quarta-feira, 29 de maio de 2013

139. Relação de causa-efeito no princípio de identidade: "A é A"?












L.T. : Encontras alguma relação de causa-efeito no princípio de identidade: A é A?


23/05/2013


-





F.B. :  Estás a puxar-me para questões de lógica, que não são o meu forte, mas estou a gostar. Respondo sem conhecer os dossiers sobre ambas as questões, sigo a lógica da minha fenomenologia.
Terei que detalhar cada um dos dois pontos propostos antes de os pôr em confronto. Ambos dependem da invenção da definição.

A é A. O 'é' ou o = em A=A são ambíguos, entre o sentido de idêntico e de o mesmo
Comecemos pela letra A.  A A A A : enquanto grafia, não são idênticos; mas são a mesma letra. Esta mesmidade sem identidade implica a não substancialidade do A, não é a grafia que decide mas a diferença com outras letras. A diferença antes da substância, é uma posição que vale tanto para Heidegger como para Derrida e que parece pôr uma questão ao princípio da identidade (o Heidegger tem um livro sobre isso, que li há mais de 20 anos e de que não me lembro, a questão na altura não me interessava). Este só valeria para 'A é igual a si mesmo' e não para dois AA empiricamente distintos, não idênticos.

Seja um nome: Luís, se me permites. Há muitos Luises, o mesmo nome para indivíduos não idênticos. A palavra cão é também a mesma para animais bem diferentes. A biologia molecular complicou e explicou: os cães têm o mesmo ADN no essencial mas com variantes individuais, nós igualmente.
 Enquanto que as rochas, as águas, os ares, são feitos de moléculas que são tanto idênticas como as mesmas: o
 que significa que a diferença com a ou rasto (différance, trace)
 (Derrida) introduziu duas mesmidades novas, uma a da reprodução dos vivos, 
outra a da denominação linguística sobre a identidade empírica. 
Aristóteles clarificou a questão: mesma espécie e diferentes acidentes individuais, ousia sendo o termo que dizia a mesmidade (essência e substância, nas traduções latinas), acidente a individualidade ou particularidade. Foi a definição que definiu a mesmidade (que a denominação já dizia). 
A é igual a si mesmo - serei uma 'essência' igual a si mesma toda a vida?  'alma' e 'sujeito' parecem dizer que sim, sem deixarem dúvidas. Heidegger cortou cerce: a noção de 'essência' não conta com o tempo, não serve pois para dizer o 'ser' dos humanos (é a grande tese de Ser e tempo). Nem dos cães.  Sem que Heidegger tenha dado os exemplos, basta pensar no comer e no aprender como ritmo estrutural dos vivos, nomeadamente aves e mamíferos, para se perceber que ninguém é sequer idêntico a si mesmo (as células dos ossos são totalmente regeneradas todos os 6 meses, o nosso esqueleto deixa de ser idêntico duas vezes por ano). Acrescente-se uma dificuldade: são outros que se comem. é saber dos outros que se aprende, de outros se faz o mesmo. Ai do princípio de identidade! Valha-nos a nossa frágil memória que nos garante alguma identidade, excepto quando sonhamos.
Em conclusão, creio que o princípio só vale da denominação, do logos, e isso Aristóteles sabia-o, foi desfeito (talvez no helenismo) na escolástica que creio que platonizou Aristóteles. Mas mesmo aí não deixa de haver problemas, não a propósito do significante, que foi o meu argumento, mas do sentido: a mesma palavra pode mudar de sentido por se alterarem outras à sua volta, sem se lhe tocar. Por exemplo, na frase que se segue, a palavra 'cara' ganha um sentido diferente do corrente devido ao que se escreve depois da vírgula: 'minha cara amiga, acabo de pagar 10.000 € a mais devido ao seu descuido'. Ora, foi por causa deste tipo de fenómenos, a polissemia, as ambiguidades, que após a definição Aristóteles teve que inventar a lógica e nos últimos tempos esta foi matematizada, expulsas dela as línguas. Como quem diz: os princípios lógicos, como A=A, são laboratoriais, só valem no laboratório dos lógicos.
Causa e efeito - aqui trata-se dum outro princípio elementar da razão, como o da identidade, que justificou a própria definição, necessária para ser capaz de pensar as causas das coisas num mundo com alterações constantes. Um pontapé numa bola que mete golo, é causa dele. Uma mãe que dá à luz um bébé é causa dele. Em ambos os casos, antes da definição, há anterioridade da causa em relação ao efeito. E a antecipação da morte em Ser e Tempo, é causa da angústia e da autenticidade possível? Uma fuga antes de um perigo ocorrer, este é causa daquela? Volta a questão da linguagem, se for certo que esta é necessária para antecipar e que sem dúvida jogou na complexidade da quádrupla causalidade de Aristóteles para definir o movimento. Motor (pontapé e golo) e final (fujo por antever perigo), material (aquele bébé daquela mãe, idêntico) e formal (os bébés das mães humanas, espécie, os mesmos) que permite antecipar para aquela grávida. Grande pensador do movimento (Physica) Aristóteles multiplicou os aspectos da causalidade dele, mormente o movimento dos vivos (que nascem, crescem, alteram-se, morrem), vários tipos complementares de causa para um só efeito. 
O laboratório de Galileu e de Newton restringiu-se ao movimento dos inertes que recebem duma força (causa) o efeito de se moverem, acelerarem, desacelerarem, travarem. Bastou-lhes a causa cinética (movimento) ou eficiente, desapareceu também o papel da linguagem antecipar: é a teoria experimentada que poderá predizer, antecipar. Pôr em questão este princípio de causa e efeito no laboratório seria pôr em causa a ciência moderna (como os físicos quânticos têm ar de fazer, para meu grande espanto, devo dizer). A questão é: e fora do laboratório, o que sucede à causa e efeito? Os cientistas, Laplace é o exemplo maior, extrapolaram da experimentação laboratorial justificada em equações que verificam nas suas variáveis os resultados, e decretaram o determinismo geral do universo. Um pouco rápido de mais, novamente substancialismo. Como é que a causa / efeito se põe para um automóvel? Há um motor  que dá o movimento mas para saber para onde o carro vai é necessária uma causa final, uma direcção ou sentido: ora, todo o aparelho do carro, além do cilindro, está ao serviço dessa finalidade aleatória para o mesmo carro e condutor, por vezes várias vezes por dia. O determinismo laboratorial que comanda o agenciamento das peças do aparelho e a sua articulação ao motor compõe-se de forma estrutural com o aleatório da direcção a tomar, segundo a lei do tráfego que não é determinista. O mesmo argumento pode ser aduzido para um cão, como fiz no blogue filosofia mais ciências: toda a sua anatomia que a biologia estuda em laboratório orienta-se (finalidade) para encontrar alimento que vai ser levado pelo sangue a cada célula (senão morre) e para evitar ser comido por mais fortes. O motivo fenomenológico do duplo laço que propus articula a causa eficiente (motor) com a causa final (aparelho) de maneira que contesta radicalmente o determinismo extrapolado: foram as próprias ciências que nos deram a indeterminação no coração de cada coisa, viva ou inerte, texto ou coisa social. Concluindo: causa / efeito é trivial (pontapé e golo) e científico em laboratório; fora dela, como Aristóteles percebera, é bem mais complicado do que o determinismo anuncia.
Causa / efeito e identidade? - se fôr verdade que esta exclui o tempo, isto é o movimento, e que só há causa de um efeito como movimento, alteração de algo, não vejo como é que os dois se ligam entre si: diferença, alteração, alteridade, movimento, são prévios à identidade. Mas tu que fizeste laconicamente a pergunta, poderás explicar-te melhor.


