quinta-feira, 19 de abril de 2012

61. Heidegger e Derrida.






61. Heidegger e Derrida






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F.B. : Imagina que me perguntavas: como é que tu vês a relação do teu trabalho com os pensamentos do Heidegger e do Derrida de que te reclamas? É claro para quem te ler e os ler a eles, que têm estatutos bem diferentes.
Acontece que o lançamento recente do Heidegger, pensador da Terra me fez pensar na questão, estive a reler uma entrevista do Derrida pelo Nancy, "'Il faut bien manger' ou le calcul du sujet", Points de suspension, Galilée, 1992, para me inspirar. A questão tem a ver com o facto de se tratar de dois pensadores que se iniciaram através da fenomenologia do Husserl mas depois chegaram a um estatuto, por assim dizer, meta-fenomenológico e de eu pretender que, através deles e das principais descobertas científicas do século XX, é possível e fecundo reformular a fenomenologia fora do 'sujeito' husserliano. Primeira coisa: não creio que nenhum deles tenha cortado com a fenomenologia de maneira que não seja possível que eles iluminem as tais descobertas científicas (estas não é discutível que têm a ver com 'fenómenos'). Nomeadamente: a diferença ontológica heideggeriana, entre Ser (Ereignis, em 62) e entes, permite considerar estes como fenómenos (em "A questão dos exemplos", tratei disso há poucos dias), assim como a différance derridiana tem uma dimensão económica e outra excessiva, singular, que permite encarar fenómenos. Ainda que nenhum deles se tenha interessado sobremaneira por isso, mas tinham-no no horizonte (Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, cap. 13, §§ 58-60). Esta fenomenologia iluminada por eles, feita com eles, pode ajudar as ciências a considerarem o fora do laboratório em que se confinam sem darem por isso, a reformularem o seu discurso em consequência: o laboratório reduz o fenómeno a analisar, criando condições de determinação que não existem nas cenas da chamada realidade, redução e determinação essas que são essenciais às ciências. Ora, as tais descobertas, vista fenomenologicamente, esclarecem as regras dessas cenas.Mas também creio que issto se torna interessante para a desconstrução derridiana: seja a dita entrevista que põe a questão do que substitui o 'sujeito', ou melhor a sua problemática, após ser desconstruído; a fenomenologia proposta permite, parece-me, 'esclarecer' alguns pontos do 'terreno' digamos em torno dos quais eles andam como que sem saída. O 'sujeito', tal como a 'alma' a que ele sucede, exclui o corpo e assim como a neurologia (Damásio) ganharia em considerar o 'ser no mundo' para perceber o funcionamento do cérebro fora dele, no mundo, também o questionamento de Derrida ganharia em ter em conta a biologia para o que procura no 'animal', que é nessa entrevista o que substitui o 'corpo' (palavra que ele evita: quando o conheci, explicou-me que falando de 'corpo', a 'alma' vem atrás) por exemplo, perceber que um macaco e uma formiga, ambos sendo 'animais', jogam de maneira totalmente diferente em relação à questão do sujeito humano, um é comparável, o outro não, de maneira que a questão 'é preciso comer' faz parte essencial dos 'sujeitos humanos' tanto como dos 'animais', de 'todos' aliás. Também a consideração da aprendizagem dos usos da tribo como instituindo os sujeitos humanos poderia permitir entender melhor o discurso dum 'sujeito' que vai se alterando à medida dos usos que aprende; ou a consideração da diferença entre um discurso em 'eu' (como o Cogito, origem próxima do sujeito) e um discurso gnosiológico. É certo que não pretendo que ter essa fenomenologia em conta fosse decisivo para a desconstrução propriamente dita enquanto operação de pensamento de Derrida, mas alargaria os textos a considerar, e nisso ele é inimitável, verdadeiramente prodigioso.A fenomenologia que propus pretende contribuir para uma reformulação pós-desconstrutiva, reconstrutiva, da tradição sistemática do saber ocidental, que está hoje em dia estilhaçada entre numerosas disciplinas que se ignoram umas às outras e ignoram também a tradição filosófica donde vêm e que poderá ajudar a esclarecer o que elas buscam. Pensar sempre foi querer 'economizar' saberes.
19/04/2012

Nancy falando de Derrida:


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Cortesia Youtube:







Imagem: pintura - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

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