L.T. : Apalpando terreno.
Estive ontem a escrever um texto, talvez especulativo ou abstracto demais, sobre uma passagem do Agamben citando o Paulo. Mas prefiro adiar um pouco e ver melhor se interessa. Entretanto envio umas questões sobre essa passagem e uma tua do blogue do Cristianismo.
1. « La Bible hébraïque est autre chose, sans doute difficile à discerner par ceux qui sont de tradition chrétienne. J'étais parti moi aussi pour lire l'ancien Testament; que ma lecture ait retrouvé la Bible hébraïque est l'une des heureuses découvertes de l'aventure qui fut l'écriture de ce texte. La Bible hébraïque, c'est la Bible des Juifs sans plus, c’est-à-dire la Bible 'sans' le christianisme. Mais ce 'sans' est à lire à l'anglaise, without,, comme Derrida le fait quelque part, à fin d'essayer d'éviter l'inévitable tendance chrétienne de croire qu'il manque quelque chose à la Bible hébraïque: la Bible hébraïque est la Bible des Juifs plus (with) le fait de n'avoir pas (out) le christianisme[3]. Le nouveau Testament, tout en ajoutant des choses importantes à l'ancien Testament, lui a aussi enlevé d'autres, l'a appauvri, et du même pas s'est appauvri soi-même. Ce sera pour une autre fois.»
"[3] Le motif du paradigme a eu des avantages nets dans l'histoire de l'épistémologie des sciences de notre siècle: d'une part, il a permis de dépasser les conceptions autour des seuls énoncés théoriques et de leurs vérifications, en accordant la primauté au contexte, d'autre part il a étendu cette notion de contexte aux instruments, aux murs des laboratoires, aux manuels de formations des scientifiques, à leurs stratégies (scientifiques et autres) dans les choix des problèmes, et ainsi de suite. Mais il l'a délimité aussi très vite: en opposant trop les paradigmes se succédant, en n'accordant pas d'attention aux questions du contexte civilisationnel et philosophique, comme le faisait à la même époque M. Foucault, par exemple. Je l'utilise ici, à un stade d'introduction, où ma stratégie est d'attirer le lecteur à poursuivre une lecture de quelques centaines de pages, mais il sera facile de s'aviser que ce que je proposerai voudrait déborder ces limites paradigmatiques."
2. “«comme sans loi, non sans loi de Dieu, mais dans la loi du messie» (hos anomos, me on anomos theou, all’ennomos christou) [Paul ,1 Cor 9, 20-23]. Celui qui se tient dans la loi messianique est non non-dans la loi” (Giorgio Agamben, Le temps qui reste, un commentaire de L’Épître aux Romains, trad., Judith Revel, Paris, Rivages, 2004, p.91)
Será viável algum diálogo entre estes dois trechos em termos por exemplo de “Bíblia hebraica” (cinco vezes no teu trecho), “cristianismo”, “’sem’ o cristianismo” (Belo), “sem lei de Deus”, “na lei do messias” (Paulo) e “lei messiânica”, “não não-na lei” (Agamben)?
Faz sentido perguntar como pensas estes motivos supondo que há alguns que poderão questionar-se entre si? Tentando simplificar, como se jogam estas e outras questões na compreensão do Cristianismo?
21/06/2012
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F.B.: Excelente questão! Essa citação foi escrita há quase vinte anos e na altura não saberia explicar-me como agora me desafias a tentar. Do ponto de vista da interpretação de textos, do que se chama hermenêutica, é um fenómeno espectacular: as mesmas letras da Bíblia hebraica tornam-se noutro texto no Antigo Testamento da Bíblia cristã...
Terei que ser breve, o texto donde tiraste essa citação, no meu blogue,poderá ajudar a compreender quem estiver interessado. Nós laicizámo-nos, separámos religioso e social, político, mas antes dos séculos XVIII-XIX, isso não existia, senão talvez no helenismo romano. Religioso e político eram indissociáveis. A propósito do I século, o exegeta judeu Folker Siegert escreveu lapidarmente que “o Judaísmo não é uma religião, é um povo”. A Bíblia hebraica é um livro político, em que Deus e os profetas são os actores principais, em vista da reforma ética e espiritual da sociedade hebraica (a 'aliança', no livro do Deuteronómio). Essa reforma segundo a justiça, que deveria fazer de Israel uma nação justa e autónoma face às outras nações vizinhas, falhou e desde o início do séc. VI a.C que Israel foi parte de impérios mais fortes, até aos Romanos no sec. I aC. Esse falhanço punha em causa a promessa de Yahvé, o Deus hebreu, e foi por acreditarem que a única maneira dele mostrar que 'era' o Deus de Israel (como hoje se fala em Deus existir ou não) era ele próprio intervir na história através dum 'ungido' (como o rei David), em aramaico 'messias', que surgiu a literatura apocalíptica ou escatológica. Tanto João Baptista, como Jesus e Paulo perceberam que os Romanos eram invencíveis (e de facto foram-no durante mais alguns séculos) e portanto acreditaram firmemente que o Reino definitivo de Deus estava para breve, Paulo enquanto era vivo, Marcos durante a geração dos que conheceram Jesus. O novo Testamento também é político (conflito permanente com as autoridades, manifestação messiânica em Jerusalém que leva à prisão e execução de Jesus), de maneira diferente da nossa de conceber a 'política', é claro.
O 'fim do mundo' em que eles acreditavam é totalmente político, Reino. A diferença entre Jesus e Paulo, é que aquele só pensou em termos de Israel e Paulo levou a escatologia para os Gentios também, desligando-os da parte 'antropológica' hebraica, da dita Lei. Sem que Agamben dê importância a esta fé escatológica, o que ele caracteriza no seu lindíssimo livro é a maneira de viver usando como se não se usasse, desligando das riquezas e glórias do mundo que estava para acabar 'no tempo que resta', hebreu que ele era e não grego (embora com cultura helenista).
Ora esta concepção foi arrasada, as duas ou três gerações seguintes tiveram que se organizar de modo a durarem historicamente sem que a escatologia se tivesse realizado como se esperara: a nova aliança também falhou, o evangelho de João relançou-a. E depois veio o Platão de Orígenes que 'salvou' o cristianismo, tornando-o grego, despolitizando-o e desmaterializando a Bíblia. Ora, só considerando a Bíblia hebraica me parece possível restituir estas coisas.
Acrescento apenas que não sou um nostálgico do cristianismo primitivo, apenas um leitor interessado, mais intelectual do que espiritual, digamos (o que pode levar a reticências legítimas de quem seja crente).
23/06/2012
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Imagem: obra plástica de Luís de
Barreiros Tavares
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