sábado, 20 de agosto de 2011

28. Definição e percepção ... Husserl, Heidegger. O significante em Deleuze.


Husserl

Heidegger


A diferença entre Husserl e Heidegger*
"17. O ponto fulcral, aparentemente mínimo, mas que implicará a incompatibilidade entre as duas filosofias, é o da distinção entre intuição sensível e intuição categorial, ou seja, entre sensibilidade e entendimento (2), que levará Heidegger a contestar o primado da percepção. Porquê em Husserl se trata sempre de ‘objectos’, primariamente de ‘coisas’? Estas dão-se sempre num horizonte de outras coisas não intuídas actualmente pela consciência (que poderá actualizá-las noutro acto de intuição) e Husserl tematizará este horizonte como ‘mundo vital’; mas mesmo este será dito ser a soma dos objectos duma experiência. Ou seja, o primado absoluto da percepção duma coisa implica que esta esteja já implicita­mente determinada (em sentido etimológico, delimitada), destacada do horizonte, isto é, determinada como objecto. O que opera pela calada tal determinação é já o nível categorial, visando o estado-de-coisas, é já o juízo orientado pela preo­cupação husserliana com a fundamentação das ciências. A inver­são, que Heidegger opera é a seguinte: o horizonte é prévio à determinação das coisas dentro dele, o humano ‘encontra’ o horizonte antes de encontrar objectos, a um nível prévio ao da própria percepção. Husserl nunca acedeu a este nível prévio, que será o da hermenêutica heideggeriana, ficou sempre a um nível segundo, que Heidegger dirá apofântico, o dos lógicos, isto é, o da filosofia ocidental desde Platão, que determinou o ‘ser’ do ente, abrindo o caminho a Descartes e ao ‘objecto’ em sentido moderno europeu e, por via de consequência, ao sujeito e à consciência. Husserl não conseguiu romper com esta filosofia moderna, com o idea­lismo: a oposição sujeito-objecto continuou, como condição do carácter absoluto da consciência e do ego. Heidegger deixará a consciência, radicalizará a intencionalidade alar­gando­-a, se dizer se pode. É aonde se insere o seu tema primordial do ser-no-mundo em Ser e Tempo (3), o Dasein, o ente humano como ek-sis­tência, como -sistendo sempre-já fora (ex-) no Mundo, estruturalmente aberto a ele, ‘aí’ (Da-) sendo (-sein), ser-o-aí no Mundo.
18. Ruptura, pois, mas com uma dívida decisiva. Heidegger recebeu de Husserl a diferença entre o ‘ser’ e o ‘é’ da cópula do juízo. Na intuição categorial, como condição do juízo e da respectiva cópula, ligando ‘sujeito’ e ‘predicado’, é dado o ‘ser’ como articulando o ‘estado-de-coisas’, sem que tal ‘ser’ seja ‘visto’ sensivelmente na per­cepção de cada coisa, de cada ente. É o que justamente per­mite que o horizonte em que as coisas estão já articuladas seja prévio a cada uma delas enquanto entes de que o discurso fala. O ser é pois mais largo do que o ente; o que Husserl proporcionou a Heidegger (4) foi o haver algo mais do que a mera diversidade entre coisas, a diferença entre elas articula-as em horizonte e as(Heidegger jogará frequentemente com a etimologia da locução alemã para dizer ‘há’, es gibt, à letra ‘dá-se’). O ‘ser’ é, pois, diferença, mais além do que o ‘ser’ dos entes. E será o lugar decisivo da abertura que especifica o ente hu­mano: este difere de qualquer outro ente, coisa ou animal, por poder interrogar pelo sentido do seu ser enquanto tal, en­quanto abertura ao mundo no mundo, resposta ao seu apelo (§ 22).
(...)
23. O que é fundamental perceber é que este nível não tem nada de ‘substancial’, assim como é prévio aos conceitos da modernidade europeia de ‘sujeito’ e ‘objecto’, como aos de ‘alma’ e ‘corpo’. O ser que se abre é ‘apenas’, se se pode dizer, de possíveis, dos quais só um poderá ser efectivado. O Ser, dirá Heidegger parado­xalmente, é Nada, substancialmente nada, não é ‘ente’. É transcendente (7) ao ente do ‘ser-o-aí’, é-lhe prévio, funda-o. Mas como abismo, isto é, sem solo em que se possa cons­truir, não ab-soluto; é a liberdade, a possibilidade de esco­lher, de metamorfose, que abre ao ser, diferente do que cada humano é efectivamente, onticamente. É o tema crucial da di­ferença ontológica. Uma era filosófica nova se abre, com uma tarefa precisa, ligada à de abrir novos futuros ao pensa­mento: a de destruir a tradição substancialista, da ousia grega, da determinação ou definição do ser como ser do ente, do sujeito e do objecto, etc. Filosofia da diferença, da finitude, a qual já não é apenas limite, definição, determinação, mas também indeterminação: finitude e liberdade, se se qui­ser. É isso a temporalidade humana, que comanda o modo de ser próprio (autêntico) do humano aberto.
(...)
26. Farei intervir aqui o pós-heideggeriano Derrida, cujos primeiros textos publicados são consagrados a Husserl (9). Num deles, mostra como a percepção originária de Husserl não pode dar conta da relação que o instante em que se dá tem necessariamente com o instante anterior e com o instante posterior, isto é, como ela é incompatível com a di­mensão temporal (como acrescentar pontos a um ponto para formar uma linha?). Mostra como essa dificuldade é mascarada pelo carácter derivado do signo em relação à percepção, esta fundando o sentido do signo como ‘expressão’, pura de tudo o que seja ‘indício’, da ordem do corporal, do sonoro (Derrida dirá que toda a fenomenologia husserliana será co­mandada pela diferença alma/corpo). A crítica derridiana não coincide, pois, com a de Heidegger, não abandona como este a epochê de Husserl, mas como que a desloca: a diferença entre a idealidade pura (em Husserl orientada para a essência científica) e o empírico do mundo, entre o aparecer do fenómeno e o objecto aparecendo, será agora aplicada ao som linguístico para caracteri­zar com rigor o conceito de significante de Saussure, essencialmente diferente dos sons ditos e ouvidos. O significante, nem sonoro nem gráfico, será constituído apenas de diferenças entre significantes, ou seja, será radicalmente desontologizado de ‘substância’, em eco, pois, a Heidegger. Mas para que tal seja possível, é ne­cessário que o movimento que produz as diferenças signifi­cantes, no falar como no escrever, seja prévio ao significante como tal, como produzido já, seja ele próprio temporalização e espacialização, no sentido por exemplo, da linearidade das letras numa página, da sucessividade dos sons entre boca e orelha. Esse movimento, que produz diferenças, diferindo as ainda não produzidas e retendo as já produzidas, é estrutu­ralmente temporal: Derrida chamá-lo-á ‘différance, jogando com os dois sentidos do verbo francês ‘différer (produzir diferenças e diferir, adiar). E ainda com o ‘diferendo’ estrutural en­tre dois que falam, cada um debatendo a partir do que o outro diz, falando também de outra coisa (o referente do discurso), es­truturalmente ‘ausente’ das vozes falantes. A ‘différance implica a relação estrutural ao Outro nestes dois sentidos. E implica ainda uma terceira coisa: o traçar que deixa vestígios (traces, em francês), o que chama ‘la trace, que inscreve, abre sulcos, vias, espaços-tempos. A linguagem oral é urna escrit-ura, feita de inscrições (no cérebro que aprende). Este motivo gramato-lógico (discurso sobre/da escrita) implica a ‘ausência’ de um fun­damento simples (um sujeito que exprime pensamentos ao falar, por exemplo), exige que haja ‘mais do que um’ de cada vez (toda a aprendizagem releva de diálogos). É assim a língua de um povo, que a ninguém pertence: cada um a recebeu de outros, sendo condição para que eu diga qualquer coisa que seja. O motivo da tradição encontra-se radicalizado em relação a Heidegger. Como a temporalidade: já não hermenêutica, ligada ao logos, ao discurso ‘próprio’ do que antecipa a morte, mas condição prévia dela. A ‘différance é, de jure, prévia à diferença ontológica. Por exemplo, inscreve-se nos cérebros humanos (Derrida releu Freud nesse sentido), como, se se pode dizer, memória-e­-imaginação à vez. E portanto, necessariamente também, nos cérebros animais, à maneira deles."
* Quatro parágrafos de Fernando Belo, Heidegger, Pensador da Terra, AFP, Coimbra, 1992. Livro a reeditar brevemente.


