domingo, 24 de março de 2013

132. 'Não será que...?' [título a alterar em breve]







L.T. : Escrito à maneira de esquema na mesa do café. Transcrito agora, só com alguns reparos.
Cá vai texto:

1. Não será que se descobre, com a técnica e as ciências, o invisível que permanece invisível? Não será que já antes de Platão, mas principalmente a partir dele, se falava de invisíveis a olho nu (os inteligíveis - noeta, eide -; aorata...)? Não será que os genes (talvez mais os genomas) são de algum modo descendentes dos géneros, dos universais? Não será que estes eram invisíveis ao tempo de Platão e Aristóteles? Não será que os genes são da ordem do físico, bio-químico, enfim, da physis em sentido alargado? Ou ainda de um plano dos sensíveis (mas invisíveis)? No entanto, não será que os genes (poderíamos falar de átomos e de muitos outras designações microscópicas com as ciências actuais) só são "visíveis" técnica e cientificamente? Não será que a consumação do logos na sua formulação silogística aristotélica, e respectivamente o estabelecimento da proposição (protasis) - a par da "invenção da definição", do princípio de não-contradição, do apofântico, do categorial (categorias como summa genera), etc. - se encontram na origem de um longo processo que vem a ser chamado actualmente, contemporaneamente, 'prótese técnica' (p.ex., os dispositivos na sua caracterização protésica)? Prótese técnica podendo reenviar eventualmente para o jogo semântico prosthesis (adição, aplicação de uma coisa sobre outra, acomodação), pro-thesis (colocar diante...), pro-stassô (colocar perto, pôr à frente, no sentido também de protecção, ecrã...), protasis (proposição, premissa, prótase) embora estes termos gregos não estejam obrigatoriamente relacionados etimologicamente? Mas onde acaba e começa a etimologia? Mas não é o lugar nem o momento para analisar estas questões que por ora me ultrapassam.

2. Não será que a "inversão do platonismo" (Nietzsche, Deleuze), pode ter começado, ou pelo menos ser admitida como possibilidade, num certo sentido, já em Platão, quando ele apela à passagem pontual pelos simulacros numa espécie de identificação com o papel do sofista, p.ex., no  chamado 'parricídio' em O Sofista, contradizendo nesse passo a posição de Parménides? Não será que aí ele ensaia a título de experiência o relativismo sofístico?
Não será que, numa outra perspectiva, a inversão do platonismo com Nietzsche é já o culminar de todo o processo de inversão inevitável? Não será essa inversão o desdobrar, o duplicar com o Gestell (Heidegger)? Não é interessante que um dos termos correlativos de Gestell é 'dispositivo' (vj. Agamben, G., Qu'est-ce q'un dispositif?, Rivages Poche, pp.27-28)? Quer dizer, aquela inversão não vem a par da técnica e de todo o caminho que desponta uma outra vez, p.ex. com a ciência moderna? Não será que com técnica e com as ciências somos de uma maneira inaudita mais platónicos que Platão, uma vez que com ela o plano teorético das formas se realiza sensível e experiencialmente - nomeadamente com os simulacros reais, a alta definição, alta resolução, tecnologia de ponta, as realizações e descobertas científicas, etc. -, sendo que este desdobramento ou duplicação da inversão se dá quase, se não totalmente? Então não se trata propriamente de inversão do platonismo? E por isso, não será que a inversão do platonismo convém ser repensada no seu mesmo desdobramento? Pois não se trata já de meditar sobre este estranho e complexo 'meio' que nos turva o olhar e a visão de tanta de visibilidade? Não será necessário repensar este 'meio', este media, diria? Ou duplo meio? Ou sobre-meio? Stiegler fala algurees de uma "envolvente" no âmbito das relações dos humanos e dos objectos técnicos (ver §2 do meu texto publicado na Revista de Comunicação e Linguagens (UNL):

Pensar o 'meio' da técnica, das novas tecnologias e das ciências? Não se trata aqui de pensar somente os objectos técnicos. Gestell, enquanto meio desdobrado no jogo dos invisíveis conceptuais, noéticos da tradição da metafísica ocidental, com os invisíveis da química, bioquímica e física, p.ex. (não falo dos átomos segundo Demócrito e Lucrécio...) das ciências ditas actuais? Por outro lado, não importa pensar a problematização dos visíveis e das chamadas aparências (doxasta, aistheta, etc.) com os, afinal, visíveis (ou não?) das imagiologias, das imagens astronómicas (hiper-macro), das imagens microscópicas (hiper-micro) electrónicas, etc. etc.?
O que é a visibilidade e a invisibilidade?

