L.T.
: 1. Sabendo muito
pouco como sei do Lacan, e sem ir consultá-lo, pareceu-me bastante interessante
quando ele trata da questão da criança - quando esta ainda não tem um
suficiente domínio motor do corpo - ao ver-se diante do espelho, apoiando-se em
algo para se suster e acenando à sua imagem reflectida, identificando-se a
partir dela, sem que haja ainda a linguagem falada, duplamente articulada, para
empregar motivos que te são caros. Como se qualquer coisa da ordem da imagem
contribuísse e se antecipasse - ou pelo menos se articulasse - não só ao corpo
na sua autonomia mas também à linguagem supondo esta como estruturante do Eu
(artigo de Lacan: O estádio do espelho como formador da função do eu, ed. Arcádia).
2. "Estes
eixos são grafados no cérebro com as aprendizagens fundamentais que fazem de
nós seres no mundo da nossa tribo. Cá fora, pois, não saberia
dizer nada da imaginação como interioridade." "Cá fora"; esta
tua chamada de atenção parece-me ir ao encontro do que consideras digno de se
pensar mais profundamente, a questão das ditas imagens mentais, do pensamento
("pois, não saberia dizer nada da imaginação como interioridade"),
que algures pões em causa, que vêm das neurobiologias, neurociências (imagiologia (?)).
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Que me
perdoem os lacanianos e não só por algumas imprecisões e mesmo alguns
disparates.
Mas há muitas coisas que uma pessoa não sabe...
21/10/2012
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F.B.
: Quanto ao
"estádio do espelho", uma miúda de 18 meses, nua e contente diante do
espelho, com alguma linguagem já por certo; não é aí que estava a questão para
o Lacan, mas na assunção da imagem de si como um todo, em contraste com certos
discursos psicóticos que revelam um corpo 'morcelé', 'en morceaux', retalhado,
em pedaços. Para o Lacan, é esse 'em pedaços' a nossa primeira consciência, o
nosso primeiro saber de si. E creio que é o pôr-se de pé e falar que dá a
possibilidade desta unificação de si numa 'imagem'.
Mas o espelho é, me parece, um elemento secundário, o que Lacan chama 'imago' é a produção dessa imagem de si integrada pelas imagens dos outros que nos rodeiam e que agem, andam, fazem, falam, enchem o ambiente de humano. O que me parece significar que a nossa imagem de si não é justamente a dum espelho, pelo contrário, a imagem que dá o espelho é sempre algo de estranho: a nossa imagem de mim é por assim dizer 'corporal', resulta de todo o sistema de neurónios que nós somos como 'sentindo o fora de nós e o em nós', a que só nós temos acesso, como diz Damásio em O Livro da Consciência. Auto-afectação e hetero-afectação vão de par, diz Derrida, é o que define o vivo animado (animal).
O problema da neurologia, do próprio Damásio, é só darem pela auto-afectação e ignorarem a hetero-afectação, não serem capazes de entenderem que somos grafados (o próprio Changeux não deu por isso, apesar do seu motivo excelente de grafo; percebe-se lendo os seus diálogos com Ricœur e com o matemático Connes). A tal ideia de que o cérebro é um órgão biológico e social. Ora, é por razões filosóficas, as que o Heidegger delimitou como ontoteologia, que os biólogos não chegam lá, eles permanecem 'aristotélicos' nisso, kath'auto, o 'autopoiético do Varela, ignoram o kath'heteron a que Aristóteles também não teve acesso: têm medo da alma mas não saem dela completamente.
Com efeito, isto é o resultado da definição, foi ela que pôs o acento no 'ente' (ontos) que o Deus (theos) cristão (mais bíblico do que grego, se dizer se pode, que transforma profundamente o grego, o do Plotino aliás) cobrirá porque já lá tinha à espera a 'alma' de Platão. “O auto-movimento é a essência da alma (psuchês ousian)” (Fedro 245e). Ela responde a uma atitude espiritual simultaneamente narcísica e humilde, permite compreender a espontaneidade das experiências de pensamento que, de tão fortes, não podem advir da aprendizagem com a tradição e com os seus mestres, mas outrossim tão fortes que terão a ver com outra fonte de excelência, não podiam ser criação própria apesar dessa espontaneidade. É já implicitar a afirmação do eu que pensa, como Descartes veio a compreender. A alma diz a grande fecundidade do pensador. Foi uma história de liberdade pessoal, espiritual, em mundos muito limitados politicamente.
Mas o espelho é, me parece, um elemento secundário, o que Lacan chama 'imago' é a produção dessa imagem de si integrada pelas imagens dos outros que nos rodeiam e que agem, andam, fazem, falam, enchem o ambiente de humano. O que me parece significar que a nossa imagem de si não é justamente a dum espelho, pelo contrário, a imagem que dá o espelho é sempre algo de estranho: a nossa imagem de mim é por assim dizer 'corporal', resulta de todo o sistema de neurónios que nós somos como 'sentindo o fora de nós e o em nós', a que só nós temos acesso, como diz Damásio em O Livro da Consciência. Auto-afectação e hetero-afectação vão de par, diz Derrida, é o que define o vivo animado (animal).
O problema da neurologia, do próprio Damásio, é só darem pela auto-afectação e ignorarem a hetero-afectação, não serem capazes de entenderem que somos grafados (o próprio Changeux não deu por isso, apesar do seu motivo excelente de grafo; percebe-se lendo os seus diálogos com Ricœur e com o matemático Connes). A tal ideia de que o cérebro é um órgão biológico e social. Ora, é por razões filosóficas, as que o Heidegger delimitou como ontoteologia, que os biólogos não chegam lá, eles permanecem 'aristotélicos' nisso, kath'auto, o 'autopoiético do Varela, ignoram o kath'heteron a que Aristóteles também não teve acesso: têm medo da alma mas não saem dela completamente.
Com efeito, isto é o resultado da definição, foi ela que pôs o acento no 'ente' (ontos) que o Deus (theos) cristão (mais bíblico do que grego, se dizer se pode, que transforma profundamente o grego, o do Plotino aliás) cobrirá porque já lá tinha à espera a 'alma' de Platão. “O auto-movimento é a essência da alma (psuchês ousian)” (Fedro 245e). Ela responde a uma atitude espiritual simultaneamente narcísica e humilde, permite compreender a espontaneidade das experiências de pensamento que, de tão fortes, não podem advir da aprendizagem com a tradição e com os seus mestres, mas outrossim tão fortes que terão a ver com outra fonte de excelência, não podiam ser criação própria apesar dessa espontaneidade. É já implicitar a afirmação do eu que pensa, como Descartes veio a compreender. A alma diz a grande fecundidade do pensador. Foi uma história de liberdade pessoal, espiritual, em mundos muito limitados politicamente.
22/10/2012
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Imagem: obra plástica de Luís de Barreiros Tavares
Imagem: obra plástica de Luís de Barreiros Tavares
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