L.T. : “…a
nossa imagem de mim é por assim dizer 'corporal', resulta de todo o sistema de
neurónios que nós somos como 'sentindo o fora de nós e o em nós', a que só nós
temos acesso, como diz Damásio em O Livro da Consciência. Auto-afectação
e hetero-afectação vão de par, diz Derrida, é o que define o vivo animado
(animal).”
Embora possa parecer excessivo, diria que é como que uma imagem que
se “adivinha”, mas não no sentido vulgar de adivinhar. A ‘adivinhação’ remete, p.ex., para as astrologias e magias antigas e/ou
arcaicas e para certos mitos. E não é o mesmo que ‘previsão’, esta remetendo, como noção decisiva, para as ciências modernas. Menos ainda, ‘adivinhar’ na acepção de
pré-figurar. Também não se trata de
visualizar, ou pré-visualizar; mas, parece-me, no que está em jogo, em parte no 'hetero-afectar' e 'auto-afectar'. Não é,
pois, do plano da visibilidade. O termo que usei de início ('adivinha' e seus derivados) serviu precisamente
para ajudar a fazer-me entender no que segue, e pô-lo de lado, para me
facilitar nos passos seguintes e abrir caminho. Portanto, já está fora de jogo.
O fabuloso conto Na Colónia Penal
do Kafka poderá tornar mais explícito o que pretendo
indicar. O condenado não visualiza propriamente a inscrição que lhe é
dolorosamente
infligida no corpo. Também não a lê no sentido banal. Há um misto de
visualidade, leitura e tactalidade; hapticidade, digamos; mas não basta
dizer que há um misto desses factores. O que faz com que se
subverta qualquer interpretação, quer exclusivamente inteligível (ele
não intelige
a escrita, sendo esta, apesar de tudo, invisível aos seus olhos: ele
sente-a), quer
sensível (lê, mas sem ver sensivelmente, e, portanto, em parte,
paradoxalmente intelige), quer
mista (jogando redutoramente estes dois planos). Há qualquer coisa da
ordem do
corpo que se move no movimento de inscrição nele mesmo. Por outro lado,
como sabes, a tatuagem remonta a práticas ancestrais, pré-históricas,
como uma espécie de pré-escrita consistindo em inscrições, pinturas e
adornos corporais. Mas há também algo da ordem
da escuta, de l’entente, para usar um
termo francês, evocando a “escuta do Ser” em eco a Heidegger.
Mas, voltando às tuas
citações que deixo aqui. É que remetes
justamente para o corporal. Repetindo: “a nossa imagem de mim é por assim dizer
'corporal'.” Pareces sugerir que não é da ordem da visibilidade perceptiva, mas,
dir-se-ia que é uma como que con-gregação, se assim se pode dizer, de múltiplos factores, donde o “auditivo”, o
interactivo (várias alíneas com as suas diferenças: a) consigo e com os outros;b) auto-afectação e hetero-afectação; c) o em nós e o fora de nós; d) Innenwelt e Unwelt, Lacan?), e, acrescentaria,
táctil, háptico, reenviando para o que escrevi acima.
Mas
também há a desagregação, digamos, "o corpo retalhado (morcelé)", para
que chamas a atenção no Lacan. Mas aqui me detenho por acrescida
ignorância e incompetência.
Voltando à tua mensagem
anterior (vê bLogos, 114) citaria este passo: “O outro exemplo é o dos artistas
que desenham ou pintam, com ou sem modelo, imaginam, melhor ou pior, isto é, ou
têm logo tudo ou vem-lhes a pouco e pouco à medida do desenho. Este segundo
exemplo releva do eixo visão / mãos, em contraste com as frases que relevam do
eixo audição / fonação, como predominâncias, obviamente.” É claro que te moves
preferencialmente no eixo audição / fonação. E é aí que parece entrar mais um certo critério
corporal. Creio que um dos méritos e novidade do teu pensamento é abrires caminho para
alguns critérios do 'corporal' e do 'material', difíceis, porém, de compreendermos à
primeira, à segunda ou à terceira... Mas não haverá aqui um limiar, uma linha de
delimitação ténue com a qual devemos estar atentos sob pena de sermos levados
para um plano de pura inteligibilidade, como sói dizer-se numa certa doxa
pretensamente intelectiva tão corrente nalguns meios académicos da Filosofia-Ontologia e da Ontoteologia?