Notas:
"2 [§17] Mas em Husserl não se trata de ‘a priori subjectivo-formal’, como em Kant: sensibilidade e entendimento têm já um objecto próprio que as define. Também o primado da percepção sobre as sensações rompe com os empiristas, como em Kant, aliás, que partem dum ‘caos’ de sensações a ‘unificar, partindo Husserl da percepção do objecto pela consciência intencional, previamente às sensações.
3[§17] Traduções: francesas (R. Bohem e A. De Walhens, 1964, Gallimard, parcial; E. Martineau, 1985, Authentica; F.Vézin, 1986, Gallimard); espanhola (J. Gaos, 1951, Fondo de Cultura Economica), italiana (P. Chiodi, 1982, Longanezi); inglesa (J. Macquarrie e E. S. Robinson, 1982, SMP).
4 [§18] Para Husserl, a estrutura enquanto que (§13) corresponde à significação que os signos expressarão, mas é ante-predicativa, prévia ao enunciado e ao juízo. Em termos de Filosofia da linguagem, Husserl ficou dependente da tradição convencionalista, visando a linguagem como signos (ou proposições) que seriam instrumentos ou expressões da consciência ou do sujeito. Para Heidegger a estrutura enquanto que é hermenêutica, pressupõe já o discurso como interpretação e a pré-compreensão adquirida no passado do Dasein; mas essa estrutura é pré-objectiva e é ela, do ponto de vista de Heidegger, que funda a estrutura enquanto que husserliana, objectiva e apofântica. A este nível, o da filosofia, da lógica, das ciências, cada termo é definido univocamente; ao nível hermenêutico a pluralidade possível dos sentidos é constitutiva. A ‘clausura hermenêutica’ permanece, contudo, ao nível da ‘consciência’ que se tem do discurso (oral) lido, privilegia o ‘sentido’ sobre o jogo de diferenças entre os significantes (que são o que permite que haja sentidos a ler), não acede ao texto e à sua disseminação inscrita.
(...)
7[§23] O II Heidegger abandonará a ‘ transcendência’ e o projecto duma ‘ontologia fundamental’ (cf. QIV, p.62). Destruir a metafísica será reconhecer que tudo o que esta pensou como necessário releva do possível como possível; a presença do ente é sempre eventual, dada historicamente, destinada (cf. G. Vattimo, As aventuras da Diferença, Edições 70, §§ V e VII).
9[§26] “Introduction” a E. Husserl, L’origine de la géométrie, PUF, 1962, pp. 3-171; La voix et le phénomène, introduction au probleme du signe dans la phénomenologie de Husserl, PUF, 1967; “La forme et le vouloir-dire”, Marges – de la Philosophie , minuit, 1972, pp. 185-207."

