quinta-feira, 13 de setembro de 2012

105. Outras abstracções?



"Apago-me ante (diante de) alguém que não está ainda aí, e inclino-me antecipadamente um milénio ante (diante de) seu espírito"

Heinrich Von Kleist
Citado por Heidegger numa entrevista à televisão alemã em 1969.


L.T. : Estava eu de manhã na esplanada tomando café, lendo algumas más-novas no jornal e preparando-me para revisitar o formidável Autrement qu'être ou au-delà de l'essence do grande Levinas (versão castelhana; tenho o original em fotocópias), e eis que sou interrompido pela lembrança de algumas notas do teu último e-mail juntando mais algumas questões que me interessam e sobre as quais tenho pensado.
Aí vão algumas coisas que lá escrevi no meu bloco de notas, com mais um ou outro pequeno acrescento. Questões e tópicos que me interessam:
Por exemplo, empregam-se os termos "desconstrução", "singularidade" e muitos outros (telejornal, revistas da actualidade, críticas, análises, etc.). Os próprios conceitos-definições atravessam os ditos discursos do real. Eles são provenientes do campo filosófico. Como escreves algures, num texto sobre o ensino e a filosofia, sem eles, os textos seriam esburacados, com muitos espaços em branco, como certos queijos ou tiras de código morse...
Mas sabemos do perigo do desgaste de uma noção banalizada. Abstracção de abstracção? Deixo em aberto.
Como sabemos, a metafísica extravasa para as linguagens naturais (vj. Wittgenstein e outros na linha da filosofia anglosaxónica).
Na linha deleuziana, ouvi um dia do José Gil: "há uma doxa filosófica." Quererá ele dizer que em certas circunstâncias há probabilidades de reversibilidade entre as chamadas "doxa" e "epistémê" (sobre doxa e epistémê vj. p.ex. Platão, República, 477b, 511...)?
Mas o que me espanta muito é que no plano não metafísico propriamente dito, mas ecoando-o - dir-se-ia , quer dizer, nos planos semiológico, sociológico, semiótico, linguístico e também filosófico, claro, etc. -, por exemplo, a dita "instantaneidade do tempo real", "trans-aparência (aparência instantaneamente transmitida à distância)" (Paul Virilio; ver "dromologia e claustrofobia" http://www.youtube.com/watch?v=yQ-M38oW1nQ&feature=related ), a "hiperrrealidade", "reversibilidade dos signos" (Baudrillard,http://www.youtube.com/watch?v=kiHpGAjA33E&feature=related), serão de alguma maneira correlativas da "presença do presente" (presente da presença (?)) a que aludi a propósito do vídeo do Derrida:http://blogoscomfbeloperguntaserespostas.blogspot.pt/2011/08/normal-0-21-false-false-false-pt-x-none_7744.html ? Ora, creio que - com aquela presença do "em tempo real", esta hiperactualização e esta espécie de ubiquidade em que vivemos, ou seja, qualquer coisa como uma outra "presença do presente", e que, digamos, traz por arrasto uma desactualização "do dia de ontem" - se produz um efeito ilusório de presença total (daí a banalização da morte que, no fundo, não é banalização nenhuma; mas não é esta questão que interessa aqui, adiante). Esta presença total implica, paradoxalmente, qualquer coisa como uma ausência. Parece-me que o 1º Heidegger percebeu isto no campo da questão do sentido do ser e seu esquecimento por parte da metafísica ocidental (uma ressalva: prefiro o modo de escrita do Heidegger e a linguagem - a poesia - e o de Tempo e Ser). É o que Derrida explicita no vídeo que referi e em "Ousia e grammê", reflectindo depois sobre a trace. Mas o Heidegger não deve ter pensado o bastante no campo de uma certa realidade. Esse é um dos perigos da metafísica para os quais curiosa e paradoxalmente Heidegger muito bem alertou. O Dasein estará aqui em jogo? No entanto, qualquer coisa lhe escapou, daí os seus comprometimentos políticos ainda controversos e polémicos. Um seu lado megalómano? Abstracções mal ponderadas? Eu sei lá?
Mas como articular estas questões com a reviravolta que me parece haver e que indiquei acima nos campos do real, ou, se quisermos, para alargar o sentido, da realidade?
Não há uma separação (uma abstracção, como alguns dizem, p.ex., J. Gil numa entrevista recente) grave entre a alta política, e talvez principalmente entre a alta economia e a realidade de cada cidadão e de grande parte deles no seu conjunto? Grandes massas de gente a nível nacional, europeu, mundial, não começam a ser progressivamente desvinculadas socialmente através do fantasma do desemprego? No princípio dos anos noventa lancei numa aula de "Filosofia social e política" com o Eduardo Chitas na UCL mais ou menos esta ideia. Lembro-me que provoquei algum silêncio de apreensão com alguns pontos que abordei, embora a ideia não trouxesse novidade em especial. A expectação que provoquei foi devida principalmente ao tom de alerta que imprimi. Mas é preciso pensar estas questões.
Trata-se de questões sociais - e vitais! - neste "mundo actual tão mortífero em suas crises", como escreves. "Energias psicossociais", para usar uma expressão do Sloterdijk que recolhi de um artigo do António Guerreiro. Eu diria também: energias anímicas:http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=artigo+de+fernando+belo . Não são estas questões decisivas no pensamento filosófico contemporâneo e na nossa realidade actual?

Bem, isto foi também um desabafo. Preciso dar-me largas.
Há aqui alguma questão que te interesse?

13/09/2012

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F.B. : "perigo do desgaste de uma noção banalizada". Eu penso que esta questão se esclarece, para mim, com o motivo kuhniano de paradigma, que foi tornado possível pela definição socrático-platónico-aristotélica. A filosofia, constituiu-se como texto gnosiológico outro do que a doxa, o discurso do quotidiano. Mas é claro que a fecundidade da filosofia (que nos Gregos de então jogava com palavras de todos os dias que 'definia') implicou que as suas palavras voltassem à doxa. E assim foi durante séculos, ajudada muito essa fecundação com a teologia cristã e a pregação.

Hoje em dia, com a multiplicação de paradigmas especializados, científicos e não só, essa deslocação das palavras aumentou muito, devo dizer que me espanto muito com a fecundidade da noção de 'desconstrução', sendo que hoje qualquer um a usa e muito raros são os que conhecem Derrida. A tal banalização é esta inserção dum termo filosófico mais ou menos rigoroso em outros paradigmas e nos discursos das doxas políticas e outras. Se os filósofos pretendem ter audiência fora dos seus pares, sujeitam-se a estas banalizações.
"Abstracção de abstracção" é que acho que não, é uma 'abstracção' que se desabstrai, diria.

14/09/2012

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Imagem: obra plástica de Luís de Barreiros Tavares - 2012

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