terça-feira, 29 de maio de 2012

81. Das categorias... algumas abordagens ...


L.T. : Segundo muitos, a filosofia é em última instância do ‘de’ categorial. Pela minha parte não concordo que o seja. Mas não é o momento para falar disso.
No entanto, há que ter em conta o porquê de ainda hoje se falar tanto de categoria de isto, categoria daquilo, categoria daqueloutro, etc. Por exemplo, no campo das ciências humanas, na crítica da cultura, a noção de categoria é muito usual. Os próprios conceitos, as definições, o pensamento conceptual, etc., são disso esclarecedores a vários títulos. Ela, a filosofia, está também mais próxima dessa questão, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, na medida em que a pensa ou supõe enquanto tal, mais distanciada está. Não vou argumentar profundamente esta observação; isso levaria mais tempo.
Se não me engano, não é frequente encontrar nos teus textos o termo 'categoria'. Eventualmente preferirás outros. A não ser quando referes as categorias de Aristóteles. Sabemos que Kant respeitou o inventário das categorias deste grande pensador grego, apesar de ter feito algumas alterações quando tratou de as enumerar e definir.
Hoje, o uso das categorias permanece, bem como o modo variado de as pensar. Aliás, às vezes, por tudo e por nada há categorias. Também se discute sobre a legitimidade das actuais e a necessidade de outras tendo em conta toda uma série de contextos que não cabe aqui desenvolver.
Tentando fazer uma breve abordagem, creio que convém ter em conta que o processo aristotélico da enunciação das categorias se deve em grande parte a uma longa caminhada que vem, senão mesmo antes, pelo menos mais marcadamente de Heraclito e Parménides. Ambos a seu modo e nas suas diferenças começam a indiciar o que virá decisivamente a tematizar-se, enunciar-se e definir-se com o Aristóteles, passando incontornavelmente pelo Sócrates e o Platão. Noutro estudo tentarei analisar esta questão.
Categoria (kategoria) reenvia para o que se diz de, o que se pre-dica de, o que se pré-diz de (interessante seria analisar a possível relação entre predizer e o prever - de pré-visão - da noção de 'previsão' decisiva nas ciências). Daí o 'predicar', no latim. Diz também 'acusação', 'afirmação'... Daí também a proposição lógica inaugurada com o Aristóteles. Não precisando muito, diria que poderá reenviar para o sentido no grego de um reunir-sob, ou um reunir-sobre.
A própria ousia no Aristóteles é a primeira das dez categorias do ser. Ela não se diz de nenhum sujeito. Embora, curiosa e um tanto paradoxalmente, se diga do ser. Esta questão parece-me bastante importante. Não sei se já foi muito estudada. Contudo, "... com efeito, o que antigamente e agora e sempre se questionou e sempre foi objecto de dúvida: Que é o ente [ti to on]?, equivale a: que é a substância [ousia]?" (Met. 1028b 4) (Aristóteles, Metafísica, Gredos, da ed. trilingue do García Yebra). Eis a questão crucial da filosofia segundo o Estagirita.
Há que distinguir no Aristóteles, os predicamentos (plano ontológico) dos predicáveis (plano lógico: acidentes, etc)... Mas não é por aqui que pretendo agora pôr o problema.
Sabemos, como fazes questão de salientar, que há dois sentidos de substância no seu pensamento: 1) substância primeira e 2) substância segunda. Mantendo-se o mesmo nome para ambas: ousia. Mais tarde no latim medieval: 1) substância (substantia; substância singular, individual; vj. também no grego o tode ti, este indivíduo particular, este cão) e 2) essência (substância de espécie e de género; quidditas, essentia; no grego, ti esti e to ti en einai). Donde a diferença específica como assinalas. Cf. § 143 do La philo avec sciences..., ou p. ex., a mensagem 80 no bLogos onde se encontra o mesmo §.
Pode-se também mencionar, por exemplo a famosa árvore de Porfírio (séc. 3-4), a famosa escala predicamental, o problema e discussão dos universais levando por arrasto ao do nominalismo, e assim por diante, confirmando-se a importância e implicação do Aristóteles em toda a tradição da filosofia medieval.

Gostaria de deixar aqui um apontamento à maneira de um preliminar, talvez para um futuro trabalho mais aprofundado. Na leitura que tenho feito dos teus textos parece-me importante o seguinte ponto. Dir-se-ia que inauguras qualquer coisa como uma nova dimensão espácio-temporal. Justamente tendo em conta o 'espaçamento' e 'temporalização' em Derrida. Volto a escolher as mesmas três abordagens possíveis que já havia referido há uns meses (vj. mens. 29): 1) O desenvolvimento que fazes com a 'matéria de empréstimo' tendo como ponto de partida Alain citado por Somville que cita por seu turno R. Mc Keon, Critics and Criticism : Ancient and Modern, Chicago, 1952... Trata-se da questão do "mimema pictural inscrevendo-se numa matéria de empréstimo" (vj. Pierre Somville, Essai sur la Poétique d'Aristote, Vrin, 1975)) ... estendendo-a e pensando-a em novos contextos; 2) A 'zona não-fenoménica correlativa' nas várias ciências que estudas; ver p. ex. § 3 do teu La philosophie avec sciences au XX siècle; 3) O double-bind (Bateson), dupla articulação da linguagem (Martinet), dupla-ligação, duplo laço, etc. e que Derrida igualmente trabalha nos seus textos.
Creio que seria interessante fazer jogar estas questões com uma espécie de reformulação que operas do 'horizonte' de que nos fala o Heidegger adentro precisamente do Jogo das Ciências e da filosofia com ciências.
Penso que estes 3 pontos são importantes (poderão surgir outros) para mostrar como precisamente o teu pensamento consegue suspender uma certa ancoragem, uma certa clausura, digamos, no pensamento categorial que de certa maneira domina uma certa doxa filosófica. A Física e a physis de Aristóteles, justamente, parece manter a possibilidade de uma como que viragem relativamente à sua própria vertente metafísica (a sua Metafísica), bem como relativamente a Platão, a ontoteologia de que nos fala Heidegger. Por outro lado, a trace, o grama, a différance no Derrida, entra também aqui em jogo.
Mas por enquanto são questões que deixo em aberto. Isto parece-me no entanto um pouco indefinido. Tem-se de ter em conta que o teu pensamento não esqueceu a noção de 'estrutura'.
Provavelmente a maneira como estou a pôr estas questões desvia-se do teu interesse maior por aquilo que entendes como a grande questão da Física do Aristóteles - tão importante para o Heidegger - implicando esta o 'movimento' e a sua articulação com o que é da ordem do 'animal', enfim, do 'vivo'.
Sintetizando. No entanto, não sei como posicionas a questão das categorias na estrutura do teu pensamento, ou seja, no jogo da filosofia com ciências formulado como nova fenomenologia. Quer dizer, não sei se consideras o uso ou emprego das categorias, do categorial no teu trabalho de pensamento, questão que hoje continua tão debatida. Tão debatida, quer na frequente utilização da palavra, quer na polémica acerca de suas novas formulações. Pois, conforme aludi no princípio deste texto, e como saberás, há quem ponha em causa se muitas das categorias que herdámos servem ainda os novos contextos, a nossa realidade.
Assim como entendes que não podemos dispensar na nossa tradição ocidental greco-europeia - falando genericamente - os conceitos e definições, e que tirando-os de qualquer texto, seja ele qual for, restariam "folhas de papel cheias de furos", assim também há muita gente para quem a estrutura predicamental, enfim, o uso de categorias é indispensável e inevitável no nosso pensar. Há mesmo quem ponha essa condição como prioritária, acima de tudo... Mas haverá aqui muitos pontos discutíveis.
Como se move o teu pensamento quanto ao que se designa 'categoria'?
Bem que eu gostaria que mais alguém me ajudasse nestas questões, tão vastas que seria ridículo da minha parte pretender limitá-las a estas linhas. Leia-se, por exemplo, o livro Le problème de l'être chez Aristote de 550 páginas de Pierre Aubenque. Tão pouco sou um especialista no assunto. Tenho a noção de que algumas das abordagens que aqui faço são discutíveis e os próprios temas são susceptíveis de várias leituras. Le Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie organizado por André Lalande abre pistas nesse sentido nos respectivos artigos. Que me perdoem os mais entendidos, e me esclareçam nos pontos que bem entendam, se possível.
28/05/2012
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F.B. : O que são as 10 categorias do Aristóteles? São maneiras de 'dizer' os entes. Aonde? nas narrativas. Cito dum texto que talvez não conheças (noutro texto francês, dei o exemplo com de Gaulle em 18 de Junho de 1940, na rádio de Londres apelando contra Pétain).
Seja um exemplo das célebres dez categorias, a primeira é a tal da ousia primeira ou substância, cada pessoa ou coisa nela mesma, as outras nove descrevem os seus acidentes (para Aristó­teles, tudo o que se pode dizer de algo cabe numa dessas nove categorias). Se é uma rapariga que se senta à mesa do nosso res­taurante, ela será contada assim: alta e magra (quantidade), mais elegante do que é costume (relação), bonita e inteligente (qualidade), estava a comer (acção), suava com o grande calor que fazia (paixão), era domingo de Páscoa (tempo), o restaurante à beira do Tejo (lugar), sentada à mesa (posição), com um vestido comprido (posse).
Ou seja, é um bom exemplo da relação íntima entre o texto gnosiológico da filosofia e as narrativas da literatura.

A questão que tu pões: porque é que eu falo pouco delas? Porque é que nunca falo de juízos? Creio que a resposta é esta: estas categorias, no helenismo e sobretudo no latim medieval, tornaram-se em 'conceitos' filosóficos, numa lógica filosófica (com origem em Aristóteles) em torno da proposição enquanto 'separada' daquilo que ela diz. E a partir de Occam ('nome mental' no nominalismo), pode desligar-se da linguagem e vir a tornar-se 'mental', ideia, conceito, noção, quando o latim der lugar às línguas vernáculas (Descartes também escreve em francês). Ou seja, inaproveitáveis para quem procura pensar à maneira de Parménides, a mesmidade do legein, noein e einai, do discurso, pensamento e o (ser, a realidade) que ele diz. Se não uso 'categoria', uso com alguma frequência 'motivo' que tem a vantagem de ligar-se ao que dá movimento, que motiva.
'Mental', ideia, conceito, noção, categoria em sentido moderno, faz parte do arsenal do 'adversário', se posso dizer, daquilo que há que desconstruir.

Eis como continua o texto que citei acima com exemplo das categorias.

O pensamento filosófico está pois intimamente relacionado com os textos literários e quotidianos, se largou os con­textos foi para melhor os pensar. O que se passou foi que ele criou o seu próprio texto (a que chamei gnosiológico), feito de defini­ções e da lógica dos argumen­tos, e também o seu contexto social, o da escola, margi­nal aos contex­tos das casas e da cidade, e tendeu a funcionar cortado destes, mesqui­nhos e re­bai­xados, exibidos ape­nas como exemplos: como tenho feito aqui. Esta se­para­ção insti­tucional – juntamente com as resul­tan­tes das tradu­ções para latim que ocultaram esta relação ao li­terá­rio (‘categorias’ e ‘aci­dentes’ tornam-se calão filosófico) e com a mistura da ‘universalidade’ e do ‘absoluto’ do cristianismo com as generalidades da filosofia – foi no entanto essencial para ‘construir’ a Europa, a nossa escola, as suas ciências, as suas filo­sofias dos su­jeitos e dos objec­tos, das ideias, a técnica e a eco­no­mia, o direito, o Estado e a democracia re­presentativa, etc. O que se chama desconstrução
[1] é o ‘acontecimento’ de a civili­zação assim ‘cons­truida’ estar – pelo seu desenvolvimento, que lhe deu uma certa ‘autonomia’ em relação à ‘natureza’ – a historici­zar-se e a textualizar-se, a singu­larizar-se em (novos) usos, isto é a re­gres­sar aos contextos de que foi arrancada no alvor da filoso­fia e da geome­tria.

[1] O gesto decisivo foi o de Heidegger em Ser e Tempo,, rompendo com Husserl e com a definição, colocando o humano como ‘ser-o-aí’ (Dasein), ser no mundo, isto é ser o seu contexto temporal, histórico, mas relacionado ao Ser, diferença ontológica, evitando o relativismo.


28/05/2012

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Imagem: pintura - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

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