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L.T. : Outras questões. No seguimento do teu último e-mail. Relendo principalmente os §17 e 18 de Heidegger, Pensador da Terra e tendo em conta as passagens sobre a 'definição' no Jeu e no La philo avec. A questão da definição é importante mas pode correr o risco de manter-se na percepção. É o que Heidegger assinala. Mas com a definição há abstracção e 'intuição categorial' (Husserl). Talvez se possa dizer que segundo Heidegger a definição em Husserl se mantém numa espécie de critério de linguagem ligado à percepção e portanto de certa maneira à imagem (linguagem-imagem)? Saussure poderá ajudar aqui um pouco. A imagem acústica, posteriormente o significante, não é aquela 'linguagem-imagem' que acima mencionei. Ora, esta 'linguagem-imagem' que, a título pelo menos provisório, assim designei, está ligada a qualquer coisa como uma 'imagem-significante' que não é nem o Significante nem o 'movimento das diferenças significantes' em Saussure. Não esquecendo a admiração que tenho por Deleuze, creio que ele no seu texto Rhizome que está em Mille Plateaux caiu um pouco nessa confusão, pois reduziu o significante, criticando-o negativamente, a uma lógica, por exemplo, da mimésis, da imagem (imitation, ressemblance, p.17) e de uma certa reprodução, quando de facto a questão do significante me parece mais complexa do que isso.
Ora o 'antes da definição' (Heidegger) remete para o horizonte que , enquanto Ser, os entes, retirando-se e, por isso, também é Nada (§23). Mas o horizonte é prévio a eles. Este não é a soma deles (Husserl), como se a delimitação já fosse dada na linguagem pela intuição categorial, daí a coisa como 'objecto' e o correspondente dualismo com o 'sujeito', etc. No que diz respeito ao 'antes da definição' poder-se-á analisar 1. 'o movimento que produz as diferenças significantes' (§ 26 Saussure e Derrida) com 2. 'a diferença entre as coisas que as articula em horizonte e que se previamente a elas' (§18)?
Estou a reler uns textos de Husserl e outros de Heidegger para tentar compreender melhor neste o 'antes da definição' de que falas.
2/6/2011
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F.B. : A definição não tem grande coisa a ver com a percepção, que é uma invenção europeia que a pressupõe, percepção dum objecto num sujeito. 'Antes da definição', estamos todos nós no nosso quotidiano de seres no mundo. A definição arranca o definido, um humano também por exemplo maior (animal ou vivo com logos) e faz dele, de multidões dele, uma essência intemporal e sem circunstância, isto é sem mundo. Disso se alimenta a filosofia, da almas e outras essências com que argumenta, sem percepções nem quejandos. Foi a este quotidiano que o Heidegger voltou, depois de a intencionalidade do Husserl lhe ter aberto o caminho. Mas desligou da redução, que tinha a ver com a definição, que o Heidegger renegou (triste com o professor japonês que se lamentava de não a haver na língua nipónica). O Derrida é que fiou doutra maneira, foi buscar a redução do Husserl e aplicou-se à tal diferença significante / sons (como se fossem 'sujeitos e objectos' respectivamente). Mas aquele não é 'imagem', mas de diferenças sonoras feito, ou de diferenças entre significantes, não é pois coisa da 'percepção auditiva', isso é o som: uma diferença, sendo entre 'sensíveis', não é nem sensível nem inteligível, argumento forte de 'La différance', nas Marges. Ora, se ela é prévia aos entes, sons e falantes, ela é 'institutiva' destes (crianças que aprendem a falar)., desconstroi a oposição sujeito / objecto e a também a dita percepção. "Não há percepção", disse o Derrida, o que me fez confusão durante uns tempos.