A frase do Paul Valéry -“o que há de
mais profundo no homem é a pele”
(ce qu'il y a de plus profond en l'homme, c'est la peau) - vai de alguma
maneira ao encontro do que quero dizer. Subverte-se o que é da
ordem da profundidade e da superfície, não deixando de se abrir caminho
para
outra compreensão do que são essas dimensões (categorias?), digamos,
ainda assim mantendo-as e nomeando-as.
Onde não estou a compreender? Ou ando por aqui às aranhas?
Estas questões postas assim são viáveis para ti? Não sei se queres dizer alguma coisa a partir do Freud.31/10/2012
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F.B. : Já em tempos te tinha dito que não uso, senão muito raramente, a palavra 'corpo', porque ela traz consigo a 'alma' como o seu outro, ou sujeito, a consciência, tudo instâncias que nos permitem falar do 'nosso' corpo como uma parte de nós, e inferiorizada, já que será difícil de se defender que a 'nossa interioridade', que tanto preservamos, cultivamos, não seja 'mais importante' do que o 'nosso corpo´'. Ora na citação que me fazes, caí na esparrela de escrever corporal, embora pondo aspas. Porque justamente não se trata do 'nosso corpo' como outro do que a nossa consciência: pelo contrário, reenvia para a 'mente' segundo Damásio, a internalidade dos neurónios a que só cada um tem acesso, aquele que ouve, vê, lê, sente, pensa, sonha, recorda, imagina, etc: tanto coisas que são tradicionalmente atribuídas à alma como ao corpo. Esta imagem de mim reside nos (meus) neurónios, não tem a ver com a visibilidade: eu não me vejo; ao espelho, numa foto ou num vídeo, eu vejo uma imagem de mim como vejo a de outros. É claro que abuso aqui da palavra 'imagem' (disse-te também que não é das palavras que uso), a melhor palavra para dizer isto que quereria dizer ainda será a etimologia da 'consciência', o saber de si, mas há que colocar esse 'saber de si' no mundo, também é saber de outros e com outros (segundo o dicionário latim-francês do Gaffiot, o primeiro sentido latino da palavra dizia o saber de algo partilhado com outrem, 'saber com', a modos duma cumplicidade), e ainda saber de usos que uso habitualmente, de aspectos da casa onde moro, tanta coisa que a palavra 'consciência' não diz, mas que cabem em 'saber' na expressão 'saber de si'. E claro que não tem a ver com 'adivinhar', é pelo contrário uma base - que vai mudando com a nossa história pessoal - para as nossas certezas (possivelmente quiseste visar uma certa indefinição), é algo que escapa justamente à partição tradicional da alma / corpo. O 'corpo em pedaços' do Lacan vem justamente no discurso psicótico, não é 'corporal', é discursivo, memória.
Auto e hetero afectação: uma não vai sem a outra, nem há precedências entre ambas, qualquer delas é condição da outra. O Derrida define a consciência como a autoafectação da voz (A voz e o fenómeno): falando, eu sei que falo, sou autoafectado pelo que digo, ou pelo que penso. Aqui acrescento à voz e ao seu 'sentido', os outros 'sentires' que sentimos, dentro e fora de nós.
Uma observação sobre a 'previsão' em ciências. É uma ideia determinista, razoavelmente falsa. Verifica-se em certos casos, sobretudo em astronomia: o planeta Neptuno foi calculado e descoberto aonde tinha sido previsto. Também o Saussure 'previu' no seu sistema dos fonemas indo-europeus a casa dum fonema que era ignorado no seu tempo e que foi descoberto uns 50 anos depois de ele ter morrido (falo disso na Epistemologia do sentido). Foi como o Mendeleev em química, a sua tabela teórica dos elementos, que é um dos casos mais extraordinários de descoberta científica. Mas em geral, as leis científicas são descobertas em laboratório e correspondem a regras que se jogam fora dele, numa cena aleatória. Por exemplo, a queda duma pedra segundo a lei da gravidade verifica-se quando algo lhe permite mover-se, um pontapé ou um sismo, e não se pode 'prever' o caminho que ela segue por uma ribanceira abaixo. Isto não tira nada à lei da gravidade, tira é alguma presunção aos cientistas, acho eu.
31/10/2012
Imagem: obra plástica de Luís de Barreiros Tavares - 2012
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