sábado, 13 de julho de 2013

146. Corpo, linguagem, arte, etc.







L.T. : 1. “"O que o Caledónio entende como ‘corpo’ é provavelmente o que o missionário ocidental, que o interpela, entende como ‘espírito’, e vice-versa. Opera-se uma troca. Só uma troca? Não. Esta troca, por si só, não esclarece a diferença. Não se trata só de uma troca, menos ainda de uma troca simétrica". Não entendo o que te levou a escrever isto.”
Porque se fosse uma mera troca simétrica estaríamos num registo categorial, de um modo geral, ou mantendo o binómio sujeito/objecto, ou mais propriamente corpo/alma (vj. também espírito). Poder-se-ia objectar a quem sustenta uma filosofia ou filosofias do corpo o seguinte: “o senhor está a pensar categorialmente o corpo.” Mas pode surgir a contra-objecção: “Mas quem está a adiantar com o argumento de que a minha tese assenta no categorial é o senhor e não eu. Não falei disso. Você é que falou e está falando de categorial e da categoria corpo…” É que hoje usa-se muito o termo categoria para referir binómios, dicotomias e oposições, p. ex., a do sujeito /objecto.
Mas isto não me parece suficiente. O que me importa é perceber outras formas do aparecimento da linguagem. Por exemplo, o Agamben quando diz, acerca da linguagem, que é o dispositivo talvez mais antigo entre aqueles que enumera (“peut-être le plus ancien”): “…e, porque não, a própria linguagem, talvez o mais antigo dispositivo no qual, há vários milhares de anos já, um primata, provavelmente incapaz de dar conta das consequências que o esperavam, teve a inconsciência de se fazer tomar por ela (“ l’inconscience de se faire prendre” (?))” (Agamben, G.; Qu’est-ce qu’un dispositif?, trad. Martin Rueff, Payot Rivages Poche, 2007, p.32).
Como quando, por exemplo - isto parece-me muito importante - se processa o milenar trabalho do corpo, da linguagem e do pensamento – mesmo um trabalho milenar da ordem do espiritual, do meu ponto de vista – na arte do Paleolítico Superior. Não sei se sabes, fiz em tempos alguma pesquisa plástica sobre arte pré-histórica, acompanhada de alguma investigação bibliográfica. Trabalho milenar, com um jogo de distanciação e aproximação até à demarcação da dimensão do que é da génese espiritual do humano relativamente à realidade dos outros animais na sua estranha familiaridade connosco, por um lado, e na sua estranha distância, abissal distância, separação, em relação a nós, por outro. É a figuração ou configuração – para não falar nos signos esquemáticos e abstractos daquela arte – dos animais pintados traçados e esculpidos. Mas não é curioso que as figurações humanas são caricaturais, raras, e se produzem em esboços ou mistos zoo-antropomórficos (p.ex. xamanes camuflados com peles de animais, ou transfigurados neles)? E não é curioso que os animais naquelas produções artísticas tem expressões com algo de humano? E porque é que os homens não se figuraram? Chegam a fazer essa pergunta ao Leroi-Gourhan em entrevista ao realizador e entrevistador Paul Seban. Está num vídeo que fui buscar ao INA, praticamente esquecido, até por um distinto arqueólogo que conheço, o Vítor Oliveira Jorge, e que não tinha conhecimento desses vídeos. Evidentemente que lá por ele não conhecer aqueles vídeos não quer dizer que não saiba muito mais de arqueologia, paleontologia e muitas outras coisas que eu.
Embora Gourhan diga que se trata de um dos grandes enigmas da arte do Paleolítico Superior, acaba por resolver a questão, um tanto evasivamente do meu ponto de vista, dizendo que não havia destreza suficiente para trabalhar a fisionomia, as figura humanas, etc. Sinceramente, com todo o respeito e admiração que nutro por ele, não me convence esse argumento. Basta olhar para as linhas extraordinárias das gravuras, por exemplo de Foz Côa, bem como as pinturas de Altamira, Lascaux, para não falar nas esculturas, etc. Mas isto pede muito trabalho e é só um desabafo para já. Aliás já te tinha falado disto. Há uns anos, em conversa breve com o José Gil sobre estas questões, ele disse-me que tinha a ver com o corpo próprio. E de seguida deu o exemplo de Leenhardt com o Caledoniano de que falámos há pouco na mensagem anterior e noutras. Antes já tinha dito numa aula que era uma questão muito delicada e não podia ser tratada em minutos. E ficámo-nos por aí.
2. “… tive uma vez uma amostra com o João Resina Rodrigues, físico e filósofo, professor de relatividade e mecânica quântica (livros sobre ambas) no IST e doutor em filosofia por Lovaina, muito mais inteligente do que eu, sem dúvida nenhuma, e que não era fisicalista, é claro, não foi capaz de entender o duplo laço dum automóvel: para ele as peças jogam umas sobre as outras, causa e efeito, e mais nada, era o laboratório a raciocinar. “
Não percebo por que dizes que o João Resina Rodrigues é muito mais inteligente do que tu e depois acrescentas que “não foi capaz de entender o duplo laço dum automóvel: para ele as peças jogam umas sobre as outras, causa e efeito, e mais nada, era o laboratório a raciocinar. ” Não sei se interessa explicar esta passagem melhor.
3. Para já é só isto sem grandes elaborações. Depois vejo se posso desenvolver algumas coisas que me interessam sobre o corpo próprio, proprioceptividade (Merleau-Ponty), corpo-sem-orgãos (Artaud, Deleuze), se o corpo é o que está dentro da pele (“encorpado”, Damásio, segundo a tua observação na mensagem anterior) ou se ele não se limita aos seus contornos (Gil), etc.
Penso que já é texto suficiente para suscitar-te algumas questões.


8/7/2013



F.B. : Nem tanto. De paleo-história, arte ou não, não sei praticamente nada. Diria apenas, a propósito da linguagem como dispositivo mais antigo, que não creio que se trate só dela, mas que o primitivo será o par receita / uso, a linguagem dizendo coisas que se fazem, ou seja os usos fazem parte do dispositivo. 
Quanto ao J. Resina não compreender o duplo laço, não implica menos inteligência mas outro paradigma, em que o laboratório de física predomina. Aliás, ouvi-o uma vez  dizer, após uma conferência sobre qualquer coisa de filosofia das ciências (já não sei o quê, foi há muitos anos) dizer na conversa que se seguiu que não sabia nada de ciências sociais e humanas. Grande vantagem, saber o que se sabe e o que não se sabe. 

Continua as tuas questões sobre o 'corpo', é sempre em torno das questões que temos que convém trabalhar. O 'corpo próprio' foi um tema do Lacan e tinha a ver justamente com o corpo ocidental, o da alma, do sujeito, da consciência, o tal que o indígena não conhecia, que para ele seria 'comunitário', segundo o J. Gil. O ser no mundo do Heidegger acho que sai desse corpo próprio mas creio que falei disso na última vez, o Freud também ajudou fortemente a sair mas guardou-o em parte.
13/7/2013




Imagem: desenho - obra plástica de Luís de Barreiros Tavares

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