3. Não será que, de um certo modo, à maneira de Platão, afinal os visíveis eram os inteligíveis, e os sensíveis, visíveis só em aparência? Na linha do dito de Parménides; mais ou menos isto: "multidão enigmática, de duas cabeças, vagueiam cegos e surdos..."? 
Transcrevendo depois, de uma tradução de José Trindade Santos, 1997) : "[...] mortais, que  nada sabem, / vagueiam, com duas cabeças [...]/ [...] e são levados,/ surdos ao mesmo tempo que cegos, aturdidos, multidão indecisa [...]" (Parménides, frg.6)

4. Não será que com Platão constatamos que as formas "já lá estavam", co-presentes aos sensíveis, descobríveis pela ironia e maiêutica socráticas? Não será que com a contemporaneidade, um certo virtual do que existe sem vermos (genes...) "já lá está" também, mas com a physis? Não serão, neste sentido, o 'descobrir' e a 'descoberta', em termos científicos, perspectiváveis num plano outro que não o gnoseológico, dos universais, dos géneros, das formas, do Eidos, gregos, etc.? Não será que a descoberta destes corresponde à invenção da definição? Não será que no plano científico da modernidade, com Galileu, a descoberta se estabelece em analogia ou correspondência com a invenção? Não será o telescópio inventado por Galileu contribuidor para a descoberta, por verificação, do heliocentrismo?

5.  Não será o 'haver' da ordem do 'há' (do il ya - Levinas), do es gibt, do 'há', do 'dar-se', 'dá-se' do 'ser-o-aí' do Dasein (Heidegger)? Como questionar a physis de Aristóteles neste contexto?

6. O que se joga entre a co-presença noética (inteligíveis, eidos, formas) e aisthética (sensíveis, imagens...) em Platão (embora saibamos que se fale também da anterioridade das formas - pré-existência - 'descobertas' (?) pela reminiscência - anamnesis)  e a co-presença do virtual, simulacral (que é técnico e científico) das coisas descobertas mas invisíveis, algumas até já, desde há ums boas décadas, puras formulações matemáticas enquanto partículas (Heisenberg), etc.?



22/03/2013


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F.B. :  Não é uma questão, como de costume, mas uma avalanche de 'não será que'?
Onde eu encontro a minha dificuldade em entender a conexão entre elas [questões] é na noção de 'inversão do platonismo'.
Eu julgo que tal coisa nunca existiu, nem em Nietzsche nem em Deleuze, como aliás também nunca Marx inverteu Hegel. Deixando Deleuze de lado, tanto Marx como Nietzsche (e Freud, Heidegger, Derrida) após um gesto de inversão deslocaram-se para fora do paradigma do platonismo em sentido lato, para fora da ontoteologia, e o gesto de inversão foi já comandado por essa saída, não existiu sozinho, como um primeiro gesto que precisava dum segundo: foi um duplo gesto, se quiseres.
Postas assim as coisas, a questão da visibilidade e invisibilidade como tu a pões permanece platónica invertida? Se for o caso, excluem-se uma à outra e não vejo maneira de saber em que é que consiste a invisibilidade.  A visibilidade releva dos nossos olhos que tem limites, o que não quer dizer que não possa ser tida em conta pelos organismos (o sistema imunitário tem a ver com impedimento de bactérias, estas são unicelulares, são 'invisíveis' aos olhos mas tidos em conta pela evolução). O microscópio também releva da visibilidade, como os óculos dum míope. Quanto à invisibilidade, o eidos e outras abstracções que a definição produziu como 'inteligíveis', isto é, sem apoio no 'sensível', foi 'desconstruída' por Derrida já que ela só se entende enquanto diferença entre sensíveis (palavras sonoras ou escritas), a qual não só não é sensível (tratei disso há algum tempo: a diferença entre duas cores não é uma côr), como também não é inteligível, porque diferença entre sensíveis.
Onde as tuas questões terão pertinência, creio, é no facto de que, se um leigo vê ao microscópio uma célula', um gene, uma molécula, um  átomo, não sabe que vê isso, só vê desenhos, riscos, cores, pintura abstracta. O que significa que, assim como diante da experiência da queda duma bolinha por Galileu o criado dele só via coisas engraçadas (tipo 'ai que giro!) e não uma experiência científica, o microscópico só permite ver o que os cientistas nos dizem com a teoria científica e nesse sentido por certo que relevam de Platão e da invenção da definição. Haverá aí indissociabilidade dentre o microscópio, a molécula vista nele e a teoria bioquímica, entre o sensível, a técnica e a abstracção teórica, e não platonismo, não visibilidade e invisibilidade, não sensível e inteligível.


24/03/2013

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Adenda sobre o Sofista e o parricídio. No meu ensaio de leitura "Sócrates e Platão", em português e francês nos meus blogues, pareceu-me que o que chamamos platonismo teve o seu auge na República e no Banquete, e que o Parménides introduziu a sua crítica com a conivência de Aristóteles, o Teeteto que se lhe segue enveredando por um caminho pós-parmenidiano, o do saber sobre as coisas deste mundo: o par 'mesmo / outro' do Sofista será a descoberta grande desse caminhar (com a grelha de dicotomias inicial). O Timeu está muito perto da phusis de Aristóteles (ousia: hulê, morphê, sterêsis), mas se não chegou lá abriu-lhe o caminho, o discípulo foi-o mais do que se costuma dizer, creio. Mas não creio que se possa falar de 'relativismo sofista' num texto que busca justamente mostrar como é que é possível o discurso falso dos Sofistas!

24/03/2013

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