quarta-feira, 16 de maio de 2012

77. O 'objecto' em Husserl, o 'fervedor de leite' na mesa da sala de aula de Belo e o 'readymade' de Duchamp





L.T. : Resumindo, "o fervedor de leite na sala de aula" seria uma espécie de readymade filosófico feliz. Diria mesmo, há algo de performativo no gesto de pôr um fervedor de leite na mesa da sala de aula. Performativo - filosófico ou artístico? -, as duas coisas ou não, pouco importa agora. Aliás, não dedicas os teus estudos às questões da arte e da estética, embora gostes de ver. Adiante. Portanto, mais do que isso, seria o modo como te fizeste entender quanto ao “objecto da fenomenologia de Husserl”. O fervedor é um exemplo, conforme o disseste no outro dia. Quer dizer, tentando tornar manifesto, se posso dizer, o modo como Husserl pensa o objecto no seu aparecer arrancado ao contexto. “Uma vez em que tinha que falar desta questão numa aula, coloquei na devida altura um fervedor de leite em cima da mesa da sala de aula, dizendo aos meus alunos, meio espantados, meio divertidos: ‘eis aqui o objecto da fenomenologia de Husserl!’ Numa sala de aula, o fervedor está fora do seu contexto usual, fora do seu horizonte”( H.P.T.§ 64). " Custa-me conceber que o Husserl ao seu estilo se servisse de um exemplo como o do fervedor ou qualquer coisa desse tipo. No entanto gosto muito do exemplo. Com ele reforçaste o objecto de Husserl. E ao reforçá-lo, isso contribuiu para, na volta, melhor dares a compreender o horizonte, o contexto heideggeriano, prévios ao modo pelo qual Husserl ainda se mantinha ancorado na definição manifestada naquele ‘objecto’. Contudo, não é novidade que defendes mais a definição do que o Heidegger. O que não significa que defendas menos o horizonte, parece-me. Provavelmente para relançar em jogo as questões da definição e do horizonte no diálogo da “filosofia com ciências”, com as suas várias e novas vertentes e reformulações, como por exemplo as questões do laboratório (na sua analogia, se posso assim dizer, com o definitório, a definição) e da dita realidade, a cena (na sua analogia com o horizonte, o contexto).
Mas não resisto à questão, de certa maneira já respondida neste blogue, que se manifesta tão banal e ao mesmo tempo tão decisiva: que é o objecto?

Ver mensagem 67.
14/05/2012


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F.B. : Não gosto sequer da palavra 'objecto'. Tratava-se aliás de desmascarar o Husserl, se dizer se pode. O que é o objecto? É todo o tipo de exemplos dos filósofos europeus, coisas de ter diante dos olhos, nem sequer das mãos, a não ser o fogo do Hume, para não as queimar. É uma coisa parada, nem uma mosca nem um cavalo, nunca coisas que mexem, como no laboratório, em que se medem movimentos, não coisas. O exemplo mais chapado, é o dum cubo, todo limitado nas suas seis faces quadradas, objecto de definição geométrica.
Do que gosto na palavra 'objecto', é da 'objecção'. A objecção posta ao teórico, que o desmente e obriga a reformular a questão. No La philosophie avec sciences au XXe siècle, no capítulo sobre 'como definir uma ciência, §§ 76-78, defino-a pelo duplo laço duma 'lei de definição' e duma 'lei de objecção' (ver mensagem 78).
O que me interessa na tua questão, é saber se defendo a definição, 'mais do que o Heidegger'. Ele não a defendia, ficou muito infeliz com o professor japonês que se lamentou que ela faltasse na língua dele, e os conceitos definidos e hierarquizados do Ocidente (Acheminement vers la parole). Não a defendia, não, nem ao Platão e à sua 'doutrina da verdade'. Nem o Derrida, tão pouco. Mas é um pouco estúpido falar assim, porque eles andaram sempre, apaixonadamente, dentro e fora da filosofia. Sem a invenção da definição, o que seria a filosofia? Impossível responder. Tanto que nem sequer tem jeito dizer que se 'defende' a definição, ela não precisa de ser definida. De qualquer forma, eu fui descobrindo a pouco e pouco o lugar fulcral da definição, como operação violenta da escrita, desde um debate com o Fernando Gil que ele não leu. E espanto-me um pouco de nem o Heidegger nem o Derrida, tanto quanto eu saiba, terem diagnosticado esse lugar da definição (nem li ninguém que o fizesse, devo dizer). Com algum espanto meu, em La Philosophie avec Sciences au XXème siècle, no índice da I parte, vêm definições, de automóvel, mamíferos, sociedade, linguagem, ciência (a minha primeira formação foi de engenheiro, nunca o reneguei). Mas não são definições de 'objectos', nem o automóvel sequer o é, ao guiá-lo eu sou levado por ele, tive que aprender, como se aprende a andar a cavalo. E então, pode-se dizer que, com muitas pinças, o Derrida procura definir a 'différance' no texto com esse título nas Margens. E talvez também o Heidegger o 'mot', no livro citado acima. Definir sem pôr barreiras, fronteiras, limites. O Derrida diz algures que a palavra que ele mais detesta é 'determinação', um outro nome da 'definição', a que se acrescenta a noção de 'causalidade'.
Mas se se está no gnosiológico, e ambos estão, nenhum deles faz narrativas ou discursivos em 'eu', tem que se explicar, aqui ou ali, o que quer dizer tal palavra que eles propõem, mundo ou Ereignis ou diferença ontológica, ou duplo laço, e por aí fora. Não definem à maneira tradicional, mas 'definem'.
16/05/2012


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