sábado, 6 de julho de 2013

145. Continuação - do corpo








L.T. : 1. “O corpo é no Ocidente uma noção metafísica.” A partir da tua afirmação creio poder evocar-se a célebre passagem do Caledónio citada pelo José Gil, e sobre qual cheguei a conversar um pouco com ele.
 "O corpo comunitário implica uma vivência do corpo singular como não separado, não isolado das coisas e dos outros corpos. O «corpo próprio» que a fenomenologia erigiu em conceito, é um produto do Ocidente - não é o que quer dizer o Caledónio cristianizado ao qual o missionário Leenhardt perguntava: «Em suma, é a noção de espírito que nós trouxemos para o vosso pensamento?» e que respondia: «O espírito? Oh! Vós não nos trouxestes o espírito. Já conhecíamos a existência do espírito. (...) O que vós nos trouxestes foi o corpo» [Leenhardt, M., (1947), Do kamo. La personne et le mythe dans le monde mélanésien, Gallimard, Paris, p.212]."
José Gil, Metamorfoses do Corpo, Lisboa, Regra do Jogo, 1980, p.48.
José Gil, Metamorfoses do Corpo, Lisboa, Relógio D'Água, 1997, p.58. Vj. também a entrada “Corpo”, por José Gil, na enciclopédia Einaudi.

Vê a mensagem 82 do bLogos sobre este tema e com esta citação.
Ora, quando o Caledónio responde ao missionário Leenhardt que o que lhe trouxeram foi o corpo e não o espírito (“Já conhecíamos a existência do espírito”), isso pressupõe já um binómio espírito /corpo em contextos que nos poderão escapar. Desconhecemos se esta versão do Leenhardt corresponde àquilo que o Caledónio realmente disse ou queria dizer. É que trata-se aqui de uma versão com algumas tonalidades ocidentais por parte de quem testemunhou ou recebeu o testemunho desse episódio e do que nele foi dito. Com efeito, desconhecemos o que o Caledónio entende propriamente por ‘corpo’ e por ‘espírito’. E se ele fala do corpo, ou se naquele momento pode falar dele, já teria a sua vivência, ou a sua noção, se se quiser. Embora diferente, bem como a do espírito. Quer dizer, uma vivência do corpo e do espírito certamente diferente. Daí que - e isto merece ser mais pensado - um seja tomado pelo outro. Ora, creio que o que está em causa e dificulta esta discussão é o seguinte. O que o Caledónio entende como ‘corpo’ é provavelmente o que o missionário ocidental, que o interpela, entende como ‘espírito’, e vice-versa. Opera-se uma troca. Só uma troca? Não. Esta troca, por si só, não esclarece a diferença. Não se trata só de uma troca, menos ainda de uma troca simétrica. Seria muito fácil uma leitura assim. É uma questão importante do meu ponto de vista. Ela pediria muita tinta e muito papel. Deixo-a em aberto com estas observações.
Também gosto de dar um arzinho da minha graça.
Coloquei uma questão semelhante sobre o ‘corpo’ ao José Trindade Santos que conheci pessoalmente há uns meses e a quem fiz duas entrevistas. Está no escrita-fone.
2. Virando a página e tentando manter o fio condutor. Cito uma passagem de um texto do Bragança de Miranda, Corpo e Imagem, Vega, 2008, p.84:

A formação do «corpo» enquanto categoria da metafísica começara a esboçar-se no mínimo desde os gregos, caracterizando-se por uma divisão essencial: entre «corpo e alma», antigamente, e entre corpo e «consciência», nos modernos. Esta divisão constitui sempre uma linha de combate, altamente dramática, e que toda a história sublinhou. É em torno desta divisão que se opera a crise do «corpo». Que, afinal, mais não é do que a crise da forma moderna do corpo, que tem sobrevivido mal aos imanentismos científicos e outros. Para que a «alma» se tornasse num mero fenómeno neurofisiológico bastou um passo, dado alegremente por muita gente (97). Desaparecida a «alma», o corpo fica reduzido ao orgânico e às imagens em que se pluraliza.

