L.T. : 1. “O corpo é no Ocidente uma noção metafísica.” A partir da tua afirmação creio poder evocar-se a célebre passagem do Caledónio citada pelo José Gil, e sobre qual cheguei a conversar um pouco com ele.
"O corpo comunitário implica uma vivência do corpo singular como não separado, não isolado das coisas e dos outros corpos. O «corpo próprio» que a fenomenologia erigiu em conceito, é um produto do Ocidente - não é o que quer dizer o Caledónio cristianizado ao qual o missionário Leenhardt perguntava: «Em suma, é a noção de espírito que nós trouxemos para o vosso pensamento?» e que respondia: «O espírito? Oh! Vós não nos trouxestes o espírito. Já conhecíamos a existência do espírito. (...) O que vós nos trouxestes foi o corpo» [Leenhardt, M., (1947), Do kamo. La personne et le mythe dans le monde mélanésien, Gallimard, Paris, p.212]."
José Gil, Metamorfoses do Corpo, Lisboa, Regra do Jogo, 1980, p.48.
José Gil, Metamorfoses do Corpo, Lisboa, Relógio D'Água, 1997, p.58. Vj. também a entrada “Corpo”, por José Gil, na enciclopédia Einaudi.
Vê a mensagem 82 do bLogos sobre este tema e com esta citação.
Ora, quando o Caledónio responde ao missionário Leenhardt que o que lhe trouxeram foi o corpo e não o espírito (“Já conhecíamos a existência do espírito”), isso pressupõe já um binómio espírito /corpo em contextos que nos poderão escapar. Desconhecemos se esta versão do Leenhardt corresponde àquilo que o Caledónio realmente disse ou queria dizer. É que trata-se aqui de uma versão com algumas tonalidades ocidentais por parte de quem testemunhou ou recebeu o testemunho desse episódio e do que nele foi dito. Com efeito, desconhecemos o que o Caledónio entende propriamente por ‘corpo’ e por ‘espírito’. E se ele fala do corpo, ou se naquele momento pode falar dele, já teria a sua vivência, ou a sua noção, se se quiser. Embora diferente, bem como a do espírito. Quer dizer, uma vivência do corpo e do espírito certamente diferente. Daí que - e isto merece ser mais pensado - um seja tomado pelo outro. Ora, creio que o que está em causa e dificulta esta discussão é o seguinte. O que o Caledónio entende como ‘corpo’ é provavelmente o que o missionário ocidental, que o interpela, entende como ‘espírito’, e vice-versa. Opera-se uma troca. Só uma troca? Não. Esta troca, por si só, não esclarece a diferença. Não se trata só de uma troca, menos ainda de uma troca simétrica. Seria muito fácil uma leitura assim. É uma questão importante do meu ponto de vista. Ela pediria muita tinta e muito papel. Deixo-a em aberto com estas observações.
Também gosto de dar um arzinho da minha graça.
Coloquei uma questão semelhante sobre o ‘corpo’ ao José Trindade Santos que conheci pessoalmente há uns meses e a quem fiz duas entrevistas. Está no escrita-fone.
2. Virando a página e tentando manter o fio condutor. Cito uma passagem de um texto do Bragança de Miranda, Corpo e Imagem, Vega, 2008, p.84:
A
formação do «corpo» enquanto categoria da metafísica começara a esboçar-se no
mínimo desde os gregos, caracterizando-se por uma divisão essencial: entre
«corpo e alma», antigamente, e entre corpo e «consciência», nos modernos. Esta
divisão constitui sempre uma linha de combate, altamente dramática, e que toda
a história sublinhou. É em torno desta divisão que se opera a crise do «corpo».
Que, afinal, mais não é do que a crise da forma moderna do corpo, que tem
sobrevivido mal aos imanentismos científicos e outros. Para que a «alma» se
tornasse num mero fenómeno neurofisiológico bastou um passo, dado alegremente
por muita gente (97). Desaparecida
a «alma», o corpo fica reduzido ao orgânico e às imagens em que se pluraliza.
(97) O
sucesso do livro de António Damásio O Erro de Descartes (1994) revela que se
trata de um resultado largamente esperado. Mesmo uma filósofa como Catherine Malabou
tem dificuldade em rebater o fisicalismo contemporâneo, procurando
encontrar-lhe alternativas no próprio cérebro, que realmente se tornou num
campo de batalha. Cf. Catherine Malabou (2004), Que faire de notre cerveau?, Paris,
Bayard.
Talvez a este propósito, estou a lembrar-me
daquela frase ou ideia lapidar do António Damásio que reza mais ou menos assim:
“Se sinto, existo, logo posso pensar”.
