sexta-feira, 3 de agosto de 2012

101. Um pouco de ética




L.T. : Só uma citação:
"Com efeito, a palavra ética vem do grego êthos [ἦθος], cujo significado primeiro é caverna, morada, local de habitação, e, mais tarde, maneira de estar ou de ser, carácter. O próprio termo êthos provém, por sua vez de éthos [ἕθος] que quer dizer costume, hábito, permitindo-nos compreender a evolução do sentido original da palavra em direcção a uma progressiva "moralização" da mesma.
Assim, e atendendo à etimologia grega, a ética aponta, antes de mais, para a interacção entre o homem e o mundo, ou seja, para um habitar mundano do homem, a partir da sua morada, da casa onde mora, com toda a carga simbólica que este termo comporta. Na verdade, a casa é "o primeiro mundo do ser humano", "um grande berço", onde "a vida começa bem, como encerrada, protegida, aconchegada [(1) G. Bachelard, La Poétique de L'espace, Paris, 1983], onde o caos se organiza em cosmos e a intimidade com o mundo se transforma progressivamente em interioridade, em espaço próprio e irredutível do homem, apropriando-se do seu agir."
(...)
"Na passagem do grego para o latim, verificamos a existência de um único termo, mos para designar tanto éthos [ἕθος] como êthos [ἦθος], o que ocasiona um considerável empobrecimento semântico da palavra moral. Na verdade, a fixação do sentido de mos, priva-o da referência ao habitar mundano e à morada (...)."

Cristina Beckert, Ética e Moral, in Noesis, 16, 1990.

Tendo em conta as etimologias de 'ética' (êthos - ἦθος; éthos - ἕθος) e as suas derivações para 'moral', gostaria que me dissesses como vês o lugar da ética nessa "narração (récit) duma prática" (récit: relação; narração de um facto - Dictionnaire Larousse de Poche), "histórias de homens", lutas reais de gentes (...) mesmo antagonistas" (Clévenot no Apostrophes sobre o teu livro Lecture Matérialiste de L'Évangile de Marc, récit, pratique et ideologie), supondo as diferenças e mesmo os antagonismos no plano dos usos, costumes, hábitos e também nas formas de habitar? Dando uma vista de olhos geral ao livro acima citado não encontrei abordagens à questão da 'ética', pelo menos no que concerne ao emprego do termo, salvo erro.

Pode-se falar de ética, e como, nos contextos da 'habitação' que tratas nos teus textos incluindo os do cristianismo? Na verdade, a palavra 'ética' aparece em alguns capítulos dos teus textos sobre o cristianismo incluindo o do blogue "Questions au christianisme". Estive a consultar no inédito, Qu'est-ce que le christianisme, "Étique et Étnique" e "Une étique de la fécondité, au-delá de ce que l'ont peut". Mas são abordagens complexas tais como o resto do texto exigindo estudo.

Enfim, uma pergunta só: como entendes a ética na filosofia e no cristianismo?

01/08/2012




F.B. : Nunca me dei ao estudo da ética em filosofia, excepto tê-la encontrado na Poética de Aristóteles, em relação com a katharsis na definição de tragédia (cap. 6), êthos dependendo da causa final (a finalidade da tragédia é provocar a katharsis no espectador), enquanto que o seu par contrastado, eidos, com três itens nessa definição, releva de causalidades estruturais, digamos. Aí, a tradução habitual é a de 'carácter', no sentido em que numa tragédia cada personagem deve, segundo Aristóteles (cap. 15), conservar sempre o mesmo 'carácter' (excepto se o seu carácter for a inconstância, não o ter). O que significa que o termo tem, em cada humano, o sentido de comportamento constante, virtuoso ou não, na sua maneira de seguir os costumes. A katharsis é a elevação da moral dos espectadores que a tragédia deve provocar, tem pois já um sentido 'ético'.

Creio que o termo mais antigo é ethos, habitação como residência, até porque também se aplicava aos estábulos dos cavalos: sentido claramente estrutural. Terá evoluído para êthos, digamos (não sei se houve 'evolução', mas é possível que explicitação, que veio a desdobrar-se em dois termos), para o sentido de carácter moral (a meu ver, a vantagem do termo 'moral' é designar a maneira como os costumes de cada um devem seguir os usos tribais estabelecidos, mos, mores em latim. Se se guardar o termo 'uso' para dizer a antropologia duma tribo, poderíamos distinguir os 'usos técnicos' dos 'costumes morais'.

Por mim, reservo o termo 'ética' para os que rompem com os usos morais da sua tribo, os quais andam em torno dos gostos de comer, beber, coragem na guerra, riqueza como honra, e coisas dessas, rompem e buscam novos comportamentos espirituais, digamos, incluindo intelectuais nos filósofos socráticos. Trata-se pois de atitudes a educar para viver de forma mais elevada do que a tribo propõe (mais perto do sentido de katharsis).

Quanto ao cristianismo, a coisa é complexa. Os chamados Dez mandamentos correspondem à moral base do cristianismo como religião para toda a gente, a partir dos séc. IV e V, moral tribal pois. Mas antes, o cristianismo era um movimento espiritual e, antes de se ter contaminado com éticas de tipo maniqueistas, o essencial da sua ética era a do amar o próximo como a si mesmo, que não há maior amor do que dar a vida pelos seus amigos (João 15, 13): já no Levítico (19, 18) se recomenda que se ame o seu vizinho como a si próprio, a parábola do bom Samaritano (Lucas cap. 10, 29ss), gente desprezada pelos Judeus, estende o próximo além da vizinhança, da tribo, das fronteiras étnicas. Digo algures no texto que citas, que 'amar o próximo' é a coisa mais difícil que há no mundo, mas que é acessível a qualquer um, pobre ou rico, inteligente ou néscio. É uma ética infinda.

01/08/2012





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 Imagem: desenho digital realizado coma mão esquerda. Obra plástica de Luís de Barreiros Tavares.

Vídeo de uma instalação de Luís de Barreiros Tavares

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