4/6/2011






1ª edição de Heidegger, pensador da Terra, Coimbra, 1992.
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L.T. : No entanto gostaria de retomar a questão do significante que abordei no meu texto anterior. E talvez seja melhor citar esta passagem do Rhizome * :
“ L’orchidée se déterritorialise en formant une image, un calque de guêpe ; mais la guêpe se reterritorialise sur cette image. La guêpe se déterritorialise pourtant, devenant elle-même une pièce dans l’appareil de reproduction de l’orchidée; mais elle retérritorialise l’orchidée, en en transportant le pollen. La guêpe et l’orchidée font rhizome, en tant qu’hétérogènes. On pourrait dire que l’orchidée imite la guêpe dont elle reproduit l’image de manière significante (mimesis, mimétisme, leurre, etc.). Mais ce n’est vrai qu’au niveau des strates – parallélisme entre deux strates telles qu’une organisation végétale sur l’une imite une organisation animale sur l’autre. En même temps il s’agit de toute autre chose : plus du tout d’imitation, mais capture de code, plus-value de code, augmentation de valence, véritable devenir, devenir-guêpe de l’orchidée, devenir- l’orchidée de la guêpe, chacun de ces devenirs assurant la déterritorialisation d’un des termes et la retérritolialisation de l’autre, les deux devenirs s’enchaînant et se relayant suivant une circulation d’intensités qui pousse la déterritorialisation toujours plus loin. Il n’y a pas imitation ni ressemlance, mais explosion de deux séries hétérogènes dans la ligne de fuite composée d’un rhizome commun qui ne peut plus être attribué, ni soumis à quoi que ce soit de signifiant. (sublinhei, L.T.)
Deleuze, G., e Guattari, F., Mille Plateaux, capitalisme et schizophrénie 2, Paris, Minuit, 2004, p.17.
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F. B. : Nada a dizer desta citação deleuziana, um autor que admiro muito mas que não me deu a pensar como o Heidegger e o Derrida. Mas atrás fazias referência à maneira como ele criticou o 'significante' como imagem ou mimêsis, o que me parece obviamente bater fora da concepção saussuriana. O Deleuze tem um texto muito bonito sobre como discernir o estruturalismo no final da História da Filosofia dirigida pelo Châtelet, que já li há muitos anos mas que na altura me pareceu muito correcta. Depois fui-me dando conta de que ele rejeitava militantemente, se dizer se pode, este motivo do significante, que tinha bem diagnosticado no coração do estruturalismo, o que parece ser uma maneira de se descartar deste. Opção dele, claro. Seja dito que há uma fabulosa entrevista dele pela Claire Parnet, em video, O abecedário de Deleuze, em três volumes na 1ª edição, que é uma maravilha.
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L.T. : Diga-se de passagem que há cerca de 3-4 anos me foi gentilmente emprestado por José Gil um extraordinário e raro vídeo de Deleuze (da RAI, 'Deleuze em Vincennes'). Raro porque ainda hoje não consta dos vídeos ' Deleuze em Vincennes' que estão no Youtube.

