F.B. : Sobre a proximidade e as diferenças entre o Ereignis de Heidegger e a ousia de Aristóteles, expliquei-me em Heidegger, Pensador da Terra, §§ 88-90:
Heidegger e Aristóteles
86. O Ereignis de 1962 acaba o percurso heideggeriano de forma tão surpreendente que se seria tentado a falar dum III Heidegger. A formulação da diferença ontológica como ‘Nada de ser que dá entes’ carecia do tempo, a descoberta de Ser e Tempo mas que só dizia respeito ao ente humano; todo o percurso do II Heidegger em redor da história do ser pedia por isso que a temporalidade fosse generalizada, um pouco ‘como’ o ser[1]. Ora, como se viu, em Ereignis, ‘acontecimento’ em alemão, ser e tempo são indissociáveis; tudo se passa como se, na conferência Tempo e Ser, o Ereignis tomava o lugar do ser[2], deixando este tornar-se enfim o parceiro do tempo. Há que pensar que a conferencia reformula a diferença ôntico-ontológica: pode-se ler o Ereignis como Nada de acontecimento que dá acontecimentos. Ora, nas cenas da chamada realidade, só há acontecimentos, tudo nos entes – nascimento, alimentação, morte, fabrico, estragar-se – é acontecimento, o próprio (eigen) ente na sua indeterminação, uma vez que esta doação permanece retirada, não há determinismos nem fatalismos. Isto é tão surpreendente que vale a pena comparar com Aristóteles, para tentar precisar o que há ao mesmo tempo de retorno e de novidade.
87. Uma vez que o seu pensamento diz respeito sobretudo aos seres vivos, tomemos o exemplo dum cavalo. A ousia é o próprio movimento (kinêsis) da ‘substância’ que é ‘este’ cavalo (ousia primeira) vindo à presença, movimento esse que é o ‘mesmo’ dos outros cavalos e éguas, a ‘essência’ deles (ousia segunda), mas este movimento, durante toda a sua vida de cavalo, desde o nascimento até à morte, é vivido de maneira singular, particular, que lhe é ‘própria’, diferente de todos os outros cavalos e éguas, segundo os seus ‘acidentes’, os seus acontecimentos ônticos. A ousia congelou-se numa intemporalidade gnosiológica, de acordo com a dos textos que a definem como ‘essência’: Aristóteles também é parmenidiano (§ 71) [3], é o mesmo o ‘ser’ (substância) e o dizê-lo pensá-lo (essência), mas a ousia primeira ou substância tendo o primado sobre a ousia segunda ou essência. É nesta diferença entre primeira e segunda que o ente tinha o primado ontoteológico da presença e o tempo se tornava secundário, seja como acidentalidade em relação à primeira, seja como momento qualquer em relação ao presente intemporal (da definição) da segunda[4]. Ora bem, no Ereignis, o que é que isto dá? O movimento é a ousia dada, ser-e-tempo à vez, movimento ôntico, particular, deste cavalo que acaba de nascer, de ser (pro)duzido, vindo à presença, da sua égua materna, e que crescerá no tempo, comerá e dormirá, reproduzir-se-á. Ora, nada disto é ‘acidental’, no sentido de ‘derivado’. ‘secundário’, já que tudo é ‘essencial’ ao acontecimento ôntico, à existência deste cavalo particular: desaparecida a diferença primeira / segunda da ousia (como já fora para o Dasein em Ser e Tempo). Isto, ao nível ôntico, E ao nível ontológico? O Ereignis é a espécie cavalar que dá o cavalo, e os outros cavalos e éguas. Uma espécie biológica não é nenhum dos seus indivíduos (não sendo ‘nada’ fora deles), já que estes nascem e morrem e a espécie continua de se reproduzir nos seus descendentes. Ela não é nenhum ‘ente’, é ‘Nada’ (não ente) que tm a fecundidade, o poder de doação dissimulado, de se reproduzir como o Mesmo nos próprios entes individuais, que nunca são idênticos entre eles. Nesta reprodução, ela é o Nada de acontecimento que dá potros, éguas e cavalos. Ousia deixou de se opor hierarquicamente a acidente, já que as suas regras científicas têm uma relação essencial ao aleatório das cenas ecológicas onde os cavalos se reproduzem[5]. Se se atende a que, em português, as palavras ‘acidente’ e ‘acontecimento’, uma com conotação negativa e a outra positiva, dizem a mesma coisa (o que sucede podendo não suceder), compreende-se como é que o Ereignis de Heidegger volta ao aristotelismo e o transforma radicalmente: a oposição entre ser e tempo é enfim ultrapassada.