24/05/2013

-




L.T. : Só uma ressalva, ainda não li esta tua resposta. Só a primeira linha. Percebo pouco ou nada de Lógica comparativamente a certas pessoas que se dedicam um pouco mais, para não falar das que se dedicam muito. Apenas me surgem algumas questões e reflexões que me suscitam perguntas destas que me ponho, cujas respostas ou ainda não existem ou só em esboço muito vago. Assim, aproveito e envio-tas, com o interesse, claro, de receber alguma tua resposta segundo as tuas leituras.
Ao mesmo tempo, parecem questões atrevidas, com a sua brevidade, para quem as ponho, mas também para mim, tendo a ver com certas reflexões que vou fazendo e com o espanto a que chego (já Platão e Aristóteles falavam dele) quando estas mesmas perguntas podem ter de alguma maneira resposta afirmativa, sem que eu saiba propriamente responder de modo argumentativamente consistente. Fico-me às vezes pela perplexidade e espanto que elas me provocam, fazendo-me pensar, mas abrindo-me caminho.
Acaba por dever ser com modéstia que ponho estas questões.


24/05/2013





Este texto foi transcrito directamente do papel onde o escrevi na esplanada de manhã, sem qualquer alteração, salvo uma palavra ou duas palavras de retoque. Portanto poderão surgir algumas imprecisões temáticas.
1. Tentativa de resposta à questão da relação causa / efeito no princípio de identidade.
Quando falei do princípio de identidade estava a lembrar-me do "A é A" mencionado por Heidegger, ao invés de "A = A" (ele distingue-os em Identidade e Diferença). Neste texto, Heidegger estabelece o destaque importante entre "cada um ele mesmo para si mesmo o mesmo" e não "cada um ele mesmo  o mesmo" (O Sofista). Trata-se de um contexto platónico, e não podemos pensar que se inscreve num quadro proposicional lógico. mas ôntico-ontológico. Isto leva-me a pensar que em "A é A" se marca uma espécie de ressonância ou repercussão entre A e A'. Por exemplo, há quem expresse o princípio de identidade como "S é P" (Lalande, Vocabulaire Technique et Critique...), no plano proposicional de juízo e cópula. Sem querer entrar em psicologismos e associacionismos, poderemos entrever em "A é A" uma como que relação (embora 'relação' implique 3 elementos, em vez da cópula: 2) de sequência, de antecedência e consequência. Aliás, o predicado é o que se pré-diz de algo, mas evidentemente depois, mas antes de mais nada. Donde as categorias e a substância, por exemplo, esta como primeira categoria do ser em Aristóteles. Claro que na lógica não há, supõe-se, a dimensão temporal. As antecedências são formais e do plano da linguagem, enfim (?) ...
Mas estou ainda a lembrar-me de Hume que nos fala da relação causa / efeito na sua dimensão de hábito. Habituamo-nos na experiência, num primeiro plano, digamos, várias vezes que o fogo aquece a água no púcaro. Mas, segundo ele, isso não nos garante que sempre seja assim. Isto a traços largos. Não quero alargar-me mais neste plano, só que queria dizer que é um plano empírico e que a relação causa /efeito não remete, à partida, para o "A é A", pois este é tido na lógica e aquela na experiência. Mas não haverá ponto de articulação remoto?
Por outro lado, há o esquematismo e o esquema em Kant, dimensões que dificilmente poderemos apreender na sua plenitude, tal como ele refere na Crítica da Razão Pura. A imaginação entra em cena com a sensibilidade e o entendimento.



13/06/2013

 Imagem: desenho - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

Sem comentários:

Enviar um comentário