidades técnicas de habitação, construidos segundo essa finalidade, de outros usos, como os enunciados no título, também se reproduzindo de geração em geração e muito mais se alterando ainda porventura, cuja especificidade poderia ser dita talvez como Alain do mimêma pictural: “uma inscrição numa matéria de empréstimo”[2]. Esta matéria de empréstimo, acrescentaria eu, pode ser quer sonora, quer vi­sual ou táctil. Com efeito, a linguagem oral – enquanto sistema de diferen­ças linguísticas, os significantes - inscreve-se na matéria sonora que ela re-elabora, tal como a escrita e as imagens (pintura, desenho, fotografia, filme) em superfícies visíveis, a música sendo ainda um outro exemplo de inscrição sobre matéria sono­ra.

2. Estranhamente, estas diversas “inscrições numa matéria de empréstimo”, estes usos que não são como os outros, não parecem ter um nome comum, como se a cultura ocidental não tivesse dado pelo que as liga enquanto usos semelhantes[3]. De certo modo, também são técnicas que implicam saber e habilidade, ins­crições de habitação que sobrevivem à morte das gerações, à maneira dos utensílios, dos diversos edifícios, do urbanismo, etc. Mas estes são “inscrições numa matéria”, como dizer? específica para funções de ha­bitação determinadas, muitíssimo variadas segundo as socie­dades: ma­térias ‘funcionais’, digamos, não se poderia falar de em­préstimo a seu propósito. Todavia estas palavras, ‘técnica’, ‘habitação’, ‘uso’ podem fa­zer pensar em ‘instrumentos’ ou em ‘coisas’, ou até em ‘meios’, e é isso que elas não são de forma nenhu­ma: sendo aquilo de que se ocupam a escola e o que se pode chamar instituições de circulação cul­tural, elas são na verdade os únicos ‘produtos’ – e isto serve para precisar um pouco mais esta noção vaga de ‘matéria de emprés­timo’ – que podem deixar a sua “matéria de empréstimo”, serem transformados em electricidade e enviados (‘tele-‘) a longa distân­cia e voltarem de seguida à sua “matéria de empréstimo”, os únicos as­sim susceptíveis de serem manipulados por computadores, de circu­larem na Internet[4].
Linguagem duplamente articulada: poema e definição
3. Para delimitar a diferença entre a linguagem duplamente ar­ti­culada e as outras formas de inscrição socialmente duráveis, ocupar-me-ei aqui um pouco do texto poético, aonde encontramos a linguagem (oral e escrita) na sua maior força e complexidade. Diria de modo aproximado que se chama poema a um texto em que, por razões intrínsecas, não se pode separar o jogo signifi­cante – sonoridades rítmicas e aliterantes – do jogo do sentido ou do pensamento, nem tão pouco separar oralidade e escrita[5]. Poder-se-á objectar que qualquer texto é uma tal impossibi­lidade; é certo, mas o poema é o texto em que esta resistência é, de certo modo, mais visível, mais palpável, no sentido em que ele resiste à tradução exacta, à paráfrase, ao resumo em que se perde enquanto esse texto, esse texto-pensamento. Dito de forma mais técnica, o poema é o texto que joga a fundo com a unidade da dupla articula­ção da linguagem humana, a dupla economia da repetição de dife­rentes significantes, entre os fone­mas/letras e as palavras, por um lado, entre as palavras e as fra­ses/textos, por outro, com a unidade indissociável do significante e do ‘signifié’.
4. Assim, por exemplo, um poeta terá a possibilidade de jogar com as diferenças significantes de basta, bastante, bastar, bastão, bas­tardo, besteiro, besta, bosta, busto, bispo, bicho, palavras próximas nos seus significantes e cujos sentidos podem aproximar-se ou não entre eles; este tipo de jogo é bastante diferente no entanto do que há entre os opostos como bastante / pouco, por exemplo. É um jogo que pertence àquilo a que Derrida chamou disseminação, de que faz parte também a polissemia, segundo a qual o mesmo significante muda de ‘signifié’ (Saussure) segundo o contexto em que se insere, quer se trate de uma palavra ou de uma citação mais longa. O poema seria pois um jogo pensante de disse­minação, seja qual for a consciência que o poeta tenha disso.
