segunda-feira, 21 de abril de 2014

152. "Porreger", "porrecção"? Em "Tempo e Ser" (Zeit und Sein), de 1962 - Heidegger










LT : Como vais? Como vês a questão da 'porrecção' tão pensada em Tempo e Ser (Zeit und Sein) de 1962?
Boas coisas

19/04/2014

-

FB : Para dizer com franqueza, não digo nada. O termo tem a ver com a família de 'reger', mas eu já li várias vezes o texto, que - ao colocar o Ereignis no lugar que antes era o do Ser e irmanar este com o Tempo como ambos doados, voltando pois o 'ser' ao lugar tradicional de 'ser do ente' e este embora essencialmente temporal - dá um acabamento fabuloso ao caminho de floresta, ou senda, do Heidegger. Ora, nas várias vezes que o  li, sempre o que ele tenta dizer com essa 'porrecção' me escapou. Ou não tenho filosofia que chegue, pelo menos a heideggeriana, ou a senda da  'porrecção', ao contrário da do Ereignis é uma senda inacabada, impasse, sem saída uma vez que ele morreu. Também é certo que não costumo ler exegetas de Heidegger e também confesso que a leitura de Derrida deste texto em Donner le temps me admirou não ter dado pela 'minha'  novidade do Ereignis.  Dito isto, é possível que essa tentativa da porrecção seja mais ou menos falhada por depender do que em Heidegger permanece de logocentrismo, que se mostra na maneira como nos textos de Questions IV, que começam justamente com Tempo e Ser, o Dasein permanece sem ser dom do Ereignis, ainda com uma espécie de cordão umbilical ao 'sujeito' husserliano, sem as consequências que me parecem poder ser tiradas do ser no mundo, da 'vinda à presença' ser o nascimento (enquanto que Ser e Tempo privilegiava a morte). Ou ainda, o pensamento do Heidegger permanence no nível do 'entes', não espreita dentro deles, ignora as ciências como também a linguística. Isto é, a minha leitura dele, que o ser no mundo implica a aprendizagem dos usos e portanto a transformação do 'sujeito' de cada vez que aprende um uso (e estamos sempre a aprender), isso só me foi possível por ler Heidegger contando com o Derrida. Então, na minha limitação filosófica, desisti de entender a 'porrecção', achando que era um impasse com o tempo, antes da différance, que é não apenas a temporalidade dos entes entre passado, presente e futuro ou vice-versa, mas a sua constituição desde o não ser, dado como ser vivo ou como coisa fabricada ou instituição humana ou texto, etc. dado como ciclo temporal que é também imbricação com outros entes, em cena que é sempre de muitos e com muitos, de comer e de aprender. O tempo é gestação e crescimento com fim adiado, este adiamento sendo o que dinamiza o crescer. Qual porrecção, qual carapuça!
Aleluia, em dia de Pàscoa

20/04/2014
-
 
FB : Para dizer com franqueza, não vejo nada. 
correcção da primeira frase
Mais Aleluia!


20/04/2014
-


LT : Está bem. "Qual carapuça"... mas o que é facto é que é um tema importante. E parece-me que pouco explorado. Se não me engano, por exemplo, o Agamben em A Potência do Pensamento, onde fala bastante do Heidegger e do Ereignis, não aborda esse estranho conceito...
O Agamben às vezes acaba por se tornar demasiado erudito; 'erudito', não sei se é a expressão mais apropriada. Mas embrenha-se demasiado numa certa abordagem da linguagem sobre a linguagem. Mas tem textos muito bons!
Vou entretanto ler o teu texto com atenção. Tenho cá uns motivos acerca da 'porrecção', mas ainda estão muito verdes...
Boa Páscoa... Aleluia também!

20/04/2014
-

Imagem: Estudo livre em torno de "botas de camponesa" de Van Gogh.
Acrílico sobre tela sintética colada a tábua - 25x35cm - 2002 - por Luís de Barreiros Tavares.

"Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço dos passos do trabalhador. Na gravidade rude e sólida dos sapatos está retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo, sobre o qual sopra um vento agreste. No couro, está a humidade e a fertilidade do solo. Sob as solas, insinua-se a solidão do caminho do campo, pela noite que cai. No apetrecho para calçar impera o apelo calado da terra, a sua muda oferta do trigo que amadurec e a sua inexplicável recusa na desolada improdutividade do campo no Inverno. Por este apetrecho passa o calado temor pela segurança do pão, a silenciosa alegria de vencer uma vez mais a miséria, a angústia do nascimento iminente e o tremor ante a ameaça da morte. Este apetrecho pertence à terra e está abrigado no mundo da camponesa. É partir desta abrigada pertença que o próprio produto surge para o seu repousar-em-si-mesmo."
Martin Heidegger, A Origem da Obra de Arte, trad. M. Conceição Costa, Ed. 70, 1992, p.25.