sábado, 13 de outubro de 2012

112. Filosofia e literatura







"O momento chegou para deixar de sobrestimar a filosofia e, por esse mesmo facto, de exigir-lhe demais. Tal é o que importa (o que nos é necessário proceder) na penúria actual do mundo: menos filosofia e mais atenção ao pensamento; menos literatura e mais cuidado dado à letra como tal." (Martin Heidegger, Carta sobre o Humanismo; traduzido de Questions III).

"Por agora é o Idiota: é ele que diz Eu, é ele que lança o cogito, mas é também ele que detém os pressupostos subjectivos ou traça o plano. O Idiota é o pensador privado por oposição ao professor público (o escolástico) (...)."
(Gilles Deleuze, O que é a Filosofia?, Trad. Margarida Barahona e António Guerreiro, Ed. Presença, p.57)



L.T. : Sabemos que o Heidegger não era muito dado à literatura.
Não sei se isto te choca, mas por vezes, mesmo quando estou a ler um texto do Heidegger, também me ocorre a impressão de entrar em qualquer coisa que raia o literário. Às vezes acontece-me estar a ler uma obra filosófica e de súbito começar a ver nascerem personagens. Talvez seja um pouco aquilo que o Deleuze quer dizer com "personagens conceptuais" (O que é a Filosofia?). Neste livro parece-me estabelecer-se uma relação entre o conceito, ou a criação de um conceito, e a personagem conceptual: "As personagens conceptuais [...] operam os movimentos que descrevem o plano de imanência do autor e intervêm na própria criação dos seus conceitos" (p.59); "Pode acontecer que a personagem conceptual só bastante raramente, ou por alusão, apareça por si mesma. No entanto, ela está lá; e mesmo inominada, subterrânea, tem de ser reconstituída pelo leitor (p.58)." Creio que nesta última citação o Deleuze encontra na criação dos conceitos o modo como através deles se manifestam, devêm - para empregar a sua linguagem - as personagens conceptuais.
Por outro lado, estou a lembrar-me da distinção que fazes entre os "três tipos linguístico-textuais nos grandes corpus literários do Ocidente", (§ 44 do La philosophie avec sciences... , na sequência da tua leitura do Benveniste, reenviando na nota de rodapé 27 para a 3ª parte do livro -  ). Embora refiras aí que estes tipos linguístico-textuais podem comunicar entre si ("Mais il faut convenir que chacun peut intervenir peu ou prou dans l'autre" (§ 44)).
Mas não deixo de perguntar-te se um dos motivos fortes dos teus textos é o de os manter gnoseológicos tanto quanto possível (neste caso, mais nos campos das filosofias e das ciências), tanto mais quando te dizes defensor da 'definição'.


10/10/2012

-


F.B. :  Eu não sou 'defensor da definição', ela não precisa de ser defendida, acho eu, a filosofia depende dela. Justamente enquanto texto gnosiológico, argumentos sobre essências definidas intemporais, incircunstanciais.
Sem verbos, apenas cópula ('é' ou plural 'são'). A história dela é a história de releituras incessantes dos seus debates, relançando-os, alterando-os, dando de passagem origem às ciências, e isso fez uma história, complexa, é claro, mas que veio a alterar a história ocidental, transformá-la, fenómeno único neste planeta (de que o cristianismo participou, mas justamente por ter sido enxertado de filosofia).
As narrativas dizem respeito a acontecimentos singulares: para Aristóteles relevam do acidental, não são susceptíveis de epistêmê. Os discursivos, de um 'eu' para um 'tu', falam da experiência ou saber de singulares, são a doxa de que Platão quis libertar o saber. Claro que nunca se arrancou completamente ao singular, ao histórico, mas isso funcionou historicamente. Mesmo o 'eu' do Cogito cartesiano é um conceito filosófico, deu o sujeito, a consciência. Ora, a aceleração da história com o início da revolução industrial e as revoluções políticas, a Francesa e a Americana, trouxe-a, à história, à filosofia: Hegel, Marx, Nietzsche, Heidegger. Estes dois últimos deram um passo filosófico para o 'antes' da definição, para fora do par sujeito / objecto, mas esse passo, se se aproximou da literatura, não deixou de ser filosófico na sua problemática. Não foi 'contra' a definição, mas indagar além dela. O Heidegger namorou Hölderlin e outros poetas, mas não fez literatura (nem Nietzsche, que mais parece, aonde filosofia e literatura se distinguem mal). Quanto ao Derrida, o motivo da escrita era 'maldito' pela filosofia, justamente por ser literário e cheio de ambiguidades, foi donde a definição saiu; o que ele fez foi levar esse motivo a sério, o motivo de texto e de diferença, e revolver a filosofia relendo a escrita dos textos filosóficos, indagando da sua escrita e dos percalços que ela provoca à filosofia que se queria 'pura', racional, não 'letra', só pensamento; mas também leu textos literários, poéticos, dos mais difíceis.


13/10/2012


-

 Imagem: obra plástica de Luís de Barreiros Tavares - 2012

Sem comentários:

Enviar um comentário