Este blogue reúne na sua maior parte e-mails com perguntas e respostas em torno de pontos filosóficos precisos de textos de Fernando Belo e de outros autores. Acrescentaram-se entretanto alguns vídeos. Um blogue de Fernando Belo e Luís de Barreiros Tavares
terça-feira, 6 de novembro de 2012
117. Técnica e ciências - A questão da 'descoberta'. À espera de Godot?
L.T. : Se queres que te diga, me parece, as chamadas descobertas científicas não são mais - e já são muito, sem dúvida - do que a prova de que há uma dose, diria, e uma pretensão, embora compreensível, de previsão. Porquê? Porque ao fazer-se uma descoberta é preciso ter em conta que essa mesma descoberta responde, por seu turno, àquilo que se pode chamar a resposta da natureza ao apelo de que fala Heidegger: "... afin qu'on sache si et comment la nature ainsi mise en demeure répond à l'appel." Tento traduzir: "afim que se saiba se e como a natureza assim em estadia [enquanto questão], responde ao apelo" (A Questão da Técnica; retirado da citação na mensagem 110 do bLogos). É a tal história de que já tínhamos falado de uma certa inversão, ou antes reversão da frase do Protágoras que diz: "o homem [individualmente ou não, pouco importa agora] é a medida de todas as coisas" (vê a mensagem 15). Em que todas as coisas teriam uma quota-parte enquanto medida do homem. Isto parece um pouco um Ovo de Colombo. Mas talvez não. E, com o devido respeito, também não se trata da dialéctica especulativa hegeliana.
Nas ciências descobre-se. 'Descoberta' não é uma palavra usada e talvez abusada nas ciências? Descobre-se, na medida em que a descoberta vai no sentido do que as chamadas 'coisas' - o que não deixa de ser uma maneira de dizer - fazem e vão fazendo com que as coisas, outras coisas já, e os estados de coisas (aqui penso no Wittgenstein), assim sejam, e não de outro modo. O que lembra aqui um pouco Leibniz e o princípio de razão suficiente, mas agora sem Deus.
Se se descobre um medicamento, esse medicamento corresponde, acho eu, a uma previsão. Ele vai responder, co-responder, à previsão, não só de que vai curar muita gente, mas de mais gente que poderá vir a necessitar dele em número acrescido no futuro. E sabemos que ironicamente as doenças entram muitas vezes numa lógica circular aonde elas são precisamente o produto de uma série de circunstâncias estruturais ao nível social, psico-social, económico, civilizacional, etc. Por exemplo, a sida, o cancro, com todo o respeito que tenho por estas abordagens. Mas também há o aleatório a que te referes, aonde - num determinado contexto, fora do laboratório, aparentemente controlado pelas terapias investidas por este - outras patologias, incertezas e perigos de toda a espécie decorrem, imprevisíveis. Decorrem, precisamente, em função do aparentemente controlado (e este conceito é forte; penso no Foucault), mas aonde entra o aleatório, de fora, tal como estudas nalguns dos teus textos, embora me desloque aqui um pouco no modo de expor o problema.
"Mas lá, aonde há o perigo, cresce o que salva" como diz o Hölderlin tão citado pelo Heidegger.
Não indo agora mais longe, creio que algumas das tuas propostas filosófico-fenomenológicas respondem bem e a seu modo a estes problemas.
É que a previsão por vezes parece-me supor o estar à procura de alguma coisa.
Revisitando o extraordinário Samuel Beckett, será que nós todos, cientistas ou não, escritores, poetas, artistas, gente na sua vida, andamos À espera de Godot?
04/11/2012
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F.B. : "a natureza assim em estadia [enquanto questão]" -> a natureza assim obrigada a responder
A minha resposta supõe a diferença entre laboratório e cena fora do laboratório, a chamada 'realidade'. Só pode haver 'previsão' dentro do laboratório, nos fragmentos experimentais. Como no teste duma máquina, por exemplo, em laboratório; fora, o carro joga na circulação aleatória. Ou a queda dum papel e dum pedaço de chumbo, no vazio laboratorial, à mesma velocidade; fora do laboratório, o chumbo é mais rápido, o papel conta com a resistência do ar. No caso dos remédios, a previsão de com aspirina deixar de haver uma dor de cabeça é previsível, mas há dores de cabeça que resistem e não desaparecem; por outro lado, há os chamados efeitos colaterais, hemorragias possíveis, por exemplo da aspirina, usada por isso aliás para evitar coágulos e AVC. Mas estes efeitos colaterais são justamente efeitos não previstos na experimentação, sobre outros órgãos do corpo; basta ler qq literatura de remédio para ver como são variáveis, aleatórios segundo os doentes que os tomam. Aliás, as 'análises' são feitas justamente para se circunscrever tanto quanto possível as variações do estado de saúde / doença, em ordem a medicar, têm em conta o aleatório.
Outra coisa, com exemplo da fisica (Le Jeu des Sciences, cap. 9, § 31): os resultados das medições da experiência (tipo 100metros, percorridos em 30 segundos, e outras distâncias e em tempos t) vão preencher as 'variáveis' da equação v= e/t. A descoberta é essa correlação entre variáveis resolvendo uma equação física. São esses resultados que verificam equações que são depois aplicados em técnicas variadas, ou em remédios.
Creio que a diferença entre descoberta e invenção é entre a ciência e a técnica (tenho um texto recente sobre isso).
A citação do Heidegger não tem a ver com o laboratório mas com as técnicas muito poderosas actuais, por exemplo as poluições que elas provocam, as paisagens esburacadas da actividade mineira, a transformação da paisagem dum rio pela construção duma barragem, o rio virando albufeira a montante e ribeira quase seca a jusante, ar viciado das cidades, etc.
05/11/2012
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