Agora, Fernando, uma questão. Como o
próprio nome indica, ‘fisicalismo’ comporta um sentido do que é da ordem do
físico, reenviando mesmo para a etimologia de phusis, na acepção das ciências naturais, físicas (?) mantendo-se, parece-me,
uma certa tensão com algumas ambiguidades entre, precisamente, o que é da ordem
do físico e da ordem do conceptual. É provável que o fisicalismo atravesse, em
parte, várias áreas do saber actuais, entre elas algumas ciências, neurociências, etc.
bem como algumas vertentes filosóficas do campo epistemológico e cognitivo,
como se diz muito hoje. Não sei como vês o “fisicalismo” neste possível
contexto e se o consideras ou não viável, e como? 26/07/2013
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F.B. : "O que o Caledónio entende como ‘corpo’ é provavelmente o que o missionário ocidental, que o interpela, entende como ‘espírito’, e vice-versa. Opera-se uma troca. Só uma troca? Não. Esta troca, por si só, não esclarece a diferença. Não se trata só de uma troca, menos ainda de uma troca simétrica". Não entendo o que te levou a escrever isto. O José Gil cita essa conversa a propósito do que chama 'corpo comunitário' e que está mais perto do que creio ser o 'corpo' dos humanos como 'seres no mundo' (em nós com diferenciações de civilização, claro), se a palavra ocidental 'corpo' se prestasse a isso e não estivesse tão marcada pela sua oposição à alma, pela definição que justamente criou os limites (fines) ao corpo, pondo-os na pele. É aí que me diferencio do Bragança de Miranda: se houve desaparecimento da 'alma', como ele crê, não desapareceu enquanto oposta ao corpo, o nosso corpo guarda a alma, o sujeito, a consciência. Basta ler qualquer neurologista, sobretudo quando se quer fisicalista, para se ver que a 'alma' está na cabeça deles, nas questões que põem ao cérebro, à relação dele com o corpo, como se não fosse parte dele, etc. Quando o Damásio, no seu último livro, diz da 'mente' que ela é a rede neuronal a que só o próprio tem acesso, ele avançou fortemente para se sair da oposição corpo / alma em neurologia, mas ao não dar importância à aprendizagem nem à linguagem ficou a meio caminho, isto é, continuou 'encorpado' na pele. É por isso que acho que a palavra 'corpo' pura e simplesmente não pode ser utilizada em ciências ou filosofia, não se livra do seu passado.
Quanto
ao fisicalismo, trata-se da pretensão dos físicos de serem capazes de
explicar toda a realidade do mundo com as leis da física; ele reside
na incapacidade de sair do laboratório para as cenas históricas,
respectivamente da gravitação (astros), da alimentação (vivos), da
habitação (sociedades humanas) e da inscrição (filosofia e ciências). As
leis da gravitação valem em todas as outras cenas, que dela sairam, mas
as suas ciências não sabem das leis que se lhe seguem, da vida (a
bioquímica não chega para a biologia), como as da alimentação não
sabem das leis seguintes, etc. Por definição de cena: saindo duma
antecedente como excesso, uma nova estabilidade instável, esta tem
regras que escapam às ciências da cena anterior, como prova aliás as
diferenças de espécies (que a física nem a química explicam), ou as diferenças das sociedades e das línguas (que a biologia não explica).
O
fisicalismo é um caso óbvio de reducionismo, que reduz tudo o que
escapa ao seu laboratório. Tanto quanto percebo, eles estão limitados
pelo tipo de causa / efeito que testam laboratorialmente e com que
'explicam' as equações cujas variáveis se verificam
com os resultados experimentais, em que creio que reside o núcleo
essencial da sua cientificidade. Assim, creio que o determinismo dos
genéticos que queriam, por exemplo, encontrar genes da inteligência,
genes da homossexualidade, é um fisicalismo, que não percebe que os
genes se limitam a sintetizar as proteínas das suas próprias células
especializadas e não parecem dar nenhuma importância à anatomia que os
biólogos clássicos estudaram, e que é a continuação do trabalho dos
genes. Li vários livros de biólogos muito importantes, nenhum fala
nisso, como se a descoberta da genética molecular tivesse absorvido toda
a biologia, o que é um fisicalismo bioquímico.
O
caso mais flagrante de redução fisicalista é a da linguagem, se se sabe
que Saussure e depois Derrida encontraram o seu segredo na diferença
entre sons, e não nos sons. Um fisicalista é incapaz de o entender, só
pode reduzir, mas sem conseguir explicar as diferenças entre as línguas.
A acústica, região da física, não explica nada das diferentes línguas.
Também
é incapaz de entender o motivo fenomenológico de 'duplo laço' (como
aliás qualquer motivo filosófico), tive uma vez uma amostra com o João
Resina Rodrigues, físico e filósofo, professor de relatividade e
mecânica quântica (livros sobre ambas) no IST e doutor em filosofia por
Lovaina, muito mais inteligente do que eu, sem dúvida nenhuma, e que não
era fisicalista, é claro, não foi capaz de entender o duplo laço dum automóvel: para ele as peças jogam umas sobre as outras, causa e efeito, e mais nada, era o laboratório a raciocinar.
Isto é tudo dito rapidamente. Para se entender, é bom ter presente ao menos o MANIFESTO do meu blogue filosofia com ciências.
29/06/2013
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