terça-feira, 10 de julho de 2012

97. Uma questão simples




L.T. :Trago uma questão simples: O que é para ti o real?

Mas vou desenvolvê-la um pouco de modo livre.
Das leituras que tenho feito dos teus textos pode-se dizer que o modo como encaras o cristianismo tem muito a ver com o social, o político, o ético, o espiritual, enfim com as coisas dos homens na vida real adentro de uma certa perspectiva que caracteriza decisivamente a tua obra. Não por acaso o teu primeiro livro sobre o cristianismo se intitula, Leitura Materialista do Evangelho de Marcos, narrativa [récit]-prática-ideologia. Isto numa impressão e consideração um tanto superficial pois não é de imediato que se entram em abordagens de certas temáticas que implicam anos de estudo.
Mas estas considerações levam-me à primeira questão posta aqui, formulada no entanto de outra maneira, ou seja, as questões do real e da realidade parecem-me importantes nos teus estudos. As coisas, dos homens na Terra, a habitação, a alimentação, a gravitação, a inscrição, etc., são pensadas de forma singular alargando-se numa espécie de teia ou tessitura, ou a redes de estruturas e a planos que vão das ciências naturais e físicas, às sociais e humanas, à linguística e à filosofia, não esquecendo o cristianismo. A tua escrita e o modo como a tua obra se nos oferece, digamos, tem qualquer coisa de briquetage, usando uma expressão francesa. Mas eu diria uma briquetage dinâmica. Isto talvez não deixe de ser metafórico, mas digamos que o trabalho da tua obra e do teu pensamento faz-se numa espécie de jogo dos movimentos da briquetage, esse trabalho de tijolo, esse trabalho da terra, essa construção, comportando sem dúvida o teu interesse pela questão da physis que brota com Aristóteles. Este trabalho - implicando a escrita, a escrit-ura - em que o processo de construção permite acompanhar o modo de processo de desconstrução (pelo menos na sua possibilidade, i.é, de como se pode desconstruir, en train de se faire - na construção em curso - se assim se pode dizer). No respeitante aos teus textos, o pensamento não perde de vista as coisas da obra, e estas, por sua vez, não o perdem de vista. Temos uma leitura que não nos deixa perder no teorético, no especulativo, mas também não no mero empírico nem no objecto que fica do lado de lá relativamente a um suposto sujeito e vice-versa. Isto parece-me que implica novas reflexões sobre as questão do que se chama real e realidade, tendo estas duas noções as suas diferenças, como saberás melhor do que eu.
Posso estar enganado, mas retomando estes motivos, qualquer coisa da ordem do 'real' e da 'realidade' releva na tua obra, na tua produção textual. Mas a pergunta acaba por resumir-se assim: Como é que encaras as questões do real e da realidade na tua obra? Poderás dizer alguma coisa sobre o modo como pensas de maneira inovadora estas questões?
Pode parecer uma pergunta genérica, mas para mim pelo menos ajuda-me a entrar nos teus textos sobre cristianismo, p.ex., mesmo que em passos vacilantes.

09/07/2012


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F.B.: Real e realidade, do latim 'res', coisa. Curiosamente, também de 'res' veio 'rien', um dos contrários de real (em português, 'nada' vem do latim 'natus', o que nasceu, que virá da importância antiga da 'natureza', que é um outro nome filosófico da 'realidade').
No uso filosófico corrente, creio que significa o que não é linguagem, nem ficção, nem ideal, o que tem consistência, substância, resistência... Isto é, é um termo vago que se usa porque já ninguém usa 'ser' (excepto o Heidegger), o Fernando Gil até achava que não se devia ensinar o 'ser' na filosofia dos liceus, era vago e não servia para nada. Mas de vez enquanto o termo 'realidade' impõe-se nesta sua generalidade, e costumo fazer como o Derrida: 'a chamada realidade', pondo aspas para dizer que não se 'acredita' no termo (na oposição que ele tem a linguagem, pensamento), que ele é vago mas de vez em quando dá jeito.
Devo dizer que me faz alguma confusão o uso filosófico do termo 'coisa' (que na linguagem de todos os dias pode ser qualquer coisa, tudo) como se fosse 'ente' (étant).
Tudo isto para dizer que não é um dos meus motivos, mas o que me interessa na tua pergunta é: e o que é que eu proponho para substituir a 'realidade'? às vezes penso nisso assim: como o meu trabalho recente se reclama das ciências na sua dimensão filosófica, fui levado a propor quatro grandes cenas histórica: a da gravitação (astros, terra), a da alimentação (vivos, evolução), a da habitação (as sociedades humanas desde a pré-história) e a da inscrição (a história ocidental do saber filosófico e científico).
O problema da sua sucessão é que cada uma inclui as que se lhe seguem, que são parte dela e obedecem às suas regras, mas as novas introduzem novas regras de que as anteriores não sabiam nem compreendem, mas pode-se dizer que resultam de limitações das cenas anteriores que se excederam; por outro lado, as três últimas sendo exclusivamente terrestres, cada uma das novas tem incidências sobre as anteriores: a vida transformou o planeta terra, as sociedades humanas também e as ciências física-químicas ainda mais, como sabemos das técnicas. Isto significa que, as ciências sendo limitadas às respectivas cenas, encontram todavia os seus fenómenos próprios alterados por cenas que não relevam delas, tanto para cima como para baixo. No caso dos humanos, a complicação é que eles se partilham das quatro cenas, como lhes encontrar alguma unidade? Quer o 'sujeito' quer o 'Dasein' estão muito vinculados à cena da inscrição.
Há algo que é comum às quatro: em nenhuma das cenas há determinismos, todas elas, de maneiras muito diferentes, descobrem regras laboratorialmente que 'na chamada realidade', isto é, fora do laboratório, jogam consoante o aleatório das outras componentes das cenas (tal como um carro anda na estrada segundo regras científicas diversas mas em percursos aleatórios, consoante a sua direcção ou sentido e os outros que também circulam perto dele). O que pus em itálico mostra o meu problema: como caracterizar a realidade como o que é, na terra, a composição de quatro grandes cenas? Como o dizer de uma maneira certa, segura, interessante? Como é que nos seres vivos, nos humanos, as várias cenas se enxertam?
Já agora, este motivo de as regras corresponderem a aleatórios, que transforma completamente noções correntes de filosofia, sentido, liberdade, ciência, laboratório, redução, etc., motivo de que pouco temos falado neste bLogos, pedem a reformulação da filosofia das ciências que se faz para aí, que me parece muito pobre, muito dependente do que os cientistas acham que fazem, mas conheço mal, leio muito pouco sobre ela, é mais em conversas e artigos pequenos que se percebe isto que estou a dizer, continuam com sujeitos e objectos, ignoram a razão de ser do laboratório. Há alguns anos consultei um Dicionário de Filosofia das CIências dirigido pelo D. Lecourt e, num dicionário de há uns 8 ou 10 anos, não havia entrada para laboratório! Os cientistas continuam a pensar que o determinismo é o próprio das ciências deles. Também é certo que nessas Filosofia das CIências só se trata quase de Física, hoje há uma Filosofia da Biologia mas separada da da Física; em todos os casos, Linguísticas e CIências das sociedades não fazem parte.
Acho tudo isto muito 'real', isto é, corresponde verdadeiramente à chamada realidade.


10/07/2012

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Imagem: fotografia - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares
 

Vídeo para instalação de Luís de Barreiros Tavares

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