L.T. :
1. Muito por alto e provavelmente com algumas imprecisões, sobre a katharsis (purgação, purificação) só sei que tem a ver com phobos (temor) e éleos (piedade) como instâncias por que passam os espectadores - público, assistência - (aqui talvez entre também a mimesis, que é aliás referida por Aristóteles juntamente com os outros dois termos em Poética, 1449b-1450a. O espectador passa assim por estas instâncias transitoriamente como formas de transformação e ‘purgação’ preparativas para reentrar na polis. Creio que neste processo está também em jogo a ética segundo a abordagem que fizeste sobre a Poética no teu último e-mail. Li há muito tempo o António Freire que tem uns textos interessantes sobre estas questões.
Sobre a citação de Cristina Beckert na mensagem anterior. O que me parece interessante aqui é que sendo êthos (ἦθος) com sentido mais arcaico, digamos (“caverna, morada, local de habitação”) - mais originário a julgar pelo critério semântico, embora mais tarde signifique “maneira de estar ou de ser, carácter” -, ele derive, todavia, de éthos (ἕθος - “costume, hábito”; mas que também deriva de estábulo, segundo disseste), o qual por seu turno é o que irá dar origem ao sentido de moral que, se bem entendi, é posterior, ou pelo menos vai no sentido da latinização da moral a partir de mos “para designar tanto éthos como êthos”.
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2. Entretanto, contactei a Profª Cristina Beckert sobre algumas dúvidas num ou noutro ponto.
Alguns dados e textos que lhe enviei:
"La vertu apparaît sous un double aspect, l'un intellectuel, l'autre moral (ἠθιxῆς) ; la vertu intellectuel provient en majeure partie de l'instruction, dont elle a besoin pour se manifester et se développer; aussi exige-t-elle de la pratique et du temps, tandis que la vertu morale (ἠθιxὴ) est fille des bonnes habitudes (ἔθους); de lá vient que, par un léger changement, du terme moeurs sort le terme moral (ἔθους)44."
44 ῞Eθος, coutume, usage, habitude; ἦθος manière d'être, moeurs.
Aristote, Éthique de Nicomaque, Ed. bilingue, Trad. Jean Voilquin, Garnier.
Só disponho de momento desta edição bilingue de Ética a Nicómaco.
Não sei grego, mas conheço uma razoável terminologia filosófica do grego e um ou outro elemento gramatical.
O que me parece interessante aqui é que sendo êthos (ἦθος) com sentido mais arcaico, digamos (“caverna, morada, local de habitação”), mais originário a julgar pelo critério semântico, embora mais tarde signifique “maneira de estar ou de ser, carácter”, derive, todavia, de éthos (ἕθος - “costume, hábito”), o qual por seu turno é o que irá dar origem ao sentido de moral que, se bem entendi, é posterior, ou pelo menos vai no sentido da latinização da moral a partir de mos “para designar tanto éthos como êthos”. Daí, talvez, que qualquer coisa se tenha perdido pelo meio no respeitante à ética e à moral.
Depois também há a questão e os problemas da tradução. Jean Voilquin emprega várias vezes a palavra ‘moral’. Ora, como se viu, esta deriva do latim. Talvez sejam anacronismos a que às vezes não podemos escapar. Mas neste ponto não sei ir mais longe.
Mas não sei se estarei a colocar bem a questão. Saberá com certeza situar estas questões melhor do que eu...
5/08/2012
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Cristina Beckert: Em primeiro lugar, quero felicitá-lo pelos seus conhecimentos de grego, pois todos os casos que assinala no texto de Aristóteles estão correctíssimos.
Quanto às observações que faz, também considero que tem razão. De facto, na perspectiva de Aristóteles, éthos é mais arcaico que êthos, pois, para ele, este termo tem apenas o significado de carácter. Só quando Heidegger escreve a Carta sobre o Humanismo é que se procurou reabilitar o sentido originário da palavra, para designar uma postura não-humanista ou não-antropocêntrica da ética.
A tradução de Voilquin não é das melhores. Eu uso a tradução inglesa das obras completas da Loeb Classical, traduzida por Rackham, mas se prefere o francês, seria melhor consultar a tradução de Tricot, publicada na Vrin.
PS: quanto ao meu livro, posso apenas dizer-lhe que retomo a distinção entre ética e moral, mas desenvolvo-a a partir de dois autores contemporâneos: Wittgenstein e Ricoeur.
Cristina Beckert
12/08/2012
L.T. : Seria possível transcrever-me a versão inglesa do Rackham e/ou do Tricot daquelas linhas (apenas 4 ou 5 + -) que lhe enviei do início do livro II da Ética a Nicómaco?
Entretanto, encontrei uma edição inglesa: "Virtue, then, is of two kinds, intellectual and moral. Of these the intellectual is in the main indebted to teaching for its production and growth, and this calls for time and experience. Moral goodness, on the other hand, is the child of habit, from wich it has got is very name, ethics being derived from ethos, 'habit', by a slight alteration in the quantity of thee e."
The Ethics of Aristotle, The Nicomachean Ethics, translated by J.A.K. Thomson, London, Penguin Books Classics, 1955
19/08/2012
Cristina Beckert: Aqui vai a tradução do Rackham
"Virtue being, as we have seen, of two kinds, , intellectual and moral, intellectual virtue is for the most part both produced and increased by instruction, and therefore requires experience and time; whereas moral or ethical virtue is the product of habit (éthos), and has indeed derived its name, with a slight variaton of form, from that word."
29/08/2012
Imagem: obra plástica de Luís de Barreiros Tavares - 2012
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