5. Uma outra consequência da disseminação numa linguagem duplamente articulada, é a impossibilidade de dar uma fronteira ao poema: a sua escrita ou leitura implica relações essenciais a outros textos, poéticos ou não, quer ao nível fonético e das palavras, quer ao da sintaxe-semântica e dos códigos textuais[6]. Sem esta relação - sus­ceptível de uma certa transgressão -, que se constrói a partir das lei­turas e falas anteriores do poeta e que é rigorosamente incontrolável por ele, nenhum poema seria legível. Como qualquer texto que seja, sem cisões possíveis. Mas é sem dúvida também o caso dos outros jo­gos de inscrição, a escrita matemática sendo aquele que melhor se defende da chamada intertextualidade.
6. As ciências e a filosofia não teriam sido possíveis sem uma arma de defesa contra a polissemia, tão im­portante para o narrativo e o discursivo, os textos que dizem o singu­lar, os acontecimentos: foi a definição, as fronteiras à volta da polissemia da palavra definida para não reter senão um só sentido. O mesmo é dizer que os textos gnosiológicos jogam em sentido inver­so ao da poesia: eles privilegiam o ‘significado’ assim definido, o con­ceito (a ideia, a representação mental europeia tem aí a sua origem), e desconfiam do significante, do seu jogo de disseminação, das pala­vras que mudam segundo as línguas. Esta forma de fazer tende para a universalidade, uma das suas incidências é a exclusão para fora das suas fronteiras de qualquer marca singularizante: ‘eu’ e ‘tu’, ‘aqui’ e ‘agora’, o ‘presente’ e o ‘aoristo’, os tempos e os modos dos verbos. A invenção do texto gnosiológico - o dos saberes filosó­fico, lógico e científico - foi assim uma ruptura com as narrativas e os discursos situados temporalmente e espacialmente; é a escrita do que valerá unicamente pelas suas definições e argumentos, tanto faz quando, tanto faz onde, tanto faz para quem. Trata-se pois de fic­ção, porque ao compor-se como intemporal e válido em qualquer lu­gar, ela denega a sua própria situação de escrita. Sem dúvida que nós nos tornámos mais modestos nas nossas pretensões ao conhecimento científico, que sabemos ser histórico e relativo, no entanto, esta estrutura gnosioló­gica dos textos científicos continua a ser necessária, definidora da ciência como projecto de saber, aberto há vinte e cinco séculos pelos Gregos. Desde o “que ninguém entre aqui que não seja geómetra” ins­crito no frontispício da Academia de Platão até à fenomenologia do matemático Husserl, passando por Renatus Cartesius, aquele que geometrizou a ál­gebra com o seu sistema de coordenadas, por Kant o newtoniano e por alguns outros, o privilégio filosófico do conceito teceu a aliança, cheia de “finesse”, com as matemáticas, com “o espírito de geome­tria” pascaliano.

(...)

