domingo, 16 de setembro de 2012

107. Double bind e leis inconciliáveis e indissociáveis




L.T. : Então, fazes a passagem do double bind (duplo laço) para as ciências com o que chamas "leis inconciliáveis e indissociáveis"? Como?

16/09/2012

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F.B. : Resposta complicada. Começo pelo exemplo da linguagem. A chamada dupla articulação de cada palavra - por um lado, 'significante', é composta de fonemas (letras, no alfabeto) permitindo a voz que a garganta consegue modular com uns trinta e tal fonemas, por outro insere-se numa frase como discurso, onde ganha um 'significado' consoante aquilo que o discurso diz, refere, alguns milhares de palavras que o cérebro consegue reter podendo dizer um número indefinido de frases e discursos - implica duas lógicas, duas leis relevando de sistemas fisiológicos distintos: o da produção de sons, com a sua estética auditiva, susceptível de entoações variadas, da fúria à musicalidade, ternura, etc, que é imanente à sonoridade, o do sentido que reenvia para outro contexto (contar uma história passada noutro lugar e tempo, por exemplo, um poema, uma demonstração...) e que pede entendimento e cultura (um estrangeiro percebe os sons, não entende os sentidos do discurso, um camponês não entende a tese, etc.). São pois duas leis que não têm nada a ver uma com a outra: traduzido noutra língua, o 'mesmo' discurso é dito com sons tão diferentes que o seu autor pode não perceber nada. Este duplo laço define a linguagem humana, a fala consiste em ambos indissociavelmente, não há linguagem só com um deles (ao contrário do que pensa a tradição europeia, não há 'sons' que são ligados a 'ideias', é o duplo laço destas duas leis que produz tantos os fonemas como os sentidos). A linguística estuda o sistema dos fonemas (fonologia), e a morfologia, sintaxe e semântica das frases, com alguns problemas na prática deles (estudei isso na minha tese Epistemologia do Sentido, Gulbenkian, 1991).

Segundo exemplos: as várias peças dum automóvel são estudadas segundo leis físicas e químicas dadas, formando dois sistemas: o do motor, cilindro onde se faz a explosão da gasolina segundo as leis da termodinâmica, e o do aparelho que se orienta para a condução na estrada, suas curvas, acelerar e travar, luzes, etc., o conjunto devendo obedecer a uma lei social, a lei do tráfego, que conta com a possibilidade de haver numerosos automóveis na estrada. A lei da explosão da gasolina é inconciliável com a do tráfego (o motor é hermeticamente fechado), mas o automóvel é definido pelo duplo laço dessas leis. Mas também a relação entre o trabalho fragmentário de laboratório dos engenheiros de automóveis implica um laço técnico segundo diversas leis científicas, motor e aparelho, enquanto que o seu conjunto no carro depende da lei do tráfego. Ou então, em relação ao comércio do carro, duplo laço entre o trabalho técnico do engenheiro e o do economista que o lança no mercado, atento a custos das máquinas e matérias primas, salários, preços da concorrência, etc: também são inconciliáveis (os engenheiros são torturados pelos economistas para baixarem os custos) e indissociáveis (só se fazem carros para se venderem, ninguém faz um carro só para si). Este exemplo dá para entender que o motivo do duplo laço pode se deslocar segundo os pontos de vista.
Amanhã exemplifico para a biologia.

16/09/2012




Imagem: obra plástica de Luís de Barreiros Tavares - 2012

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