L.T. : Para não complicar muito cito um manual simpático: Juan. M.N. Cordon e Tomas Calvo Martinez, História da Filosofia, 3 Vol. Ed.70: “A concepção cristã do homem incluía três elementos fundamentais: que o homem foi feito à imagem de Deus, que a alma é imortal e que, no fim dos tempos os corpos ressuscitarão. Esta última afirmação revelava-se particularmente estranha para o pensamento grego.” (p.82)
(…) “A incompatibilidade com o Platonismo procede de dois elementos específicos da doutrina cristã: em primeiro lugar, é o homem completo e não apenas a alma que foi feito à imagem de Deus; em segundo lugar, a doutrina da ressurreição dos corpos não permite afirmar que o estado natural e definitivo da alma seja o de uma existência desencarnada.” (p.88)
O pensamento de Platão sustenta a imortalidade da alma assente na sua pré-existência bem como na sua existência para além da morte (Fédon, 77b-78a). Imortalidade e separação, mas na condição de reencarnação, como por exemplo também no Fédon (80a-82b), em animais, deuses e homens consoante a variedade das circunstâncias, e no mito de Er no final da República (614b-621d), ambos os livros com algumas variantes que não vem para o caso explicitar. Ao passo que no Cristianismo é um todo alma-corpo que está em questão, tudo me levando crer, nas minhas limitações nestas matérias, que o tema cristão da ‘pessoa’ é aí fundamental.
Como é que lês as diferenças entre o Platonismo e o Cristianismo quanto à reencarnação das almas no primeiro e à ressurreição dos corpos no segundo?
14/06/2012
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F. B. : A questão posta assim implica que há duas coisas separadas e diferentes, o Cristianismo e o Platonismo. Aceitando que o platonismo é susceptível de ser caracterizado sem grandes dificuldades na sua existência de 4 a 6 séculos anteriormente ao cristianismo, este é muito mais difícil de ser caracterizado 'sem' o platonismo, sobretudo a partir do início do séc. III, de Orígenes de Alexandria.
Por um lado, julgo que os textos do novo Testamento ignoram a oposição alma / corpo típica do platonismo e insistem em algo que lhe é estranho radicalmente, a noção digamos 'comunitária' que é ilustrada pelo motivo pauliniano do Corpo do Messias (Cristo) e, creio eu, pelo do Filho do Humano nos evangelhos sinópticos (mais do que o 'homem completo', é a terra, as refeições, os justos que 'subirão aos céus', cf. 1 Tessal. 4.15).
Mas por outro lado, o motivo do Filho de Deus em Paulo é apresentado em Romanos 1.4 com um particípio do verbo horizô, que é o verbo de Platão para dizer a definição (das Formas ideais celestes): Paulo faz passar uma figura celeste hebraica (o Messias ressuscitado que virá escatologicamente) numa figura grega estranha à Bíblia (Filho de Deus). Mas depois dele, e contra ele, aparece uma outra figura que creio de índole grega (mas não platónica), a da incarnação desse Filho de Deus, ou do seu Verbo, Palavra, no homem Jesus. O problema é que esta incarnação vai predominar sobre a sua ressurreição.
Ora, o que se passa com Orígenes é que o platonismo, que na época tem uma tradição espiritual e intelectual de 6 séculos, apodera-se do discurso (bárbaro) oficial cristão até ao sec. XIII, em que o Aquino o substitui por Aristóteles. A alma imortal entrou nessa época no cristianismo de maneira tal que a perspectiva da ressurreição dos mortos foi engolida na prática, tal como a de Jesus, que continuou a festejar-se na Páscoa mas desapareceu quase do discurso teológico; o mesmo sucedeu à ressurreição dos mortos que continuou no Credo mas praticamente não na teologia: foi 'redescoberta' nos anos 1950!
Quero dizer com isto que, sendo obviamente incompatíveis, a alma imortal e a ressurreição, aquela, isto é, o platonismo, é que vingou, mesmo em Tomás de Aquino, e por isso é que comecei por duvidar da separação entre cristianismo e platonismo.