(97) O sucesso do livro de António Damásio O Erro de Descartes (1994) revela que se trata de um resultado largamente esperado. Mesmo uma filósofa como Catherine Malabou tem dificuldade em rebater o fisicalismo contemporâneo, procurando encontrar-lhe alternativas no próprio cérebro, que realmente se tornou num campo de batalha. Cf. Catherine Malabou (2004), Que faire de notre cerveau?, Paris, Bayard.

Talvez a este propósito, estou a lembrar-me daquela frase ou ideia lapidar do António Damásio que reza mais ou menos assim: “Se sinto, existo, logo posso pensar”.
Agora, Fernando, uma questão. Como o próprio nome indica, ‘fisicalismo’ comporta um sentido do que é da ordem do físico, reenviando mesmo para a etimologia de phusis, na acepção das ciências naturais, físicas (?) mantendo-se, parece-me, uma certa tensão com algumas ambiguidades entre, precisamente, o que é da ordem do físico e da ordem do conceptual. É provável que o fisicalismo atravesse, em parte, várias áreas do saber actuais, entre elas algumas ciências, neurociências, etc. bem como algumas vertentes filosóficas do campo epistemológico e cognitivo, como se diz muito hoje. Não sei como vês o “fisicalismo” neste possível contexto e se o consideras ou não viável, e como? 

26/07/2013

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F.B. :  "O que o Caledónio entende como ‘corpo’ é provavelmente o que o missionário ocidental, que o interpela, entende como ‘espírito’, e vice-versa. Opera-se uma troca. Só uma troca? Não. Esta troca, por si só, não esclarece a diferença. Não se trata só de uma troca, menos ainda de uma troca simétrica". Não entendo o que te levou a escrever isto. O José Gil cita essa conversa a propósito do que chama 'corpo comunitário' e que está mais perto do que creio ser o 'corpo' dos humanos como 'seres no mundo' (em nós com diferenciações de civilização, claro), se a palavra ocidental 'corpo' se prestasse a isso e não estivesse tão marcada pela sua oposição à alma, pela definição que justamente criou os limites (fines) ao corpo, pondo-os na pele. É aí que me diferencio do Bragança de Miranda: se houve desaparecimento da 'alma', como ele crê, não desapareceu enquanto oposta ao corpo, o nosso corpo guarda a alma, o sujeito, a consciência. Basta ler qualquer neurologista, sobretudo quando se quer fisicalista, para se ver que a 'alma' está na cabeça deles, nas questões que põem ao cérebro, à relação dele com o corpo, como se não fosse parte dele, etc. Quando o Damásio, no seu último livro, diz da 'mente' que ela é a rede neuronal a que só o próprio tem acesso, ele avançou fortemente para se sair da oposição corpo / alma em neurologia, mas ao não dar importância à aprendizagem nem à linguagem ficou a meio caminho, isto é, continuou 'encorpado' na pele. É por isso que acho que a palavra 'corpo' pura e simplesmente não pode ser utilizada em ciências ou filosofia, não se livra do seu passado.

Quanto ao fisicalismo, trata-se da pretensão dos físicos de serem capazes de explicar toda a realidade do mundo com as leis da física; ele reside na incapacidade de sair do laboratório para as cenas históricas, respectivamente da gravitação (astros), da alimentação (vivos), da habitação (sociedades humanas) e da inscrição (filosofia e ciências). As leis da gravitação valem em todas as outras cenas, que dela sairam, mas as suas ciências não sabem das leis que se lhe seguem, da vida (a bioquímica não chega para a biologia), como as da alimentação não sabem das leis seguintes, etc. Por definição de cena: saindo duma antecedente como excesso, uma nova estabilidade instável, esta tem regras que escapam às ciências da cena anterior, como prova aliás as diferenças de espécies (que a física nem a química explicam), ou as diferenças das sociedades e das línguas (que a biologia não explica).


O fisicalismo é um caso óbvio de reducionismo, que reduz tudo o que escapa ao seu laboratório. Tanto quanto percebo, eles estão limitados pelo tipo de causa / efeito que testam laboratorialmente e com que 'explicam' as equações cujas variáveis se verificam com os resultados experimentais, em que creio que reside o núcleo essencial da sua cientificidade. Assim, creio que o determinismo dos genéticos que queriam, por exemplo, encontrar genes da inteligência, genes da homossexualidade, é um fisicalismo, que não percebe que os genes se limitam a sintetizar as proteínas das suas próprias células especializadas e não parecem dar nenhuma importância à anatomia que os biólogos clássicos estudaram, e que é a continuação do trabalho dos genes. Li vários livros de biólogos muito importantes, nenhum fala nisso, como se a descoberta da genética molecular tivesse absorvido toda a biologia, o que é um fisicalismo bioquímico.