As imagens

11. É o quê, uma imagem, precisamente? Já Platão punha a questão no Sofista, as imagens (eikona) como discursos (logoi), para saber como podiam ser falsos. Como podiam os Sofistas enganar os jovens? (234c). Para responder, ele introduz, mais do que a oposição exclusiva (de Parménides) entre ser e não-ser (ou é um ou é outro), a diferença não exclusiva entre o mesmo e o outro (diferenças suscep­tíveis de mistura recíproca, de terem algo em comum). O que nos permitirá dizer que, a imagem sendo outra do que a coisa de que ela é a imagem, ela é ao mesmo tempo o mesmo do que essa coisa (sem o quê ela não seria uma imagem de, não seria nada, apenas riscos feitos ao acaso) e o seu outro (a sua imagem, visto que se separa dela, se desloca para outro lado, pode sobreviver-lhe, etc). A imagem é e não é a coisa[13]. Imagem verdadeira, se a sua composição – a mistura das cores, e de linhas e nomeadamente as suas proporções – permanece a mesma do que a da coisa, falsa se não for esse o caso. Como para o dis­curso, que é o que de facto interessa Platão neste texto: aqui a mistu­ra é dupla (assinalada aliás em passos diferentes do texto), entre le­tras para construir palavras (e esta mistura depende de uma arte e das suas regras, não é de qualquer maneira) (253a), entre nomes e verbos para fazer uma frase (262a-b): se a mistura é boa, adequada ao que ele diz (“Teeteto está sentado”), o discurso é verdadeiro, se não (“Teeteto voa”), é falso. O mesmo é dizer que Platão, para fazer a distinção decisiva entre discurso verdadeiro e discurso falso, põe o dedo na dupla articulação da linguagem, o que nos permite estabele­cer uma diferença entre imagem e discurso ou fala: esta articula-se duplamente a partir de elementos (fónicos: os fonemas, ou gráficos: as letras) que não são imagens de nada, que permanecem absoluta­mente imotivados em relação às coisas que as palavras designam ou nomeiam (o que as diferenças entre as diversas línguas atestam). É esta dupla articulação que permite à linguagem, ao discurso, produ­zir sentido, pensamento. Também o nome é e não é a coisa nomea­da, mas de um modo muito diferente do das imagens: o mesmo nome “cão” pode designar cães bem diferentes, para designar ‘este’ cão, são-lhe necessários determinantes (artigos definidos, demonstrativos) no discur­so. Não a imagem: a de um cão, é a deste cão (quer ele exista ou não, pode tratar-se de um desenho inventado), e mais nenhuma outra. Toda a imagem é singular. Mas não pelo facto do seu objecto ser par­ticular (os discursos também falam habitualmente de objectos particu­lares): podem fazer-se centenas de fotografias ou de desenhos de uma mesma personagem, com enquadramentos e perspectivas diferentes, cada uma destas imagens é singular (do mesmo modo podem dizer-se ou contar-se numerosas coisas desse mesmo personagem). Não tem articulação (como a linguagem, a matemática e a música), este motivo implicando linearidade e discreção; não é susceptível pois de comutações, não consistindo senão na sua visibilidade, na sua ‘imagética’[14] (o que se ‘vê’ numa imagem, o seu conjunto de traços-cores-sombras: superfície ou volume), uma imagem não é ‘resumível’, não é traduzível nem transferível para ou­tra coisa, ela não é susceptível de polissemia, não tem sentido, não tem pensamento discursivo. Ela basta-se a si mesma, não pede outras imagens para ter sentido de imagem, mais frequentemente uma legenda dizendo o contexto: é uma legenda de narratividade, dita ‘guião’ quando ‘guia’ uma sequência fílmica de imagens. Quanto ao dis­curso, este relaciona-se com a imagem do mesmo modo que com a coisa: ela pode ser nomeada, descrita, permanecendo outra do que o discurso que a diz. É sem dúvida por isso que as tentativas semióticas sobre as imagens têm, ao que parece, bastante dificuldade em se estabelecerem[15].
12. Não há uma imagem ‘pura’. Por um lado, não há imagem senão em composição, em contexto de imagens, num plano, como se diz em linguagem cinematográfica, este contexto sendo habitualmen­te delimitado, enquadrado num rectângulo; o jogo das diferenças contextuais entre as diversas imagens de um mesmo plano tem efei­tos sobre as ‘imagéticas’ respectivas que mudarão se o plano muda, se uma das imagens se desloca para outro contexto. Quer isto dizer que um realizador, tal como um fotógrafo ou um pintor, joga com as suas imagens enquadrando os seus planos (perspectiva, grande plano ou panorâmico, luz, etc.), já que o rectângulo-clausura exclui sempre muitas imagens do contexto da realidade filmada ou a pintar. Como ele joga também com elas em relação ao contexto das sequências de planos, tanto no jogo da câmara como no da montagem. Não há pois imagens-em-si, não há senão planos de imagens e sequências de pla­nos. Compor um quadro, uma fotografia, um filme, é sempre selec­cionar entre numerosas possibilidades. Desenhar uma imagem sem contexto, sozinha, ou apagar o seu fundo numa fotografia, não é se­não uma dessas possibilidades.