Podes perguntar a qualquer pessoa, vá ou não à missa, seja ou não crente, todos te confirmarão que a alma que vai para o céu depois da morte é essencial ao cristianismo (os padres e teólogos também), e só gente culta será capaz de dizer algo sobre a ressurreição (mas não sei o que dirão nem como a compatibilizam com a alma).
Quanto à reencarnação, ela tem uma lógica matemática: existentes desde sempre e imortais, o número de almas é constante e portanto vão e voltam, às mortes sucedem nascimentos, humanos ou animais. Não te sei dizer quanto tempo se acreditou nisso nas escolas platónicas, mas rapidamente o platonismo cristão rejeitou a ideia.
Disse o Nietzsche que o cristianismo é o platonismo dos pobres. Acrescento eu: a imortalidade da alma no Fédon é só para os filósofos, virtuosos e amigos do saber. O cristianismo estendeu-a aos escravos, mulheres, crianças.
14/06/2012Por um lado, julgo que os textos do novo Testamento ignoram a oposição alma / corpo típica do platonismo e insistem em algo que lhe é estranho radicalmente, a noção digamos 'comunitária' que é ilustrada pelo motivo pauliniano do Corpo do Messias (Cristo) e, creio eu, pelo do Filho do Humano nos evangelhos sinópticos (mais do que o 'homem completo', é a terra, as refeições, os justos que 'subirão aos céus', cf. 1 Tessal. 4.15).
Mas por outro lado, o motivo do Filho de Deus em Paulo é apresentado em Romanos 1.4 com um particípio do verbo horizô, que é o verbo de Platão para dizer a definição (das Formas ideais celestes): Paulo faz passar uma figura celeste hebraica (o Messias ressuscitado que virá escatologicamente) numa figura grega estranha à Bíblia (Filho de Deus). Mas depois dele, e contra ele, aparece uma outra figura que creio de índole grega (mas não platónica), a da incarnação desse Filho de Deus, ou do seu Verbo, Palavra, no homem Jesus. O problema é que esta incarnação vai predominar sobre a sua ressurreição.
Ora, o que se passa com Orígenes é que o platonismo, que na época tem uma tradição espiritual e intelectual de 6 séculos, apodera-se do discurso (bárbaro) oficial cristão até ao sec. XIII, em que o Aquino o substitui por Aristóteles. A alma imortal entrou nessa época no cristianismo de maneira tal que a perspectiva da ressurreição dos mortos foi engolida na prática, tal como a de Jesus, que continuou a festejar-se na Páscoa mas desapareceu quase do discurso teológico; o mesmo sucedeu à ressurreição dos mortos que continuou no Credo mas praticamente não na teologia: foi 'redescoberta' nos anos 1950!
Quero dizer com isto que, sendo obviamente incompatíveis, a alma imortal e a ressurreição, aquela, isto é, o platonismo, é que vingou, mesmo em Tomás de Aquino, e por isso é que comecei por duvidar da separação entre cristianismo e platonismo.
Podes perguntar a qualquer pessoa, vá ou não à missa, seja ou não crente, todos te confirmarão que a alma que vai para o céu depois da morte é essencial ao cristianismo (os padres e teólogos também), e só gente culta será capaz de dizer algo sobre a ressurreição (mas não sei o que dirão nem como a compatibilizam com a alma).
Quanto à reencarnação, ela tem uma lógica matemática: existentes desde sempre e imortais, o número de almas é constante e portanto vão e voltam, às mortes sucedem nascimentos, humanos ou animais. Não te sei dizer quanto tempo se acreditou nisso nas escolas platónicas, mas rapidamente o platonismo cristão rejeitou a ideia.
Disse o Nietzsche que o cristianismo é o platonismo dos pobres. Acrescento eu: a imortalidade da alma no Fédon é só para os filósofos, virtuosos e amigos do saber. O cristianismo estendeu-a aos escravos, mulheres, crianças.
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Imagem: desenho-pintura - obra plástica de Luís de
Barreiros Tavares
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