O caso mais flagrante de redução fisicalista é a da linguagem, se se sabe que Saussure e depois Derrida encontraram o seu segredo na diferença entre sons, e não nos sons. Um fisicalista é incapaz de o entender, só pode reduzir, mas sem conseguir explicar as diferenças entre as línguas. A acústica, região da física, não explica nada das diferentes línguas.

Também é incapaz de entender o motivo fenomenológico de 'duplo laço' (como aliás  qualquer motivo filosófico), tive uma vez uma amostra com o João Resina Rodrigues, físico e filósofo, professor de relatividade e mecânica quântica (livros sobre ambas) no IST e doutor em filosofia por Lovaina, muito mais inteligente do que eu, sem dúvida nenhuma, e que não era fisicalista, é claro, não foi capaz de entender o duplo laço dum automóvel: para ele as peças jogam umas sobre as outras, causa e efeito, e mais nada, era o laboratório a raciocinar. 

Isto é tudo dito rapidamente. Para se entender, é bom ter presente ao menos o MANIFESTO do meu blogue filosofia com  ciências.
29/06/2013
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Imagens: desenhos - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

terça-feira, 25 de junho de 2013

143. 'Definição', 'alta resolução', 'alta definição', 'ultra-alta-definição'... "Modelo de ultra-alta-definição do cérebro"






L.T. :


“Novo atlas 3D do cérebro humano tem uma resolução nunca antes atingida” (título)
“Este modelo 3D de “ultra-alta-definição” (…) publicado hoje na revista Science
“Tornam-se, por exemplo, visíveis, pela primeira vez, as diversas camadas do córtex cerebral, onde se processa o pensamento (…)” (meti itálicos)
Ana Gerschenfeld, no Público de hoje (Quinta-feira, 21/06/2013)

1. Tens dedicado algum tempo à questão da ‘definição’ no contexto filosófico que começa com Sócrates, Platão e Aristóteles, neste último consumando-se e tematizando-se, se dizer se pode, como ‘invenção’, segundo as tuas palavras (“a invenção da definição”), com todo o traçado que se foi trilhando na tradição greco-europeia, e mesmo mundial, global, hoje. Há dias estava para pôr-te a seguinte questão, que agora acho mais a propósito aproveitando o artigo de hoje  da Ana Gerschenfeld no Público. Nesta linha, como vês, precisamente, a questão da ‘definição’  e expressões porventura dela derivadas, no contexto das novas tecnologias, não dissociadas, contudo, das ciências naturais, físicas, neurológicas, etc., como mostram as descobertas publicadas neste artigo? A saber, a relação da ‘definição’, no contexto de uma certa tradição, com as expressões “alta definição”, “alta resolução”, “tecnologia de ponta”, todas elas de alguma maneira, análogas, acrescentando a que vem no artigo mencionado acima, mais que superlativamente, diríamos: “ultra-alta-definição”?
2. E voltando à questão da oposição sujeito /objecto, muitas vezes estudada por ti, bem como ao problema do ‘cérebro’ como ‘objecto’ - ou como ‘coisa’ (coisificação) - que coloquei há dias numa outra mensagem. Não esquecer todavia que se trata também de um ‘mapeamento’ (“novo atlas”), lembrando-me um pouco do Deleuze. Evidentemente que são extraordinárias todas estas grandes transformações, todos estes trilhos que estamos a percorrer hoje, no âmbito, neste caso, destas ciências, mas também da técnica e das novas tecnologias, na complexidade das suas articulações. E são elas que de facto nos fazem levantar questões como estas e muitas outras que desconhecerei totalmente.