13. Por outro lado, não há tão pouco imagem ‘pura’ por ela sempre ser, no seu contexto de planos, jogo de forças, de afectos, de conflitos e de amores, de desejos e rivalidades. Nós não temos imagem de nós mesmos: o nosso retrato, olhamo-lo ‘como’ o de outro que não conhecemos ‘tal’ como a imagem no-lo mostra. A imagem é sempre imagem de um outro de que se visa a face, o visto, o aspecto, o eidos, diziam os Gregos. Tomemos de Rorty o exemplo aristotélico do conhecimento que se pode ter de uma rã que se olha. Recebe-se o seu eidos, a sua ‘forma’, sem no entanto nos tornarmos numa rã (como acontece à cria desta rã, que também dela recebeu o eidos). Mas tornamo-nos de algum modo rã por este eidos recebido, quando reconhecemos, com um mínimo de familiaridade, outras rãs. A rã -nos a sua imagem, que se torna uma ‘parte’ de nós, do nosso ‘imaginário’ como se diz, ela agarra-nos, prende-nos, liga-nos, como o sabemos quando se so­nha com ela, quer dizer, quando uma imagem de rã (compósita tal­vez, deformada, pouco importa) vem, de nós e em nós, com uma ni­tidez e uma intensidade extraordinárias, tomando a iniciativa, se pode dizer-se, movendo-se, fazendo ruídos, etc. A coisa dá-nos a sua imagem e prende-nos a ela, modifica-nos com ela. Mas a rã encontra-se numa bela pedra, na margem do rio onde assim fomos captivados pela rã como o Principezinho, e eis que nos tornamos pedra, rio, que nos separamos da rã: a sua ‘imagem’ permanece grafada em nós, fica ‘nós’, sem perder a rã (senão já não seria uma imagem), mas perdendo-a na sua empiricidade real, digamos; a rã ‘morre’ para nós, esta ‘morte’ sendo a condição da sua sobrevivência em nós, tornada memória-nós. Porque o nosso saber, o nosso conhecimento no que respeita às coisas, às pessoas, é constituído pela amálgama dessas imagens-nós. Tomei o exemplo da rã, parece evidente que tudo isto é ainda mais forte nas nossas relações com os outros humanos, tecidas de desejos, de afectos, de rivalidades, etc., aos quais estamos ligados por essas imagens-nós, são eles sobretudo que vêm sonhar nos nossos sonhos.
1] Trata-se da adaptação de um extracto de um ensaio inédito.
[2] P. Somville, Essai sur la Poétique d’Aristote, J. Vrin, 1975, p.46, citando R. Mac. Keon, Critics and Criticism: Ancient and Modern, Chicago, 1952, pp. 152 ss. (reenviando ao cap. VII do “Système des beaux-arts” de Alain, vol. II das suas Oeuvres Complètes, Pléiade, pp. 237-240).
[3] Salvo recentemente o de ‘linguagem’, que em rigor só convém à oralidade, à sua ‘língua’.
[4] O que não pode dizer-se sem mais em relação aos cérebros humanos, já que estas inscrições não são as únicas a serem recebidas por eles, mediante transformação em electricidade e química: as pessoas e as coisas também são captáveis (visual, auditiva e tactilmente) ‘em directo’, pela sua ‘face’, aquilo a que os gregos chamavam eidos, o que é visto, visado (§ 13).
[5] Tal como os provérbios, por exemplo, os poemas anteriores à escrita eram ‘inscrições’ orais, quer dizer, textos fixados no seu ritmo de modo a serem repetidos tal e qual nos diferentes contextos (à semelhança do escrito). Eram civilizações com técnicas de memória muito desenvolvidas, que não se devem pois opor sem mais às sociedades com escrita. As definições e outros enunciados de teoremas, por exemplo, funcionam da mesma maneira: são também para repetir tal e qual, para evitar que mudem quando muda o contexto.
[6] No sentido de S/Z de Barthes, por exemplo, ou da leitura dos mitos ameríndios por Lévi-Strauss..
(...)
13] Como o mapa geográfico é e não é o território.
[14] Como se constrói ‘eidético’, a partir de eidos.
[15] Ver L. Gervereau, Voir comprendre analyser des images, La Découverte, 1997.







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