LT: Há uns dois meses ou mais estava para
enviar-te umas questões destas. Mas o teu último texto no filosofiamaisciências
2, “Pensamento e Linguagem”, espevitou-me.
Aqui vão as questões à maneira de esboço e
por retrabalhar…
Voltando ao passo de O Sofista, 263 e,
de Platão, que iniciou este blogue, mas retraçando outras questões.
“Pensamento (dianoia) e discurso (lógos)
são o mesmo (taútón), salvo que o diálogo (diálogos) interior e
em silêncio que a alma tem consigo mesma (aúten) recebeu o mesmo (aútó)
nome de pensamento (dianoia).” (Tradução de Auguste Diès, ed. bilingue,
Les Belles Lettres, 1925)
1.
Parece-me que, em parte, a resposta já lá
está no teu texto. Mas gostaria de retomar a questão. Como é que entendes este
mesmo ou esta mesmidade? Pois, ele defende de início que pensamento e discurso
são o mesmo, ou a mesma coisa; mas em seguida diferencia este “mesmo” de um
outro “mesmo”, a saber: o diálogo interior e em silêncio que a alma tem consigo
mesma (curiosamente emprega o termo “aúten”); tendo este diálogo o mesmo
(aútó) nome: pensamento (dianoia).
Mais à frente, conforme citas também: “mas a
corrente sonora que sai da boca recebeu o nome de discurso (lógos)."
Ele parece proceder a diferenciações e rediferenciações do pensamento e do
discurso. Mas preciso ver melhor estas questões noutra altura…
Mas voltando à primeira citação. Este passo
dá pano para mangas. Não é curioso que o nome se mantém (dianoia) para
aquela diferença?
Tentando ser sucinto. Diánoia e lógos
são o mesmo (taútón). Todavia, no dia-lógos interior e em
silêncio que a alma tem consigo mesma, o nome permanece o mesmo: dianoia.
Isto não é espantoso?
2.
Ora, em ‘diálogos’, se não erro muito,
o prefixo ‘dia’ reenvia para o sentido de um para o outro lado e
vice-versa, ou um através. Dir-se-ia que isto remete para um como que eco e
também - não sei se ao mesmo tempo - para uma certa auto-escuta, digamos assim,
mas sem voz (aneu phônês) e em silêncio (entós) da alma.
Mas não será que não é só uma auto-escuta da
alma mas também da voz? Tentarei abordar a questão mais à frente.
Também no passo do Teeteto 189 e
que vai nessa linha, é dito que “opinar é falar, e a opinião é um discurso
pronunciado, não, seguramente, a um outro e de viva voz, mas em silêncio e a si
mesmo” (da edição francesa traduzido por Chambry; não disponho da versão no
grego). E antes, no mesmo passo, sem que Sócrates esteja ainda bem seguro do
que diz: “Mas parece-me que a alma, quando pensa, não faz outra coisa que não
seja entreter-se com ela mesma, interrogando e respondendo, afirmando e
negando.” Ou seja, o tal diálogos.
3.
Talvez pudéssemos partir daqui para a “Voz
que guarda o silêncio” em A Voz e o Fenómeno do Derrida. Mas não estou
de momento à altura para dizer mais coisas sobre isto. Um tanto sem contexto,
embora já tenha rondado várias vezes este texto difícil e muito interessante,
gostaria de lembrar que ele escreve: “a voz escuta-se” (“la voix s’entend”).
Não indo mais longe: se a voz se escuta, isto não é compreender, de alguma
maneira, que nela, na voz, há sempre já um silêncio, no qual e através do qual
ela escuta, se põe à escuta?
Quais as implicações destas questões para o
pensamento e a linguagem?
Mas tu conhecerás muito melhor estes textos
do que eu…
Isto dá para mais, mas para já vai assim. Até
por que ando a fazer uma pausa com o computador e net.
Questões que me ocorreram há uns tempos, se
te interessarem.
14/07/2014
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FB: Dia-logos e dia-noia, em que logos e dia-noia são o mesmo: se há um problema, será justamente a diferença entre a 'alma' (phuchês),
inteligível, imortal, portanto sem contaminação com o sensível, que a
este pertence a voz. Há algo que resiste a esta 'separação' crucial
entre o inteligível (lembrar o noein) e o sensível, que se poderá encontrar aliás também no tratado sobre a Alma de Aristóteles, em que julgo que o logos
não aparece nunca (seria preciso ver o grego com atenção) por
justamente haver o problema entre o corpo a que a alma está ligada
(hylemorfismo) mas aonde se mantém o carácter inteligível dela e a
separação do sensível, questão que creio que Aristóteles não conseguiu
resolver (mas não o conheço suficientemente). Esta separação
manifesta-se claramente no signo tripartido dos Estoicos, com o lekton acrescentado aos tradicionais nome (onoma) e coisa (pragma), sendo o que o estrangeiro não entende, em clima pois de bilinguismo e tradução, que nem Platão nem Aristóteles conheceram.
Derrida foge a esta 'separação' entre o inteligível e o
sensível, como disse ne texto que citaste. "A voz que se escuta" é a sua
definição de 'consciência', significa que falar ou pensar só é possível
'sabendo-se' (scire) de si (con-), porque falar e pensar
implicam escutar-se, a um nível a que justamente só o próprio tem
acesso, como diz A. Damásio, falando dos neurónios de que o próprio
humano (ou 'animal'), e só ele, sabe do conteúdo (é a mente,
segundo Damásio). Não vejo lugar para nenhum silêncio aqui, muito menos
um silêncio 'através' do qual algo se faça. Acho aliás que o silêncio é
muito difícil de se conseguir, a experiência de meditação espiritual tem
sempre esse problema, chegar ao silêncio. Também não vejo que haja que
opôr 'voz' e 'escuta', activa aquela e passiva esta, já que 'aprendida',
a voz e o pensamento são passividade activada.
16/07/2014
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Imagem: pintura de Luís de Barreiros Tavares
Estudo-versão-cromática-azul-avioletado a partir de 'bodegón' (natureza morta, 1946) de Picasso. Acrílico sobre prancha de cartão entelado, 23x35+-, 2002.
Colecção privada.
"Os flancos e o fundo - aquilo em que
consiste a vasilha e pelo qual ela se mantém de pé - não são, propriamente
falando, o que contém. Mas se o continente reside no vazio da vasilha, então o
oleiro, que, sobre o seu torno enforma os flancos e o fundo, não fabrica,
propriamente falando, a vasilha. Ele somente dá forma à argila. Que digo eu?
Ele dá forma ao vazio. É para o vazio, é nele e a partir dele que enforma a
argila para dela fazer uma coisa que tem forma. O oleiro alcança primeiro e
alcança sempre o inalcançável do vazio, ele o produz como um continente e lhe
dá a forma dum vaso."
"A coisa" in Martin Heidegger, Essais
et conférences, trad. André Préau, Paris, Gallimard, p.199, 1995.
Tradução do trecho: Luís Tavares