21/06/2013


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F.B. : Se bem entendo, a definição em desenho ou fotografia é um prolongamento da escala num mapa, quanto maior mais próximo está do plano do território, desde um país, para a cidade, a rua, a planta duma casa em arquitectura, até se chegar a 1/1, que é a escala duma coisa no seu tamanho natural. A definição será o nível de distinção entre os vários traços da coisa, numa escala determinada, no caso do cérebro será mais 'pequeno' do que o cérebro, mas susceptível de zoom que aproxime mais e mais, muito maior quando permite apanhar um neurónio maior... Definição = distinção de elementos da coisa.
A definição filosófica ou científica, em linguagem duplamente articulada, sendo susceptível também dum certo zoom, contedo mais ou menos traços definitórios...
22/06/2013
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Imagem: desenho - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

segunda-feira, 17 de junho de 2013

142. Mais algumas discussões sobre Heidegger e outros...










L.T. : Se bem entendi, seguindo a tua leitura, o Ereignis dá o acontecimento e ser (?) no jogo do aleatório, do acaso e da necessidade, do aleatório e do múltiplo dos acontecimentos, prévios a ele, ao uno e ao ser (vj. Heidegger, Pensador da Terra). Gostava de perguntar-te se o Ereignis - não dissociando tempo e ser (em Zeit und Sein) -  sendo algo outro que não o ser no sentido de Ser e Tempo (em Sein und Zeit), mantém alguma possibilidade de compreensão e relação com o 'horizonte', prévio às coisas (Heidegger), demarcando-se do sentido de horizonte em Husserl que demanda o objecto já como tal.

13/06/2013

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F.B. : Não sei.

13/06/2013

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L.T. : Tinha-me esquecido de pôr o assunto na mensagem. Mas boa malha na resposta.

14/06/2013

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F.B. : Não sei bem como é que a questão do horizonte se punha em Ser e Tempo e muito menos no Husserl. Antes das coisas? sim, a sala antes dos móveis e das pessoas que lá estão, mas esse 'antes' é 'com' elas. Não há horizonte sem coisas, como mostra bem a citação do Condillac de que te falei, que é algo de extraordinário: o bébé que nasce não vê nada, não sabe ainda ver, vai aprendendo. Grande novidade no pensamento europeu! Chega para derrotar Kant!
Mas o horizonte é um motivo que diz o limite inatingível e deslocável da percepção visual. O que quer dizer que haverá também uns tantos quilómetros como horizonte de ouvir certos ruídos, o fogo além do horizonte da mão, e por aí fora, várias horizontes. O ser no mundo será susceptível de horizonte, o das suas possibilidades nesse seu mundo.


A questão do Ereignis em relação ao Ser de Ser e Tempo é para mim mais interessante, já que tudo se passa como se o 'ser' em Tempo e Ser, sendo substituído no lugar de doação retirada pelo Ereignis, voltasse a ser o 'ser do ente' clássico, a par do tempo como 'tempo do ente' (e não o  tempo dos relógios). Mas como é com o 'espaço' que o tempo faz parceria, esse 'ser e tempo' final será por fim a ousia incorporando os acidentes (temporais), Aristóteles e toda a filosofia ocidental ultrapassados. 

Derrida deixará cair a categoria de 'ser': a différance e a trace são movimento (como o Ereignis) que 'faz' diferenças (repetidas e excedendo essa repetição) espácio temporalizadas com relação estrutural ao outro (diferendo incluído) e inscrição (trabalho na origem da linguagem). 
Com ele, muda o mundo! por isso não o suportam os filósofos. 
Devo dizer que, embora me custe, é bem feito! pois que mudar o mundo é que não se faz.
E foi um dos grandes gostos da minha vida!

14/06/2013




Imagem: desenho - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

141. Continuação - algumas notas sobre Kant, dentro dos possíveis, etc...











L.T. : 2. Sobre a questão das sensações em Kant que referiste, embora perceba muito pouco de Kant, creio que não se trata propriamente de sensações mas de 'impressões sensíveis', pelo menos remetendo para o tal caos do 'diverso' não implicando propriamente ou previamente "cor, som, rijo, etc.", como disseste. O que torna a coisa muito complexa, parece-me.

Quando escreves, "É o mundo em que ele [o astrónomo] é e onde a demonstração é possível. Mas de madrugada e ao pôr do sol, ele vê o sol nascer e pôr-se como ser no mesmo mundo que qualquer de nós", poder-se-á dizer que se trata de dois planos diferentes do real?

13/06/2013 



Imagem: desenho - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares