terça-feira, 1 de maio de 2012

72. "definição" e outras questões. O fervedor de leite.


L.T. :

"Il y a chez Aristote un retour aux choses, mais telles qu'elles sont définies, sans retourner au contexte au quel la définition les arrache." (La philo. avec scie., §142)
Retorno às coisas mas mantendo também o universal das ciências.

Como pensas as relações e diferenças possíveis entre a definição - e a invenção da definição - do Aristóteles, arrancada ao contexto (descontextualizada) e a 'coisa', o objecto segundo o Husserl, com o exemplo que dás do fervedor de leite na sala de aula, objecto particular arrancado ao contexto (descontextualizado)?

29/04/2012

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F.B. : Questão delicada, a redução eidética no Ideen tem vários alcances, mas inclui a definição, não se pode fazer senão como repetição da definição. Mas a definição no Platão, tendo dado os Eidê celestes, implicava também a alma que os contemplava fora do corpo; há portanto uma configuração platónica da definição, que tanto arranca o definido ao contexto como o definidor, e que depois se instituiu como Academia, escola que reproduz textos à base de definições. A configuração da definição no Aristóteles é diferente, assenta no movimento do definido (donde os 4 sentidos de ousia e de aition, vulgo 'causa'), mas mantém a alma (embora sem imortalidade, a ética platónica atenua-se, de 'espiritual' em 'intelectual', se dizer se pode). Em ambos os casos, a definição arranca do contexto (digamos, daquilo que se pode contar em narrativas ou experimentar em discursos em 'eu') aquilo que há que definir, sobretudo as coisas éticas em Platão, os vivos e tudo o mais em Aristóteles, mas também o definidor, e instaura a escola como lugar do paradigma filosófico, digamos à moda do Kuhn. É o que, na sequência de análises do Benveniste, chamei o texto gnosiológico, outro do que o narrativo e o discursivo, sem verbos nomeadamente, intemporal, fora da circunstância, tratando de essências (definidas).
Esta pertença do definidor à definição explicita-se em Descartes e sequência, o Cogito e o eu penso de Kant, a problemática nova do sujeito e da consciência (cujo antepassado na Antiguidade é Agostinho de Hipona), enquanto que as ciências se ocupam das 'coisas' (partilha que Kant sancionou e eu propus de suspender, após ter sido fecunda historicamente). O Husserl herda isto juntamente com uma profusão confusa de ciências, incluindo do 'eu' ou da 'alma', as psicologias, por onde ele começou, e tentou reiniciar, voltar aos Gregos, mas tendo em conta a complexidade da escola do seu tempo, entre filosofias e ciências. O que creio que ele buscou foi dar conta do conhecimento dos objectos pelas consciências, pondo em causa a exterioridade duns a outras (o dualismo sujeito / objecto), buscando dizer como a 'consciência' constitui a 'objectidade', o 'ser' da coisa, de tal maneira que isso defina a consciência enquanto definidora da coisa, se se pode dizer. Recusar a exterioridade mútua, é o que implica a redução da 'crença natural' na existência das coisas fora de nós, o realismo ingénuo de todos nós. Por exemplo meu, inspirado numa história contada por Condillac da chegada à vista dum cego de nascença operado às cataratas: nós não achamos que se 'aprenda' a ver as coisas fora de nós, mas esse cego começou por as ver em cima dos olhos dele, antes de aprender a perspectivá-las. Este realismo ingénuo é a evidência que todos temos desde miúdos, foi contra ela que o Husserl tentou fundar uma fenomenologia da intencionalidade da consciência, a consciência é consciência de qualquer coisa: suspender a empiricidade da coisa percebida, a sua existência empírica, para chegar à sua idealidade, passando das intuições sensíveis (esta maçã, o vermelho) à intuição categorial (esta maçã é vermelha) em que o 'é' não releva da sensibilidade, mas é dado à intuição categorial com a categoria de 'ser' - várias intuições da mesma maçã, e não sensações a serem sintetizadas `a priori' como em Kant, portanto sem deixar o nível de intuições - e em seguida, com muitas maçãs vermelhas intuídas além do vermelho, chegar a uma intuição eidética ou de essência da maçã, ainda ao nível da intuição. Ora, tudo isto joga com a definição, tenta alargar a definição de maçã sem deixar as maçãs singulares. E teve, provavelmente inevitavelmente, mas não sei que chegue para o dizer, a necessidade de transcendentalizar o Eu (reduzir a sua empiricidade ao longo das várias intuições). Trata-se pois duma configuração da definição mais complexa, em relação aos dois grandes Gregos, porque tendo em conta a longa história a que eles deram origem.
Ora, a objecção que Heidegger lhe fez, que ilustrei com o fervedor, foi a de que ele não saíu da escola instituída pela definição, ficou sempre na configuração escolar do filósofo com objectos fora do contexto, do mundo. O ser no mundo é a pretensão de sair da escola filosófica, de vir aquém da definição hoje, e não retornar aos pensadores antes de Sócrates, meditando-os, é certo, e aos poetas, e a Nietzsche que também já tentara essa saída da escola e da definição, mas ficara, digamos, demasiado literário (para o gosto escolar!), facilmente desconsiderado como poeta e não filósofo, como Heidegger e Derrida são considerados pelos filósofos analíticos, como malabaristas ou astrólogos. Também o velho Heidegger insistia sobre a exterioridade do seu Dasein, fora, no mundo, sem janelas, e dizendo que da consciência não se consegue sair (como da alma, acrescento eu), ela é solipsista, como o sujeito. É no seio das coisas do mundo que, aprendendo-se a usá-las e a dizê-las, se vai instituindo o sujeito, a sua consciência: os objectos já lá estão e por isso podem ser percebidos, manuseados, eles servem para comportamentos, não para percepções.

01/05/2012

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Imagem: pintura - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

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