L.T. : Encontras alguma relação de causa-efeito no princípio de identidade: A é A?
23/05/2013
-
F.B. : Estás a puxar-me para questões de lógica, que não são o meu forte, mas
estou a gostar. Respondo sem conhecer os dossiers sobre ambas as questões, sigo
a lógica da minha fenomenologia.
Terei
que detalhar cada um dos dois pontos propostos antes de os pôr em confronto.
Ambos dependem da invenção da definição.
A
é A. O 'é' ou o = em A=A são ambíguos, entre o sentido de idêntico e
de o mesmo.
Comecemos
pela letra A. A A A A : enquanto grafia, não
são idênticos; mas são a mesma letra. Esta
mesmidade sem identidade implica a não substancialidade do A, não é a grafia
que decide mas a diferença com outras letras. A
diferença antes da substância, é uma posição que vale tanto para Heidegger
como para Derrida e que parece pôr uma questão ao princípio da identidade (o
Heidegger tem um livro sobre isso, que li há mais de 20 anos e de que não me
lembro, a questão na altura não me interessava). Este só valeria para 'A é
igual a si mesmo' e não para dois AA empiricamente distintos, não idênticos.
Seja
um nome: Luís, se me permites. Há muitos Luises, o mesmo nome para
indivíduos não idênticos. A palavra cão é também a mesma
para animais bem diferentes. A biologia molecular complicou e explicou: os cães
têm o mesmo ADN no essencial mas com variantes individuais, nós
igualmente.
Enquanto
que as rochas, as águas, os ares, são feitos de moléculas que são tanto
idênticas como as mesmas: o
que
significa que a diferença com a ou rasto (différance,
trace)
(Derrida)
introduziu duas mesmidades novas, uma a da reprodução dos vivos,
outra a
da denominação linguística sobre a identidade empírica.
Aristóteles
clarificou a questão: mesma espécie e diferentes acidentes individuais, ousia sendo
o termo que dizia a mesmidade (essência e substância, nas traduções latinas), acidente a
individualidade ou particularidade. Foi a definição que definiu a mesmidade
(que a denominação já dizia).
A
é igual a si mesmo - serei uma 'essência' igual a si
mesma toda a vida? 'alma' e 'sujeito' parecem dizer que sim, sem deixarem
dúvidas. Heidegger cortou cerce: a noção de 'essência' não conta com o tempo,
não serve pois para dizer o 'ser' dos humanos (é a grande tese de Ser e
tempo). Nem dos cães. Sem que Heidegger tenha dado os exemplos, basta
pensar no comer e no aprender como ritmo estrutural dos vivos, nomeadamente
aves e mamíferos, para se perceber que ninguém é sequer idêntico a si mesmo (as
células dos ossos são totalmente regeneradas todos os 6 meses, o nosso
esqueleto deixa de ser idêntico duas vezes por ano). Acrescente-se uma
dificuldade: são outros que se comem. é saber dos outros que se aprende, de
outros se faz o mesmo. Ai do princípio de identidade! Valha-nos a nossa
frágil memória que nos garante alguma identidade, excepto quando sonhamos.
Em
conclusão, creio que o princípio só vale da denominação, do logos, e
isso Aristóteles sabia-o, foi desfeito (talvez no helenismo) na escolástica que
creio que platonizou Aristóteles. Mas mesmo aí não deixa de haver problemas,
não a propósito do significante, que foi o meu argumento, mas do sentido: a
mesma palavra pode mudar de sentido por se alterarem outras à sua volta, sem se
lhe tocar. Por exemplo, na frase que se segue, a palavra 'cara' ganha um
sentido diferente do corrente devido ao que se escreve depois da vírgula:
'minha cara amiga, acabo de pagar 10.000 € a mais devido ao seu descuido'. Ora,
foi por causa deste tipo de fenómenos, a polissemia, as ambiguidades, que após
a definição Aristóteles teve que inventar a lógica e nos últimos tempos esta
foi matematizada, expulsas dela as línguas. Como quem diz: os princípios
lógicos, como A=A, são laboratoriais, só valem no laboratório dos lógicos.
Causa
e efeito - aqui trata-se dum outro princípio elementar
da razão, como o da identidade, que justificou a própria definição, necessária
para ser capaz de pensar as causas das coisas num mundo com alterações
constantes. Um pontapé numa bola que mete golo, é causa dele. Uma mãe que dá à
luz um bébé é causa dele. Em ambos os casos, antes da definição, há
anterioridade da causa em relação ao efeito. E a antecipação da morte em Ser
e Tempo, é causa da angústia e da autenticidade possível? Uma fuga antes de
um perigo ocorrer, este é causa daquela? Volta a questão da linguagem, se for
certo que esta é necessária para antecipar e que sem dúvida jogou na
complexidade da quádrupla causalidade de Aristóteles para definir o movimento.
Motor (pontapé e golo) e final (fujo por antever perigo), material (aquele bébé
daquela mãe, idêntico) e formal (os bébés das mães humanas, espécie, os mesmos)
que permite antecipar para aquela grávida. Grande pensador do movimento (Physica)
Aristóteles multiplicou os aspectos da causalidade dele, mormente o movimento
dos vivos (que nascem, crescem, alteram-se, morrem), vários tipos
complementares de causa para um só efeito.
