segunda-feira, 6 de maio de 2013

137. Continuação










L.T. : Um passo do teu texto:
“O que saberíamos nós de Portugal sem os mapas? Claro que não é só mapas, como tu não és só os teus retratos. E lixa completamente a linguagem, as coisas contra as palavras. Os actos contra os discursos, como se os discursos não fossem actos. As palavras colhem as coisas que dizem e colocam-nas no discurso diante de ti, como um rapaz colhe flores e oferece um ramo à namorada. O princípio da não contradição admite tudo isto, os seus defensores acérrimos é que não. Amanhã virá o 2º tempo.”
Ok, vamos lá ver se esta minha interpelação te motiva para o 2º tempo. Eis então uma das duas questões que queria avançar independentemente destas que estamos a tratar. Todavia, tento articulá-las.
Penso então nas palavras, nos discursos, sendo e fazendo actos (ou sendo feitas por actos?). How to do things with words” do Austin, não é? Sim, não penso agora nos speechs acts nem nas filosofias pragmáticas, etc. e tal, para não me baralhar mais…
Pego numa passagem do budista japonês, erudito e praticante, e, ao mesmo tempo, bom conhecedor da filosofia ocidental, o extraordinário Daisetz Teitaro Susuki, que muito admiro: "Chan-tao distingue, dans son commentaire sur le Sûtra des Méditations, deux sortes de pratique dévotionnelle pour le fidèle du nemboutsou (1), «correcte» et «mêlée». La «pratique correcte» consiste à penser (nien) au nom du Bouddha Amitâbha, l'esprit fixé sur cette pensée unique. Mais ici également «penser au nom» n'a de sens que si le nom est déliberément prononcé. Cette sorte de pensée n'est efficace que lorsque les nerfs et les muscles vocaux sont mis en mouvement, en concordance avec la représentation mentale. En fait, il est douteux qu'aucune pensée, élevée ou basse, puisse durer sans cet accompagnement musculaire, si léger et imperceptible soit-il."
(1) Ponho esta nota: Nemboutsou, ou Nembutsu, digamos de modo simplificado, expressão abreviada em japonês – que também há para o sânscrito e para o chinês - significando “homenagem ao Buda amithâba”, enquanto prática de recitação e invocação do nome do Buda.

Suzuki, Daistez Teitaro, Essais sur le Bouddhisme Zen, III vol., Albin Michel, 1972.
Fiz esta citação no dia 2 de Setembro de 2008 no Transporizações:
Claro, isto é budismo, e arrisco-me a confundir ainda mais as coisas…
Mas tentando tirar qualquer coisa daqui, e a ver se isto abre caminhos: “En fait, il est douteux qu'aucune pensée, élevée ou basse, puisse durer sans cet accompagnement musculaire, si léger et imperceptible soit-il.”
Com efeito, e resumindo sem elaborar muito, as minhas dificuldades aqui são: como explicar que uma palavra, uma frase, um som, enfim, também um pensamento, pensados, passe a redundância, possam provocar uma expressão, percepção?, eu diria, não só facial, outrossim, corporal, seja ela o mais ínfima possível, imperceptível, por exemplo, uma pequena percepção, “pequenas percepções” (que, diria, não estão do lado nem do sujeito nem do objecto), para falar à Leibniz, à Deleuze e, já agora, à J.Gil. Este último, principalmente, na filosofia do corpo e na filosofia da arte, reenviando para o pré-verbal, com, p.ex., o seu muito interessante livro A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções (livro de que há alguns anos me havias falado mais do que uma vez), etc., etc., isto e mais tanta coisa que eu não sei?
Mas, já agora, há outras coisas que me fazem confusão. Por exemplo, essa polarização cérebro /corpo, mente/cérebro, esta vindo substituir, parece-me, mente/corpo... Olha, o Searle tem um livro que é Mente, Cérebro e Ciência...
Isto cá para nós, o que é isso do cérebro? Que coisa é essa? É alguma metáfora...?


04/05/2013

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F.B. : A minha resposta anterior já tinha os dois tempos, foi escrita em dois dias e está lá assinalado. Sem importância.
A questão budista. Se entendi bem, não me parece difícil nem necessitar da parafernália do Deleuze e Gil. A citação do Sofista do Platão com que tu começaste estas conversas, se bem me lembro, distinguia a dianoia, no silêncio da alma, e o logos que fala com outros sonoramente, dizendo que são o mesmo. Genial Platão, face à sua posteridade europeia e ao seu mental.
Pode-se imaginar que seja parecida a aquisição da fala como a da leitura, que começa por ser em voz alta e passa depois a remuer os lábios (adultos que lêem mal) até que se faz sem nenhum som audível de fora. A dianoia, o pensamento é o mesmo que o discurso (logos), com palavras em frases e regras da língua, mas nós aprendemos a guardá-lo dos outros, a pensar sós, em forma de segredo, como defesa dos outros. O Changeux sugere algures no Homem neuronal que há um mecanismo do cérebro para fazer essa 'mentalização' do discurso, limitá-lo aos neurónios a que só o próprio tem acesso: Damásio chama a isso 'mente' (como lembrei no Montepio). O teu budista parece querer fazer o caminho inverso, conseguir que algo do mecanismo muscular da fonação na laringe e boca acompanhe a meditação, não a deixe puramente 'mental', só do que medita, mas algo de aberto ao comunitário, se bem entendi. 
Não acho que haja algo como pré-verbal em quem já sabe falar, isso são restos cartesianos ou kantianos ou husserlianos, restos em qualquer caso. O Derrida dizia que não há percepção, como se o cérebro conhecesse 'paralíticos', nele tudo é cinema.
O que é o cérebro? é o conjunto dos neurónios, células da auto e hetero afectação, que se afectam umas às outras por via das sinapses, a maior parte das quais são abertas pela aprendizagem e fazem a nossa memória; é ele que regula a homeostasia do sangue, função biológica por excelência, tal como a aprendizagem é a sua função social. É um espantoso órgão biológico e social, que faz de qualquer animal um ser no mundo, pese a Heidegger que limitava isso aos humanos. 

07/05/2013


Ver  texto "SOBRE O TEMPO":



Imagem: desenho - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares
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