Já que falaste no Abecedário do Deleuze com a Claire Parnet aqui vai um clip dele sobre o Kant:

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* Sobre o 'significante' neste contextos cf. ainda mensagem 6.
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Clip de uma conversa em Sintra (2011) sobre a futura construção do bLogos e a ideia de Leonel Ribeiro dos Santos em reeditar o livro Heidegger, pensador da Terra pelo Centro de filosofia da Universidade de Lisboa.



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Fotografia de Husserl:
Fotografia de Heidegger:


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Cortesia:
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Cortesia:




Cortesia:



27. Wittgenstein



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“Acerca do que não se sabe é melhor calar-se”
Wittgenstein, Tractatus


"A linguagem descreve [mostra], mas não diz" Wittgenstein
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3.5
O sinal proposicional empregue e pensado é o pensamento.
4
O pensamento é a proposição com sentido.

4.001
A totalidade das proposições é a linguagem.

4.01
A proposição é uma imagem da realidade.
A proposição é um modelo da realidade tal como nós a pensamos.

4.015
A possibilidade de todas as analogias, de toda a pictorialidade do nosso modo de expressão, fundamenta-se na lógica da representação pictorial.

4.016
Para compreender a essência da proposição pensemos na escrita hieroglífica, que representa pictorialmente os factos que descreve.
E dela proveio a escrita alfabética, sem perder o que é essencial à representação pictorial.

4.023
A realidade tem que ser fixada pela proposição em sim ou em não.
Para isso ela tem que ser completamente descrita pela proposição.
A proposição é a descrição de um estado de coisas.

4.06
A proposição só pode ser verdadeira ou falsa por ser uma imagem da realidade.

Wittgenstein, L., Tratado Lógico-Filosófico, Trad. M.S. Lourenço, Lisb. Gulbenkian, 1987.

1
(…)
“Agora pensa na seguinte aplicação da linguagem: eu mando uma pessoa às compras. Dou-lhe uma folha de papel na qual se encontra escrito o seguinte: «cinco maçãs vermelhas». Entregue a folha ao empregado, este abre a gaveta sobre a qual se lê «maçãs»; a seguir procura a palavra «vermelhas» numa tabela e encontra-a diante de uma amostra desta cor; a seguir diz a série dos números inteiros – suponho que ele a sabe de cor – até ao número «cinco» e, à medida que diz cada um dos números, tira a maçã da gaveta que tenha a cor da amostra. – É assim, e de outras maneiras análogas a esta, que operamos com palavras. «Mas como sabe ele onde e como deve procurar a palavra «vermelho» e o que tem a fazer com a palavra «cinco»? «Bom, eu suponho que ele actua como eu descrevi. Todas as explicações chegam algures a um fim. – Mas qual é a denotação da palavra «cinco»? – Aqui não se falou disso, mas apenas de como a palavra «cinco» é usada”.
15
“A palavra «designar» é talvez usada da maneira mais directa quando o símbolo que designa o objecto está em cima deste. Supõe que as ferramentas que A utiliza na construção têm certos símbolos. Quando A mostra ao servente um destes símbolos, este traz-lhe a ferramenta que tem o símbolo correspondente.”
“Damos nomes às coisas e assim podemos falar acerca delas, referirmo-nos verbalmente a «elas». – Como se com o acto de dar um nome já fosse dado aquilo que faremos a seguir. Como se «falar de coisas» fosse univocamente determinado, quando de facto fazemos as coisas mais variadas com as nossas proposições. Pense-se apenas nas exclamações e nas suas funções completamente diferentes.
Água! Fora! Ai! Socorro! Belo! Não!
Ainda te sentes inclinado a chamar a estas palavras «designações de objectos»?
Wittgenstein, L. , Investigações Filosóficas, I parte, Trad. M. S. Lourenço, Lisb. Gulbenkian, 1987.