O
laboratório de Galileu e de Newton restringiu-se ao movimento dos inertes que
recebem duma força (causa) o efeito de se moverem, acelerarem,
desacelerarem, travarem. Bastou-lhes a causa cinética (movimento) ou
eficiente, desapareceu também o papel da linguagem antecipar: é a teoria
experimentada que poderá predizer, antecipar. Pôr em questão este princípio de
causa e efeito no laboratório seria pôr em causa a ciência moderna (como os
físicos quânticos têm ar de fazer, para meu grande espanto, devo dizer). A
questão é: e fora do laboratório, o que sucede à causa e efeito? Os cientistas,
Laplace é o exemplo maior, extrapolaram da experimentação laboratorial
justificada em equações que verificam nas suas variáveis os resultados, e
decretaram o determinismo geral do universo. Um pouco rápido de mais, novamente
substancialismo. Como é que a causa / efeito se põe para um automóvel? Há um
motor que dá o movimento mas para saber para onde o carro vai é
necessária uma causa final, uma direcção ou sentido: ora, todo o aparelho do
carro, além do cilindro, está ao serviço dessa finalidade aleatória para o
mesmo carro e condutor, por vezes várias vezes por dia. O determinismo
laboratorial que comanda o agenciamento das peças do aparelho e a sua
articulação ao motor compõe-se de forma estrutural com o aleatório da direcção
a tomar, segundo a lei do tráfego que não é determinista. O mesmo argumento
pode ser aduzido para um cão, como fiz no blogue filosofia mais ciências:
toda a sua anatomia que a biologia estuda em laboratório orienta-se
(finalidade) para encontrar alimento que vai ser levado pelo sangue a cada
célula (senão morre) e para evitar ser comido por mais fortes. O motivo
fenomenológico do duplo laço que propus articula a causa eficiente
(motor) com a causa final (aparelho) de maneira que contesta radicalmente o
determinismo extrapolado: foram as próprias ciências que nos deram a
indeterminação no coração de cada coisa, viva ou inerte, texto ou coisa social.
Concluindo: causa / efeito é trivial (pontapé e golo) e científico em
laboratório; fora dela, como Aristóteles percebera, é bem mais complicado do
que o determinismo anuncia.
Causa
/ efeito e identidade? - se fôr verdade que esta exclui o
tempo, isto é o movimento, e que só há causa de um efeito como movimento,
alteração de algo, não vejo como é que os dois se ligam entre si: diferença,
alteração, alteridade, movimento, são prévios à identidade. Mas tu que
fizeste laconicamente a pergunta, poderás explicar-te melhor.
24/05/2013
-
24/05/2013
Este texto foi transcrito directamente do papel onde
o escrevi na esplanada de manhã, sem qualquer alteração, salvo uma
palavra ou duas palavras de retoque. Portanto poderão surgir algumas
imprecisões temáticas.
1. Tentativa de resposta à questão da relação causa / efeito no princípio de identidade.
Quando
falei do princípio de identidade estava a lembrar-me do "A é A"
mencionado por Heidegger, ao invés de "A = A" (ele distingue-os em Identidade e Diferença).
Neste texto, Heidegger estabelece o destaque importante entre "cada um
ele mesmo para si mesmo o mesmo" e não "cada um ele mesmo o mesmo" (O Sofista).
Trata-se de um contexto platónico, e não podemos pensar que se inscreve
num quadro proposicional lógico. mas ôntico-ontológico. Isto leva-me a
pensar que em "A é A" se marca uma espécie de ressonância ou repercussão
entre A e A'. Por exemplo, há quem expresse o princípio de identidade
como "S é P" (Lalande, Vocabulaire Technique et Critique...), no
plano proposicional de juízo e cópula. Sem querer entrar em
psicologismos e associacionismos, poderemos entrever em "A é A" uma como
que relação (embora 'relação' implique 3 elementos, em vez da cópula:
2) de sequência, de antecedência e consequência. Aliás, o predicado é o
que se pré-diz de algo, mas evidentemente depois, mas antes de mais
nada. Donde as categorias e a substância, por exemplo, esta como
primeira categoria do ser em Aristóteles. Claro que na lógica não há,
supõe-se, a dimensão temporal. As antecedências são formais e do plano
da linguagem, enfim (?) ...Mas estou ainda a lembrar-me de Hume que nos fala da relação causa / efeito na sua dimensão de hábito. Habituamo-nos na experiência, num primeiro plano, digamos, várias vezes que o fogo aquece a água no púcaro. Mas, segundo ele, isso não nos garante que sempre seja assim. Isto a traços largos. Não quero alargar-me mais neste plano, só que queria dizer que é um plano empírico e que a relação causa /efeito não remete, à partida, para o "A é A", pois este é tido na lógica e aquela na experiência. Mas não haverá ponto de articulação remoto?
Por outro lado, há o esquematismo e o esquema em Kant, dimensões que dificilmente poderemos apreender na sua plenitude, tal como ele refere na Crítica da Razão Pura. A imaginação entra em cena com a sensibilidade e o entendimento.
13/06/2013
Imagem: desenho - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares
Imagem: desenho - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares
Sem comentários:
Enviar um comentário