88. Voltemos à diferença fenomenológica de Husserl com um exemplo simples: ele tem que suspender a empiricidade das circunferências que há nas rodas de qualquer veículo ou nos pratos em que comemos, para obter a idealidade da circunferência da Geometria, que não existe no Mundo, mas no entanto se repete em cada circunferência empírica. A diferença fenomenológica entre umas e a outra permite compreender melhor a diferença entre os cavalos e éguas individuais e empíricos que nascem das éguas, por um lado, e a espécie cavalar, por outro: se se trata ainda de diferença fenomenológica, haverá que dizer que as intuições sensíveis, categoriais e eidéticas que se possam ter dela permanecem epistemologicamente bastante pobres: os cavalos e as éguas comem e reproduzem-se independentemente dessas intuições, os zoólogos que os estudam fazem operações laboratoriais bem mais complezas para definir uma espécie cavalar, o seu genoma. Sem se dar conta, Heidegger reencontrou as ciências a que tinha virado as costas muito cedo, quando da ruptura com o seu mestre em fenomenologia; ele voltou às próprias coisas: cumpriu assim a finalidade da Fenomenologia alem de Husserl. A’constituição’ pela consciência das coisas vivas e não inertes não levará muito longe no caminho para o conhecimento delas[6]; mas a espécie, pelo contrario, pode bem ser dita ‘constituída’, já que ela só é enquanto conhecida pelas pessoas que se ocupam, criam e cuidam dos cavalos, os conduzem nas corridas. E o cavalo, que não fala, o que é que ele sabe da sua espécie? Deve saber qualquer coisa, à sua maneira, a nós é que escapa o saber dele. Creio que a diferença ontológica entre os acontecimentos e o dizer pensar o Ereignis aproxima-se assim da diferença fenomenológica, herdando da sua redução, sem que se possa ir ao ponto de as identificar. O percurso heideggeriano terá sido a sua maneira de, em várias etapas, introduzir a temporalidade na diferença husserliana. Primeiro no Dasein, no ‘ser-o-aí’ mas talvez ainda não nas coisas e utensílios do seu cuidado de habitação no Mundo; deu em seguida atenção à história ocidental do ser, à longa temporalidade que envolve os humanos enquanto mortais e portanto entes de tradição; chegando enfim, se vejo com justeza, a esta diferença entre os acontecimentos ônticos e o Acontecimento ontológico, em que o tempo joga aos dois níveis. De Aristóteles até Heidegger: do ‘movimento’ do próprio (auto) que se repete, os acidentes sendo secundários, ao acontecimento antes de mais, condição do próprio ‘próprio’, os outros antes do próprio. Disso Aristóteles não soube nada[7].
[1] Podem-se encontrar pelo menos duas tentativas para substituir o Ser doador: o Quadripartido em “La chose” [1954], o Jogo em Le Principe de Raison [1957], ocupam por assim dizer o lugar que, em 1962, virá a ser enfim do Ereignis. É a resolução dessas tentativas que o título “Tempo e Ser” assinala.
[2] No seu comentário dessa conferência, depois de ter sublinhado a sua novidade - “ser é determinado como presença pelo tempo” (1976, pp. 64-6) -, ele diz: “ao mesmo tempo que o ser chega ao olhar enquanto acontecimento, desaparece enquanto ser” (pp. 77-78).
[3] “As categorias de Aristóteles são ao mesmo tempo de língua e de pensamento: de língua enquanto são determinadas como resposta à questão de saber como é que o ente se diz (legetai); mas também como se diz o ser, como é dito o que é, enquanto é, tal como é: questão de pensamento [...]. O ‘pensamento’ – o que vive sob este nome no Ocidente - jamais pôde surgir ou anunciar-se senão a partir de uma certa configuração de noein, legein, einai e desta estranha mesmidade de noein e de einai de que fala o poema de Parménides” (Derrida, “Le supplément de copule: La philosophie devant la linguistique”, Marges. De la Philosophie, Minuit, 1972, p. 218).
[4] Foi a secundariedade da essência que o nominalismo reenviou para a linguagem, separando definitivamente os dois sentidos de ousia das Categorias.
[5] É uma das teses principais do meu Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida.
[6] Creio que se pode encontrar o correspondente neurológico desta ‘constituição’ no motivo de ‘grafo’ de J.-P. Changeux, em O homem neuronal, como tentei analisá-lo nesse trabalho: inscrito no cérebro lentamente como aprendizagem, ele é a condição para o conhecimento do que se aprendeu, qualquer uso – como comer com faca e garfo ou conduzir um automóvel – podendo servir de exemplo.
[7] O texto prosseguia com Derrida,.
Reenvia-se às mensagens 67 (fervedor) e 72.
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Imagem: obra plástica de Luís de
Barreiros Tavares
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