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L.T. : Voltando a Wittgenstein no teu último e-mail. Estive a consultar o teu livro Conversa, Linguagem do Quotidiano. Mas eu percebo pouco do Wittgenstein, embora o meu trabalho de Seminário de fim de licenciatura tenha sido feito com ele sob orientação de Luísa Couto Soares : Wittgenstein, L., Filosofia, de The Big Typescript, na revista 'Crítica', trad. de António Zilhão. Como escreves no e-mail ele pensava a linguagem nos seus usos de palavras, jogos e contextos. Mas, se assim posso dizer, parece-me que os pensava como se as palavras (nomes?) se pudessem separar umas das outras. Ele fala de gramática de contextos, de uma lógica dos usos, de representação, denotação e de um certo critério da descrição vindo ainda do I Wittgenstein com a teoria da 'linguagem retrato da realidade' do Tractatus. O que quero dizer com esta estranha e, aparentemente, tosca expressão: 'separar as palavras'? Por exemplo, " Quando os filósofos usam uma palavra - «saber», «ser», «objecto», «eu», «proposição», «nome» - e procuram captar a essência da coisa [...]" (Investigações Filosóficas, I parte, secção 116). Será porque lhe escapa a questão da dupla articulação da linguagem?
10/5/2011

F.B. : Quanto ao Wittgenstein, personalidade fascinante, a sua filosofia, tanto quanto me apercebi, tem os limites da separação entre o sujeito (a linguagem) e a realidade, que tentou superar com a noção de 'usos'.
Assim "Quando os filósofos usam uma palavra - «saber», «ser», «objecto», «eu», «proposição», «nome» - e procuram captar a essência da coisa", parece não saber que, se eles não usarem essas palavras e outras do mesmo estilo, não são filósofos. Faz parte da ideia dele de tirar a mosca (a filosofia) de dentro da garrafa: fora dela, a mosca não é 'mosca'. O salto do Heidegger, em relação ao Husserl, foi voltar ao 'antes da definição', o que, em certo sentido, é o que W. quereria. Mas o Heidegger tinha os pés na história, como o Derrida, desconstruir é dos textos históricos, o W. ignorou soberbamente a história, o que julgo ser normal na filosofia analítica. Julgo que ele é interessante para gente que justamente joga com proposições e coisas dessas e ignora a história, quer a história em geral, quer o lugar da filosofia nessa história. Pessoalmente, leitor que sou de filosofia francesa e alemã, é por aqui que encontro coisas interessantes para compreender o nosso mundo, a filosofia analítica que li, incluindo Wittgenstein, não me dá que pensar (mas também nunca me interessei por lógica).
Personagem fascinante: a vida dele, em que só a filosofia conta, em sua errância, é muito mais interessante do que a dos filósofos universitários correntes. E tem algo de muito notável: fez na sua juventude, nas trincheiras da guerra!, uma síntese filosófica e lógica admirável, como se fosse um matemático (é a disciplina da precocidade). E depois duma pausa como professor primário, jardineiro e arquitecto, voltou à filosofia passando o resto do seu tempo a demolir a síntese que fizera.
Vi uma vez um filme francês cuja heroína era uma professora de filosofia e tinha no estúdio dela um poster do Wittgenstein, e pensei: só ele poderia estar ali.
Mas já agora, vai o retrato fascinado que o filósofo croata brasileiro Z. Loparic faz de Heidegger, de quem frequentou um seminário durante 4 meses nos anos 60.
Nos seminários sobre o Heráclito (1966/67), eu estava diante de um homem totalmente tomado, não sobrava dele nada que não fosse iluminado por aquilo que ele dizia e como ele o dizia. Ele era aquele que falava aquelas coisas. Havia nele uma extrema concentração; toda figura dele, no dizer, no estar presente, era filosofia. Isso eu nunca havia visto antes em outras figuras brilhantes, em Henrich ou em Gadamer. Este era um homem de espírito que cuidava das palavras. Heidegger, ainda aos 77 anos, era homem vigoroso, totalmente diferente: era filosofando que ele existia. Isto pode ser em vários aspectos um defeito. Seja como for, diferentemente de Heidegger, eu mesmo nunca me identifiquei com nenhuma carreira filosófica, nem mesmo com a carreira acadêmica, nem mesmo com a atividade de ser filósofo. Sempre achei que, qualquer coisa que você faça, não deixa de haver em você algo que sobra. Tem sempre uma sobra. Sempre havia sobras em mim, mesmo quando me entregava a algo, sem reservas. Em Heidegger, não. Mesmo assim, a centralidade da filosofia na vida e na figura dele me marcou, confirmando meu ímpeto inicial de que a Filosofia é algo sem o qual não posso andar por ai.
URAM - Por isso, anos inesquecíveis.
ZL - Para mim, fazer filosofia é tão natural como ser bípede ou respirar. Filosofia faz parte da vida, num sentido trivial: acordo; durmo. Da mesma forma que para o dançarino, imagino, ou para o músico seja essencial viver no mundo dos sons. Devo isso em boa parte a Heidegger. Mas, como disse, há sobras também!
AAS - Ele existia no mundo?
ZL - O mundo dele se fazia a partir do que ele dizia em termos da filosofia. Isso é algo que só vi em Heidegger. Essa centralidade da filosofia, que nos põe frente a estruturas abstratas e não comunicáveis facilmente. Ele era aquela fala que ele produzia.

12/5/2011



26. Margens da filosofia e Gramatologia. A escrita ...


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“C’est que je voudrais précisément tenter, dans une certaine mesure et bien que cela soit, au principe et à la limite, pour d’essentielles raisons de droit, impossible de rassembler en faisceau les différentes directions dans lesquelles j’ai pu utiliser ou plutôt me laisser imposer en son néo-graphisme ce que j’appellerai provisoirement le mot ou le concept de différance et qui n’est, nous le verrons, à la lettre, ni un mot ni un concept.” (p.3)
(…)
Je rappelle donc, de façon toute préliminaire, que cette discrète intervention graphique, qui n’est pas faite d’abord ni simplement pour le scandale du lecteur ou du grammairien, a été calculée dans le procès écrit d’une question sur l’écriture. Or il se trouve, je dirais par le fait, que cette différence graphique (le a au lieu du e), cette différence marquée entre deux notations apparemmment vocales, entre deux voyelles, reste purement graphique: elle s’écrit ou se lit, mais elle ne s’entend pas. On ne peut l’entendre et nous verrons en quoi elle passe aussi l’ordre de l’entendement. Elle se propose par une marque muette, par un monument tacite, je dirai même par une pyramide, songeant ainsi non seulement à la forme de la lettre lorsqu’elle s’imprime en majeur ou en majuscule, mais à tel texte de l’Encyclopédie de Hegel où le corps du signe est comparé à la Pyramide egyptienne. Le a de la différence, donc, ne s’entend pas, il demeure silencieux, secret et discret comme un tombeau: oikesis. (p.4)
(...)
“On objectera que, pour les mêmes raisons, la difference graphique s’enfonce elle-même dans la nuit, ne fait jamais le plein d’un terme sensible mais étire un rapport invisible, le trait d’une relation inapparente entre deux spectacles. Sans doute. Mais que, de ce point de vue, la différence marquée dans la «différ()nce entre le e et le a se dérobe au regard et à l’écoute, cela suggère peut-être heuresement qu’il faut ici se laisser renvoyer à un ordre qui n’appartient plus à la sensibilité. Mais non davantage à l’intelligibilité, à une idéalité qui n’est pas fortuitement affiliée à l’objectivité du theorein ou de l’entendement; il faut ici se laisser renvoyer à un ordre, donc, qui resiste à cette opposition, et lui resiste parce qu’il la porte, s’annonce dans un mouvement de différance (avec un a) entre deux différences ou entre deux lettres, différance qui n’appartient ni à la voix ni à l’écriture au sens courant et qui se tient, comme l’espace étrange qui nous rassemblera ici pendant une heure, entre parole et écriture, au-delà aussi de la familiarité tranquille qui nous relie à l’une et à l’autre, nous rassurant parfois dans l’illusion qu’elles font deux.” (p.5) (sublinhei, L.T.)
Derrida, J., Marges – de la philosophie, Paris, Minuit.



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L.T. : estive a retomar o texto La différance do Derrida. No e-mail de 29 de Março escreves: “O significante S não é o mesmo, 'e' é diferente de 'a'. Mas em francês, oralmente o S é o mesmo, não em escrita (...)”. Nesta linha, Derrida no texto la Différance (p. 5), escreve “la différence [entre ‘e’ e ‘a’] graphique s’enfonce elle-même dans la nuit”. Não é da ordem da escuta (écoute), que supõe a oralidade, julgo eu. A ‘diferença’, com a différance, é gráfica, mas “não pertence nem à voz nem à escrita no sentido corrente” (idem). É gráfica. “Mais [...], elle se dérobe (se furta) au regard”. Não é da ordem da visibilidade (“...elle étire un rapport invisible...”). Mas é gráfica! “La différence [différ()nce] graphique (...)”. Isto parece-me espantoso! Nem da da sensibilidade nem da da inteligibilidade. “Elle s’écrit ou se lit” (p.4). L’ordre [de la différance] qui résiste à cette opposition, et lui résiste parce qu’il [l’ordre, ni, ni, (p.3) e cf.Positions,] la porte” (p.5). Portanto, sem a ela (à oposição) se opôr. Há um jogo de inscrição do significante e da différance. Mas não são o ‘mesmo’. Parece que o significante é decisivo na différance de Derrida, como também mostraste.
Pergunta: o significante de Derrida é mais ‘material’ que o de Saussure («matérielle», Cours, p.93) na estrutura do signo? Ou a questão deve-se pôr: A différance sendo gráfica é material?
16/04/2011
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F.B. : Estás no ponto decisivo da gramatologia. A diferença é gráfica, isto é, é entre grafias (como entre sons), senão seria 'inteligível', abstracta; mas sendo entre grafias ou entre sons, não é sensível nem visível ou audível. És capaz de 'ver' uma diferença entre duas pessoas que tu vês? Ou entre dois brincos que tu vês? Ou seja o que fôr: o 'entre' não se vê. Uma grafia (ou um som, uma voz), a tua letra (que ambos vemos) é diferente da minha (que ambos vemos), quando ambos escrevemos, como as vozes (que ambos ouvimos) são diferentes. Mas as diferenças entre as tuas diversas letras (cá, sim, etc) e as minhas (cá, sim, etc) são as mesmas, e não se vêem. São o significante de Saussure e um 'exemplo' da différance do Derrida. Se o Saussure lhe chama 'material', engana-se, mas por oposição ao 'signifié' que já não é uma diferença entre grafias ou sons (articulação dos fonemas ou letras para fazer palavras), mas entre palavras na frase ou no discurso ou texto, isto é, diferença entre 'significantes' a nível da articulação entre palavras para fazer frases ou textos. E também esta não é visível nem dissociável do visível, não é inteligível, é outro exemplo da différance. Com sons e grafias diferentes dizemos e escrevemos as 'mesmas' palavras, de todos os portugueses, e por isso nos entendemos , e os estrangeiros, com outros sons e outras diferenças, não nos entendem.
Mas também as diferenças entre as 4 'letras' do ADN é um exemplo da différance, ou entre as notas de música, ou entre os números da matemática, ou dos riscos e côres da pintura ou da fotografia ou do cinema, cada um com as suas características. A minha diferença para o Derrida é que ele apoia-se no Saussure (noutros textos em Freud, ou em Rousseau, e em muitos outros) para fazer filosofia e eu volto dessa filosofia para entender a linguística ou a psicanálise ou a biologia molecular, buscando ser-lhe fiel. Se disse que é um ponto decisivo, é porque esse não ser nem sensível nem inteligível é um argumento muito forte contra a separação entre essas duas dimensões, que é a metafísica desde Platão (a que Aristóteles em parte escapa, mas só em parte), entre a alma e o corpo, o dentro e o fora, o sujeito e o objecto, o pensamento e a linguagem, a ideia e o som. Por exemplo, em relação a este par: pensa-se habitualmente (metafisicamente) que a linguagem é a união entre ideias e sons, ou sons e ideias, vem dar ao mesmo. O que pressupõe a existência prévia de 'ideias' e de 'sons' e depois uma 'convenção' que os une (como se faz com a matemática, por exemplo). O que Derrida propõe implica que antes da língua não havia sons linguísticos (a, e, i, o, u, ei, ou, ão) tanto como não havia 'ideias' (disso nem sequer posso dar exemplos). A différance 'produz', ou melhor reproduz sons cujas diferenças significantes produzem sentidos diversos: dupla articulação da linguagem, ponto de partida das minhas análises na Epistemologia do sentido, em que tudo isto está demonstrado. A metafísica pós-grega nunca conseguiu dar à linguagem um estatuto que não derivado: instrumento, expressão, meio de pensamento ou comunicação. O II Wittgenstein andou às voltas com isso, com a ideia de usos de palavras em contextos e de jogos de linguagem, mas nunca conseguiu dar a volta à coisa, ficou sempre como a mosca dentro da garrafa (imagem pejorativa dele para a filosofia).
17/4/2011
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Café Cyntia - esplanada
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Café Cintia, esplanada - Sintra
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Imagem: pintura - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares